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Scott e a construção da categoria analítica “gênero”

Gênero: uma reflexão teórica

2.5 Scott e a construção da categoria analítica “gênero”

Joan Scott (1995) propõe pensar “gênero” como uma catego- ria analítica, como um instrumento metodológico de entendimento

35 A ideia de subtexto é de Suárez. Segundo ela, “a leitura do subtexto, que é a lei- tura dos valores veiculados pelo texto por desígnio dos ordenamentos culturais do autor e não das culturas que descreve” (1995, p. 3). Strathern adota posição semelhante a de Suárez quando afirma que “podría pronosticarse com bastante certeza, dada la dirección de las ideas populares y de cómo están representadas em la literatura de la liberación de la mujer, que um antropólogo podría de- monstrar que muchas etnografías están escritas desde um punto de vista andro- céntrico (es decir, machista). Esto no sólo cierto porque muchos antropólogos han sido hombres, sino porque esta disciplina... tiene um sesgo machista […]. Los que escriben sobre las relaciones hombre-mujer han subrayado la frecuente ambigüedad sobre el lugar ocupado por las mujeres como ‘personas sociales’ em comparación con los hombres” (STRATHERN, 1979, p. 139, 141).

das relações de gênero, da construção, reprodução e mudanças das identidades de gênero. Assim, Scott constrói um conceito que visa abordar gênero a partir de uma ótica mais sistêmica, ao mesmo tempo em que chama a atenção para a necessidade dos cientistas tornarem-se mais autoconscientes da distinção entre o vocabulário analítico do cientista e o material que se quer estudar.

Para entender a realidade, que é por demais difusa, multi- facetada, escorregadia, se o cientista social não tiver um esquema mental explicativo claro, não conseguirá se aproximar desta reali- dade, pois, conforme salientou Weber (1991), por mais claro que seja um conceito, ele não consegue englobar a realidade nos seus marcos. A definição de gênero para Scott é composta de duas partes e diversos subconjuntos.

(1) o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1995, p. 86).

A primeira parte do conceito é composta por quatro subcon- juntos: o simbólico, o normativo, os papéis sexuais nas organizações sociais e instituições, e a identidade de gênero. Estes subconjuntos vão explicitar como o social justifica, dando sentido e coerência, as diferenças entre os sexos.

1) Os símbolos, culturalmente construídos, têm como função

representar as diferenças contraditórias entre os gêneros. As lendas, os mitos da criação, as fábulas, narrarão uma história em que se busca explicar como o social organiza as diferenças percebidas entre os sexos no nível imaginário. Para interpretar o subconjunto simbólico, Scott propõe que o cientista coloque as seguintes questões: como as sociedades criam suas represen- tações simbólicas para dar sentido às diferenças percebidas entre

os sexos? Que representações simbólicas são evocadas? Como são evocadas? Em quais contextos são evocadas?

2) Os conceitos normativos que expressam interpretações dos

símbolos, conferindo-lhes um significado que organizam as con- dutas. Normatizar, no sentido de proibir interpretações em torno dos símbolos, de criar verdade. Algumas questões que podem ser levantadas pelos pesquisadores: quando estes conceitos são estruturados? Em quais circunstâncias eles se impõem como posição dominante? Esses conceitos são produzidos e reprodu- zidos pela escola, pelas leis, pela religião, pelas instituições que estabelecem “lugares” rígidos para cada gênero. Assim, por exem- plo, quando o mito cristão da criação confere ao homem (Adão) a função de parte (homem como gênero) ao mesmo tempo de todo (homem, como espécie humana), estabelece também que a mulher é englobada, é parte, sendo este o nível simbólico. Na ordem jurídica, como no Código Civil Brasileiro, pode-se notar que há uma “tradução” desse mito, quando institui o pater-poder, cabendo à mulher a função de mera colaboradora do marido. Ou seja, o subconjunto “símbolos”, ao mesmo tempo em que tem certa autonomia nas suas narrações, encontra correspondência no subconjunto “normativo”, e vice-versa. Para Scott, a principal tarefa analítica, ao estudar os conceitos normativos, é tentar des- cobrir o que leva à aparência de uma permanência intemporal na representação binária e hierarquizada entre os gêneros.

3) A apreensão da construção de gênero deve atentar para as múl- tiplas organizações sociais e instituições, como o mercado de trabalho, a educação, o sistema político. A designação das fun- ções e posições na esfera pública, de acordo com as diferenças entre os sexos.

4) A construção da identidade de gênero, levando em conta que as identidades subjetivas são construídas a partir de uma série de organizações e representações sociais historicamente especí- ficas. O fato de definir que o homem não chora, a mulher é frá- gil, e que o homem não deve demonstrar dúvidas ou medo são

algumas verdades estruturantes das identidades dos gêneros e é mais especificamente (mas não exclusivamente) deste nível de que trata esta pesquisa.

A organização social dos gêneros e da relação entre eles é construída por representações simbólicas, pela normatização desse mundo simbólico no mercado de trabalho e nas organizações polí- ticas e também pelas identidades subjetivas. Esses diversos subcon- juntos estruturam as diferenças entre gêneros de diversas formas. Embora nenhum desses níveis permita, isoladamente, entender a construção dos gêneros (o que significa dizer, as diferenças entre os sexos), Scott alerta que só por meio da pesquisa histórica é possível saber quais as relações entre estes níveis.

Na segunda parte do conceito de gênero, a ênfase recai sobre as relações de gênero e as relações de poder derivadas dessa relação, visto que o gênero constrói o poder a partir de uma distribuição dife- rencial de poder, acarretando um acesso diferencial para os gêneros, aos recursos materiais e simbólicos.

Scott cita alguns exemplos de políticas e de revoluções (jaco- binos, política nazista, Aiatolá Komehini, Stalin) em que os governos instaurados legitimaram a dominação, a força, a autoridade central e poder dominante como masculinos. Assim, o gênero é um dos ele- mentos balizadores do próprio poder36.

36 Em setembro de 1997, quando o Congresso Nacional discutia um projeto de lei que estabelecia que todos os partidos precisariam ter uma percentagem de mulheres concorrendo às eleições, alguns deputados federais (Delfim Neto, Wigberto Tartuce, entre outros) argumentaram que 1) as mulheres não estão preparadas para participarem da política; 2) as funções fundamentais da mulher, como o cuidado da casa e dos filhos, serão relegadas; 3) que a contribuição das mulheres na Câmara do Deputados limita-se a ensinar boas maneiras aos depu- tados federais, que, aliás, passaram a se vestir melhor e mais perfumados desde que as mulheres passaram a ser presença mais constante na Casa Legislativa. Esse conjunto de argumentos serviu para alguns votarem contra o Projeto de Quotas.

A política de Estado é uma das dimensões do poder, talvez a mais visível, pois se materializa em políticas concretas, como o voto, o aborto, políticas de natalidade. Mas a relação poder gênero extrapola essa esfera. Ela pode ser observada na esfera do privado, nas relações de mercado, entre outros. Scott propõe a utilização da concepção foucaultiana de poder, tentando pensar as maneiras que a política constrói o gênero, e como gênero constrói a política.

O termo “gênero”, segundo concepção de Scott, sugere que as relações entre os sexos são aspectos primários da organização social, que os termos da identidade masculina e feminina são determinados culturalmente e, ainda, que as diferenças entre os sexos constituem e são constituídas pelas relações sociais, atravessando-as transversal- mente, colocando em mútua relação, em todos os níveis sociais, as diferenças entre os sexos.

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Masculinidade hegemônica