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A ideologia individualista e as mulheres

A ideologia individualista e as relações de gênero

6.1 A ideologia individualista e as mulheres

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, emergem em todo mundo, inclusive no Brasil, movimentos pelo aprofundamento das conquistas democráticas e pela constituição dos Estados de Direito Democrático. Cada vez mais intensamente, a estrutura hie- rárquica da sociedade é posta em xeque por meio da luta pela efeti- vação jurídica, política, social e econômica da premissa filosófica, de inspiração iluminista, de que todos são iguais.

A filosofia iluminista legitima as relações hierárquicas entre homens e mulheres nas esferas públicas e privadas. No entanto, a própria filosofia iluminista, ao incentivar valores universalistas, igualitários, “empurrou” as mulheres para a esfera pública e infiltrou os pilares da estratificação de gênero. Foi com o fundamento de que todos são iguais, formulado pelos teóricos contratualistas75, que mui-

tos movimentos de mulheres se organizaram.

A ideologia fundante das sociedades, segundo a qual “todos os homens nascem livres” (ROUSSEAU, 1994, p. 25), está prenhe de contradições: ao mesmo tempo em que define a igualdades de todos,

75 Considera-se como teóricos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau. Cada um, ao seu modo, enxergava a necessidade de um contrato social, fundamento para a constituição da sociedade civil. Fosse este contrato para conter as paixões humanas (Hobbes), para garantir a propriedade (Locke), ou para garantir a igualdade aproximativa da propriedade (Rousseu), o Estado nasceria das vonta- des dos indivíduos.

atribui, exclusivamente, ao gênero masculino a capacidade e os atri- butos necessários para participar e celebrar contratos.

Segundo Vaitsman (1994, p. 32),

O individualismo, que parte do princípio de que os indi- víduos são iguais e livres, legitima as relações de domi- nação através de um discurso universalista. E isso oculta o fato do status das mulheres ser determinado por uma relação atribuída, de gênero, com os homens, o que cons- trange a sua condição de indivíduos. A participação cres- cente das mulheres nas atividades públicas e a conquista de direitos formais de cidadania não apenas desafiaram a hierarquia sexual moderna, mas atingiram em cheio o coração da família.

Se as teorias dos contratualistas foram fundamentais para a construção de uma nova sociedade, baseada na exploração do traba- lho abstrato (MARX, 1975a) e rompimento com as bases feudais, as mulheres não foram incluídas nessa metanarrativa do sujeito univer- sal. Para Pateman (1993, p. 17),

[...] o contrato original cria ambas, a liberdade e a domi- nação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato original, e o sentido civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da história, que revela o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal.

As desigualdades entre os gêneros foram justificadas pela representação simbólica de uma natureza feminina não apenas dife- rente, mas oposta e subordinada à natureza masculina. Na filoso- fia iluminista, há uma reelaboração das fronteiras hierárquicas do masculino e feminino. E, nesse processo, de reelaborações, outros

contratos são acertados com o objetivo de dar sustentação ao con- trato original. Pateman (1993) destaca que o contrato sexual, que operou a divisão da sociedade em duas esferas antagônicas, o público e o privado, negou a condição de indivíduos às mulheres. Este con- trato toma a forma de contrato matrimonial.

As relações de gênero, baseadas na polaridade masculino x feminino, estabeleciam como norma social que cada uma das par- tes tinha um papel específico na reprodução da vida social, cabia ao homem a função de provedor material, voltado para o mundo da rua, e à mulher a de provedora moral, encarregada da educação e integridade moral dos filhos e das tarefas domésticas.

Ao longo dos anos 1960, o Brasil vive uma expansão das classes médias urbanas, propiciada pelo processo de modernização industrial que tivera início no Governo JK. As mulheres passam a ter uma participação mais efetiva na esfera pública, fazendo com que a realização pessoal não passasse tão somente pela constituição da família. Outras expectativas e projetos são construídos, sendo estes vinculados à inserção na esfera pública.

As mulheres lutaram para serem reconhecidas não mais como um ente genérico, que se escondiam atrás do rótulo de mães, esposas, filhas; queriam ser reconhecidas pela capacidade de decidir, discernir; como seres únicos, como indivíduos. O casamento deixou de constituir um fim em si mesmo – tornando-se uma das dimen- sões de sua vida. Outros projetos e aspirações foram incorporados, entre eles o sucesso profissional. A insatisfação das mulheres com o papel reservado para seu gênero e a luta para romper com tais defi- nições desafiam um conjunto de práticas e valores que conformavam os fundamentos de legitimação de um sistema hierárquico de rela- ções de gênero.

As mulheres passam a ter “visibilidade” social no momento em que começam a participar de movimentos sociais globais, como

a luta pelo fim do Regime de 64 (sendo que várias militantes foram assassinadas pela Ditadura Militar), do movimento pela amplia- ção das conquistas democráticas, do movimento docente das uni- versidades, das greves, da luta pela reforma agrária, entre outros. Paralelamente às lutas de cunho mais geral, forjou-se uma articu- lação nacional e regional que discutia questões mais inerentes ao gênero feminino: direito a salários iguais aos dos homens por traba- lho igual, direito ao aborto, denúncia da violência dos homens con- tra as mulheres e de outras formas de discriminação.

O movimento de mulheres pode ser visto como um apro- fundamento e extensão do individualismo, visto que as mulheres passam a ter aspirações e a construir identidades não mais ligadas exclusivamente à esfera privada. Isto estimula a instabilidade e a volatilidade nas relações íntimas, tanto no casamento como na famí- lia, favorecendo a reformulação permanente de projetos, vontades e aspirações individuais (VAISTMAN, 1994). Uma das consequências desse processo de questionamento e mobilização das mulheres é o enfraquecimento da metanarrativa patriarcal, que legitimava a hie- rarquia sexual nas sociedades modernas76.