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A formação de um corpus analítico em uma pesquisa de caráter qualitativo é peça chave para a composição de um razoável material de análise, capaz de “dizer” algo sobre a

realidade em estudo. Esse procedimento remete não apenas ao passo inicial de pré-definição do que vai ser analisado para responder a uma dada questão. Pelo contrário, a composição do conjunto de materiais que formam a base de análise de um investigador qualitativo é etapa que se estende para além do momento juvenil da pesquisa, isto é, quando da apresentação do projeto, do delineamento das questões e do levantamento de algumas hipóteses. Em efetivo, esta composição é um constructo que remete também as idas ao campo e a certas tomadas de decisões, após as impressões primeiras advindas das incursões e retornos para esclarecimentos, ou seja, se processa em efetivo, também, em estágio mais avançado da pesquisa. E assim o foi no presente estudo.

A propositura inicial desta pesquisa havia se constituído com vistas a abranger quatro grupos de sujeitos específicos (trabalhadores atuais e antigos das packing houses, gestores deste espaço de produção e membros de sindicatos representativos dos trabalhadores), os quais, ao final consolidariam em seu conjunto um corpus de dados cada, a ser trabalhado sob a perspectiva analítica de conteúdo. Não tardou muito para que entendêssemos que este desenho preliminar seria inviável de ser executado por algumas razões. A primeira delas diz respeito ao reexame das questões de pesquisa confrontadas com as informações obtidas após incursões de sondagem realizadas, com mapeamento de empresas, atores importantes no cenário produtivo e comercial, conversas e aproximações com informantes secundários, e identificação de outros elementos característicos da realidade pesquisada. Compreendemos, a partir de então, que para conduzir o estudo das modificações no universo do trabalho existente no espaço produtivo das packing houses de manga do VSF decorrentes da introdução deste território no circuito dos mercados globais tal como proposto, algumas escolhas e enfoques precisariam ser tomados. Essas, por sua vez, implicaram na possibilidade de discutir, mais aprofundadamente, as questões das mudanças no trabalho e sua configuração nos espaços de produção para exportação. Ao mesmo tempo, significaram limitar nossa investigação aos grupos dos trabalhadores atuais e antigos.

Realizamos a opção de incorporar o grupo dos gestores das empresas como informantes secundários no escopo da pesquisa. Essa definição esteve relacionada a uma circunstância em específico que se refere ao fato de que a oitiva formal desses atores com a entrevista gravada quando cogitada por nós, nas incursões de campo, foi recebida com bastante receio, sobretudo em virtude da possibilidade de não autorização das instâncias administrativa superiores. Tentamos acionar estas instâncias, em quatro das seis empresas visitadas, verificando notória resistência quanto a esse processo de entrevistar membros gestores da empresa acerca das questões de trabalho nas packing houses, sendo, na maioria

dos casos, quase inacessível o contato com quem de fato respondia por tais autorizações. Nas outras duas empresas, a entrevista nos foi negada a princípio pelos próprios gestores imediatos das packing houses, afirmando eles se tratar de políticas das empresas a não concessão de entrevistas desta natureza. Avaliando a possibilidade de que a insistência em torno dessas entrevistas pudesse trazer-nos a limitação do acesso aos ambientes de produção observados, optamos por não incluir esse grupo entre os entrevistados. Mesmo sem a realização das entrevistas gravadas, ainda assim, estes informantes contribuíram significativamente à pesquisa, tendo sido, todos eles, solícitos no acompanhamento e nas observações realizadas às packing houses e nas explicações e respostas acerca das indagações que realizamos3. Estas informações foram sistematizadas como evidências de campo oriundas da observação sistemática e do contato com outros atores da realidade investigada, que não propriamente os trabalhadores, não deixando de somar à compreensão da realidade.

Souto Júnior (2013, p. 3) se refere à importância da ação sindical no VSF, tanto no “plano estrutural” quanto no “plano conjuntural”, conjuminando forças em prol da luta por melhores condições de trabalho frente ao empresariado. Esta mobilização dos trabalhadores em torno da figura do sindicato se torna visível anualmente no emblemático processo de discussão e negociação das convenções coletivas de trabalho. Considerando essa relevância, intencionávamos, no projeto de pesquisa, realizar a oitiva de atores envolvidos com o sindicato a fim de compreender os processos de enfrentamento às modificações nas rotinas de trabalho nas packing houses. Todavia, o refinamento das questões, ao longo das incursões de campo, nos proporcionou maior clareza em torno do que pretendíamos compreender da realidade social investigada. Este processo é também o reconhecimento das limitações da pesquisa no sentido do uso do recurso tempo e do trato adequado que deve ser dedicado ao dos dados coletados.

Ponderando todas essas questões, decidimos não incluir os representantes dos sindicatos como entrevistados da pesquisa, uma vez que as informações a serem transmitidas necessitariam ser constituídas em um novo corpus de dados, por se tratarem de falas de atores em posição distinta daqueles envolvidos diretamente no universo de trabalho. Este mesmo conjunto particular de dados iria requerer o minucioso trabalho de quantificação e sistematização sob a perspectiva do método da análise de conteúdo delimitado no estudo. Consideramos também que, embora fossem suscitados na entrevista a tratar das mesmas temáticas que os trabalhadores, considerando a posição de fala desses sujeitos, obteríamos um

3 No Apêndice B, página 300, encontram-se as especificações dos informantes da pesquisa, bem como o

corpus com elementos muito diversos daqueles pontualmente levantados pelos empregados nas packing houses. Isso resultaria em um novo grupo de dados, cujo pareamento analítico com as informações dos trabalhadores poderia nos distanciar das questões mais pontuais que pretendemos responder com essa investigação. As dimensões do controle no cotidiano das rotinas de trabalho e os mecanismos pelos quais eles se exercem nos pareceram mais compreensíveis e fáceis de serem captados pelos trabalhadores submetidos corriqueiramente a estas circunstâncias

Compreendemos que o processo de pesquisa é a condução de certas escolhas e, mais do que isso, o ato de saber lidar com estas na construção do corpus e no direcionamento da análise. Deste modo, ponderando as questões envolvidas na incorporação do grupo de atores representantes sindicais como parte dos entrevistados, optamos por não incluí-los na circunscrição desta pesquisa4. Sob esta escolha pesou também duas preocupações levantadas por Bauer e Aarts (2012) quanto à definição do tamanho do corpus de uma pesquisa: uma que se refere ao bom uso do recurso tempo e a outra ao fato de saber compor um material que efetivamente se preste a análise no escopo da pesquisa.

Desta forma, a perspectiva pragmática e não muito encantadora do cálculo custo/benefício que a oitiva desse grupo referido poderia ser pouco vantajosa e muito custosa à pesquisa não traduz integralmente o que foi levado em conta na opção realizada. Este posicionamento um tanto reducionista não traduz a posição adotada nesta pesquisa. É necessário sublinhar a este respeito que a opção por não incluir esse grupo de atores não se deveu simplesmente à limitação de tempo para análise dos dados, mas sim em decorrência de entendermos tais informações como constituidora de um corpus caracteristicamente distinto do que foi construído com a oitiva dos trabalhadores. O que se tem aqui é uma evidência de que a imersão no campo de pesquisa por meio das sucessivas incursões, da aproximação com os atores que fazem parte do universo investigado, tomados em suas múltiplas relações e patamares dimensionais, o que abarca, inclusive, contextos outros que não os enfocados na pesquisa, provoca efeitos significativos na investigação e no investigador, a considerar as alterações que ambos estão suscetíveis a sofrerem quando da reflexão desta experiência. Tais efeitos também reverberam em maior clareza do objeto e definições quanto à sua apreensão, o

4 Embora não tenham sido incorporados como entrevistados com análise pontual desses dados, tais atores foram

ouvidos durante a pesquisa no sentido da formação de um entendimento contextual das dinâmicas de trabalho na fruticultura de exportação no VSF. Foram incluídos no conjunto dos informantes secundários da pesquisa um membro da diretoria do Sindicato dos Técnicos Agrícolas de Pernambuco, bem como dois membros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina-PE.

que entendemos ser o caso da escolha apresentada, na medida em que visou ao aprimoramento e precisão das questões da investigação.

Levando em conta os postulados de Bauer e Aarts (2012) acerca da constituição de um corpus cujo delineamento seja detentor das condições de relevância e homogeneidade, constituímos, no campo deste estudo, dois grupos de entrevistados sobre os quais a análise de conteúdo recaiu como método. Assim, na perspectiva construtiva da análise, os dados oriundos dos entrevistados do grupo de trabalhadores atuais, são provenientes de trinta e seis entrevistas, sendo seis atores por empresa, dentre as observadas. Definimos por trabalhadores atuais aqueles que trabalharam em 2015 como empregados contratados fixos (permanentes) ou safristas (temporários). Neste sentido, sobre esses foi possível levar adiante a apreensão analítica de um ciclo que corresponde propriamente à temporalidade sincrônica da temática do trabalho e seus contornos característicos no universo produtivo das mangas de exportação. O outro grupo de entrevistados foram doze trabalhadores antigos das packing houses dessas mesmas empresas, sendo dois de cada empresa. Estes informantes, por sua vez, responderam às questões da entrevista retratando uma realidade que remonta aos momentos da consolidação das relações comerciais em nível global envolvendo o nicho produtivo da mangicultura no VSF. Logo, o material textual oriundo destas entrevistas transcritas corresponde a um ciclo diferente, pois as falas dos informantes remetem às condições de trabalho e suas características típicas de anos anteriores5.

Algumas incursões comparativas foram realizadas com o intuito de evidenciar diferenças e similitudes entre as condições de trabalho assumidas contemporaneamente nas packing houses de manga e aquelas vigentes em momentos anteriores. Tais relações foram pertinentes ao entendimento das transformações nas condições de trabalho ao longo dos anos, sendo, neste caso, interessantes para captarmos a dimensão dessas alterações que se impuseram aos trabalhadores em decorrência do aprimoramento produtivo e dos ajustes requisitados para a participação nos criteriosos circuitos do mercado global.