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A mulher, a natureza e a cultura

Gênero: uma reflexão teórica

2.4 A busca de explicações universais para a constituição dos gêneros

2.4.3 A mulher, a natureza e a cultura

Ortner (1979) tenta entender como a subordinação do gênero feminino ao gênero masculino é construída. Tal qual Chodorow e Rosaldo, Ortner não se detém a um estudo de uma sociedade especí- fica, mas constrói uma explicação para esta subordinação, que acre- dita ser válida para todas as sociedades.

Se não desejarmos nos apoiar no determinismo genético, me parece que teremos somente um caminho a seguir: devemos tentar interpretar a subordinação feminina sob a luz de outros fatores universais, elaborados na estrutura da situação mais generalizada, na qual todo ser humano se encontra em qualquer cultura (ORTNER, 1979, p. 100).

Para ela, quatro aspectos podem ser considerados como sendo pertencentes a todo ser humano: ter um corpo, fazer parte de uma sociedade, ser herdeiro de uma tradição cultural e ter a certeza de que nasceu e de que um dia vai morrer. A partir dessa estrutura generalizada, ela coloca a seguinte questão: por que as mulheres têm um valor inferior em relação aos homens, em todas as sociedades?

Minha tese é que a mulher está sendo identificada – ou se desejar, parece ser um símbolo de – alguma coisa que cada cultura desvaloriza, alguma coisa que cada cultura deter- mina como sendo uma ordem de existência inferior a si próprio. Cada cultura, ou, genericamente “cultura” está engajada no processo de gerar e suster sistemas de formas de significados (símbolos, artefatos etc.) por meio dos quais a humanidade transcende os atributos da existên- cia natural, ligando-as a seus propósitos, controlando-os de acordo com os interesses. Podemos assim amplamente equacionar a cultura com a noção de consciência humana (isto é, sistemas de pensamento e tecnologia), por meio

das quais a humanidade procura garantir o controle sobre a natureza (ORTNER, 1979, p. 100).

Segundo Ortner, todas as sociedades tentam dominar a natureza, nenhuma se curva aos atributos da existência natural. A universalidade do ritual exprime em toda cultura, uma habilidade especificamente humana de agir sobre a natureza e regulá-la. Pode-se concluir que Ortner parte de um paradigma tecnicista e, sob esta lente, faz a leitura das outras culturas. Essa concepção, com cono- tações etnocêntricas, faz com que ela acredite que todas as culturas estejam ontologicamente buscando dominar a natureza. Resta uma dúvida: será que todos os povos têm uma relação com a natureza pautada no controle, na subjugação? Acredita-se que só a pesquisa histórica e etnográfica possa responder a esta questão.

A explicação da constante e invariável dominação da mulher, para Ortner, estaria no fato delas, por atributos biológicos, como a reprodução, estarem mais próximas da natureza.

[...] desejo demonstrar como as funções fisiológicas femi- ninas tendem universalmente a limitar seu movimento social e a confiná-las universalmente a certos contextos sociais, que por sua vez, são vistos como mais próximos da natureza. Isto é, não somente seu processo corporal, mas a situação social na qual seu processo físico a coloca pode assinalar este significado (ORTNER, 1979, p. 106).

A ligação íntima entre filhos e mãe faz com que ela, tal qual a criança, seja considerada mais próxima da natureza. Conforme observo anteriormente, na sociedade Mundugumor, esta ligação só ocorre com o estritamente necessário, devido ao desgosto da mulher com a maternidade e desde cedo as meninas terem contato com o pai, ou seja, pela lógica de Ortner, com o lado da cultura.

E, atualmente, quando as mulheres já “dominaram” a natu- reza, com a descoberta de métodos anticonceptivos, elas deixariam de estar ao lado da natureza para ascenderem à cultura?

Se, até um determinado ponto, Ortner afirma que esta dis- tinção e relação homem cultura, mulher natureza, é como a sociedade a percebe, logo ela irá reforçar esta concepção quando fala de “aspectos dominantes e universais da psique feminina”. A partir daí, citando Chodorow, ela constrói uma tipologia comportamental na qual o homem é identificado com o racional, com a capacidade para abstrair, com a objetividade, e a mulher com a praticidade, a concretude e a subjetividade. Embora tenha alertado (em uma linha apenas) que estas diferenças não são inatas ou geneticamente progra- madas. Mas, como não são, se ela mesma fala de “estrutura psíquica feminina”. Então afirma:

Elas (as diferenças entre a identidade masculina e femi- nina) surgem quase de traços universais da estrutura familiar, isto é, “universalmente as mulheres são as úni- cas responsáveis pelos cuidados da primeira infância e pela (pelo menos) socialização posterior feminina” (ORTNER, 1979, p. 111).

A mulher é tomada como sinônimo de família, sendo que neste ponto não existe qualquer menção ao pai. Outra questão: já há alguns anos, a escola (ou mesmo a creche-escola) já era uma insti- tuição presente desde os primeiros anos de vida e tem aumentado de forma vertiginosa nas últimas décadas. Se Chodorow falou de “pai invisível”, podemos afirmar que a mãe também está perdendo sua visibilidade.

Assim, somos levados a crer que Ortner realmente acha que a mulher está mais próxima da natureza.

As relações da mulher tendem a ser semelhantes à natu- reza relativamente imediatas, mais diretas; enquanto os homens tendem a se relacionar não somente de um modo mais mediato, como de fato, muitas vezes se relacionam mais consistente e solidamente com categorias e formas mediatas do que com pessoas ou os próprios objetos [...]. As mães tendem a se comprometer com os filhos como indivíduos, indiferentes ao sexo, idade, beleza e filiação a partidos ou outras categorias às quais as crianças possam pertencer (ORTNER, 1979, p. 113).

Um dos problemas dessa abordagem “essencialista” é que há uma construção lógica retilínea, que não problematiza a realidade ou as realidades.

Chodorow torna absoluto o papel de uma determinada forma de maternidade na definição das personalidades de gênero. Rosaldo faz um corte profundo na sociedade, dividido-a em dois campos incomunicáveis: o público e o doméstico, para explicar como são estruturados os papéis sociais do gênero masculino e feminino, tendo como eixo para processar tal divisão o sexo. Ortner explica a subordinação universal do gênero feminino ao masculino, devido o fato da mulher está mais próxima da natureza.

É relevante levantar uma última questão: uma das maiores dificuldades que existe quando se estudam os teóricos que tratam de gênero é saber se estão fazendo análises puramente descritivas, ou seja, dizendo como os homens e mulheres comportam-se, e quais as explicações que eles dão para suas ações, isto é, como os próprios “nativos” explicam suas categorias sociais, ou se estão tentando desvendar o que realmente está por trás das ações dos indivíduos, tratando “gênero” como categoria analítica. Em alguns momentos, há uma forte impressão que Chodorow, Rosaldo e Ortner estão

tratando da categoria social gênero, em outros, parece que elas estão propondo um modelo analítico.

Chodorow não faz uma distinção de gênero como categoria social e categoria analítica. Ela não diz: “os indivíduos acreditam que...” ou “os indivíduos agem movidos por tais e quais concepções”. Ao contrário, tenta demonstrar como efetivamente é o processo de construção das identidades de gênero em outras culturas.

A dificuldade é perceber até onde vai a descrição: “as socie- dades se organizam assim...” para começar o subtexto35 do próprio

observador, que atribui ao “outro”, achatando-o no seu próprio mundo, valores e concepções que são próprias de uma dada cultura. Quando isto ocorre, não é mais o “outro” que fala, mas o “eu” pro- jetado por meio da voz do “outro”. No estudo de gênero, isto ocorre com certa frequência. Concepções de poder, afetividade, racionali- dade, personalidade são utilizadas para explicar a gênese das identi- dades de gênero.