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CAPÍTULO I A AMAZÔNIA: PAISAGEM E DOENÇA NOS TRÓPICOS A EMERGÊNCIA DA MEDICINA TROPICAL

1.2. A imagem dos trópicos e o “clima caluniado”

A Amazônia selvagem sempre teve o dom de impressionar a civilização distante.

Euclides da Cunha

A Amazônia é uma invenção, a começar pelo seu nome e pela aventura de viajantes, cientistas, religiosos e cronistas. Ela foi sendo recortada e selecionada a partir de diferentes interesses que foram se justapondo neste mesmo espaço, formando a idéia de uma região diferenciada e múltipla. Do mesmo modo, a natureza tropical também foi um constructo imaginativo e não somente uma descrição empírica do mundo natural; uma vez que a natureza é sempre cultura antes mesmo de ser natureza (Stepan, 2001). A invenção passa por uma representação do outro, como afirma Edward Said no seu

estudo sobre o Orientalismo, no qual argumenta que o Oriente não foi um fato geopolítico, mas uma criação cultural do Ocidente. Assim, temos uma imagem do outro bastante prefigurada pelas idéias que se construíram sobre a região, portanto, temos um outro índio, caboclo, seringueiro, colono, tapuio; mas também temos um outro que se chama Amazônia e que passa por diversas camadas de imagens que foram se interpondo e que foram sendo reproduzidas e copiadas até formar novas representações e assim por diante. Portanto, temos um outro em constante mutação, e que, por isso, se constitui um permanente desafio que nem em “mil anos poderá ser decifrado”, como profetizou Euclides da Cunha (2003, p.351).

O meio ambiente e o clima também fazem parte das representações criadas pelo viajante europeu, assim a associação da natureza tropical com as doenças passou por um significado moral (Arnold, 1996a). Os conceitos como determinismo climático e geográfico, darwinismo social e evolucionismo também estiveram presentes nos juízos sobre os trópicos. A “tropicalidade”, segundo Arnold, escondia uma ambigüidade entre paraíso e inferno, entre o exuberante e a opressão. Por um lado, o viajante e colonizador europeu procurou as marcas do paraíso em um outro lugar, como mostra Sergio Buarque de Holanda (2000) no seu clássico Visão do Paraíso; e, por outro lado, as experiências de colonização e de assentamento nas regiões designadas como tropicais começaram a receber as características das pragas e doenças. Isto não foi um processo linear, pois estes dois elementos estavam presentes de modo ambíguo no contato com este outro espaço que não o europeu.

A Amazônia é o trópico propriamente dito, pois as características naturais como calor, umidade, floresta, abundância de água e uma variedade de insetos e animais estão presentes no mesmo grupo de objetos que estão referidos na categoria “trópico”. Apesar da zona geográfica que envolve os trópicos ser bem mais ampla (23,5 graus ao norte e ao sul da linha do

Equador),16 a Amazônia prevalece como espaço estritamente tropical. Designando estas áreas como trópicos elas se tornaram distintas das zonas temperadas, por isso foram caracterizadas e significadas a partir da diferença. A “tropicalidade” foi uma experiência do “norte branco” que se deslocou para um mundo diferente, onde o clima, a vegetação, o povo e a doença lhe eram estranhos (Arnold, 1996, p. 143).

Ainda para colaborar temos as várias representações que foram se construindo com os viajantes cientistas, relatos de religiosos e cronistas. Não esquecendo dos romances que colaboraram com uma importante parte na invenção da Amazônia como A Jangada (1881) de Julio Verne, A Amazônia

Misteriosa (1925) de Gastão Cruls17, A Selva de Ferreira de Castro, A árvore que chora (1946) de Vicki Baum, Inferno Verde (1908) de Alberto Rangel. Este

último construiu um forte adjetivo que marcou a região, livro que foi prefaciado por Euclides da Cunha, que traz a idéia da natureza como um grande personagem que dramatiza com o ser humano. Isto significa que “nenhum homem civilizado pode se sentir em casa na floresta” (Guillen, 2006, p. 45).

As imagens de sertão e de deserto também estão presentes na literatura e no imaginário sobre a Amazônia. Os escritos amazônicos de Euclides da Cunha constituem fonte valiosa a este respeito. O autor de Os sertões concebeu o projeto de escrever uma obra sobre a Amazônia, que se chamaria

Um paraíso Perdido, mas que ficou somente nos ensaios reunidos em Contrastes e Confrontos e, postumamente, em A margem da história. Segundo

Santana (2000), a partir da análise de seus manuscritos e correspondência, um

livro vingador, como Euclides da Cunha o chamava, seria escrito sobre o

seringueiro, dentro dos mesmos moldes de Os sertões, ou seja, priorizando o teatro das ações como a geologia e a geografia locais.

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Há uma imagem romântica de que a natureza tropical enquanto espaço de não-cultura é um paraíso, mas se transforma em inferno com a presença do homem, quando este é invadido por pragas e doenças. Há um dito popular no Amazonas de que o mosquito da malária é o protetor da natureza, pois aparece quando a floresta é derrubada; surgindo, assim, a doença. Portanto, a malária é o sinal da presença humana, é a violação do “paraíso” e a instalação do “inferno”. Paraíso e inferno são dicotomias que se revezaram no olhar e no imaginário de quem analisou a região, e podem ser aplicados em diferentes tempos-espaços.

O naturalista Alexander von Humboldt18 aliou o pensamento científico com o romantismo alemão, inserindo os trópicos para um domínio estético e dando um sentido positivo para a natureza tropical. Então a natureza aparece, na sua obra, de modo mais ativa, e a vida abundante e fértil. Humbold fundou uma América tropical (Arnold, 1996) ou reinventou a América (Pratt,1999), a partir de descrições sobre os trópicos inspirou diversos naturalistas, artistas e viajantes. Essas descrições e imagens interferiram também na percepção que os seus sucessores tiveram sobre a região tropical. Um deles foi o próprio Darwin que leu A Narrativa Pessoal de Humboldt a bordo do Beagle (Arnold, 1996; Pratt, 1999, Stepan, 2001). As obras “não-técnicas” de Humboldt tiveram maior impacto sobre o imaginário do público europeu. Segundo Pratt, foi por meio destas obras que Humboldt “procurou reinventar o imaginário popular da América e, através da América, do próprio planeta” (1999, p. 211). A América do Sul aparece na sua obra não como uma natureza coletável e classificável do estilo “lineano”, mas uma natureza “dramática, extraordinária, um espetáculo capaz de ultrapassar o conhecimento e a intelecção humana (...), uma natureza que apequena os homens, determina o seu ser, excita suas paixões, desafia seus poderes e percepções” (ibidem). Esta imagem da natureza também se fará presente no olhar daqueles que viajam pela Amazônia, seja no romance, na crônica ou no relato de viagem. O ser humano quando aparece, ou é o índio adaptado ao meio, mas primitivo, ou é um inadaptado que não conseguiu

18

conquistar o imenso espaço verde que o cerca.19 A natureza, por sua vez, é concebida como “uma prisão sem paredes”, como escreve Euclides da Cunha ao observar a relação que com ela estabelecem os seringueiros.

A percepção da natureza começou a ser problemática quando os brancos europeus se estabeleceram nas regiões tropicais, pois essas passaram a representar o perigo para sua saúde física e moral. Os trópicos se transformaram de uma visão romântica que valorizava a harmonia para um caos evidenciado pela doença e pelas pragas que castigavam os colonizadores. E, como ápice deste processo, surge a especialidade da medicina tropical no final do século XIX na Inglaterra, como uma pretensão de domínio sobre os trópicos e sobre o diferente (Arnold, 1996). Como frisa Worboys (1988; 2003), a medicina tropical como uma disciplina vai surgir em um contexto já bastante movimentado de estudo das patologias de clima quente. O domínio passava não somente pelo conhecimento das doenças, mas também pelo domínio da natureza, principalmente na manipulação de plantas que pudessem ser utilizadas tanto para fins econômicos, no caso da borracha, como para a cura de determinadas doenças, a quinina no caso da malária.

O termo tropical não se refere somente a um espaço geográfico, mas traz o significado de que o lugar, as pessoas e as doenças são envolvidas pelo clima quente e úmido (Stepan, 1998). A representação da natureza tropical, segundo Stepan, é um produto moderno do pós-iluminismo, especialmente do

século XIX.20 Três áreas do conhecimento foram importantes para a definição

da natureza tropical no pensamento europeu: a história natural, com a ênfase na classificação e coleção de espécies em todo o mundo; as novas ciências

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humanas, preocupadas com a variedade de seres humanos na hierarquia pela semelhança e diferença; e a medicina que na busca de situar as doenças geograficamente, definindo o lugar e o meio, criando uma nova especialidade que foi a medicina tropical (Stepan, 2001, p. 16-17).

A representação da natureza tropical, segundo Stepan, não foi um resultado direto da exploração, mas o produto das convenções culturais da Europa Ocidental. As descrições dos trópicos desenvolveram as suas próprias características e os modos de representação que são marcadas pela expansão colonial européia. Os naturalistas que descreviam os trópicos confirmavam para os seus leitores o senso de superioridade do europeu sobre os espaços exóticos. A natureza tropical foi formadora da identidade européia, ao servir de fundamento para o contraste entre, de um lado as regiões temperadas com as qualidades a ela associadas como controle, trabalho duro e economia; e, de outro, as regiões tropicais que tinham características como umidade, calor, extravagância e superabundância do clima tórrido (idem, 2001, p. 36).

O termo “trópico” também sugere uma generalização ou uma homogeneização da sua realidade geográfica e cultural, pois esconde os diferentes trópicos que se diferenciam no tempo e espaço. Nas campanhas de combate ao mosquito e ao parasito da febre amarela e da malária, implementadas pela “metrópole” chegaram a considerar as populações indígenas como parte da paisagem dos trópicos, uniformizando tanto a natureza como as sociedades (Worboys, 1997, p. 522). Portanto, os trópicos e suas doenças tropicais passaram por diferentes sentidos, dentre eles aquele construído pelos médicos e higienistas que estavam tanto motivados pelos interesses da ciência como também estavam a serviço dos impérios.

A medicina tropical foi um modo dos países coloniais se apropriarem dos trópicos e não somente para assegurar a presença física. A saúde pública foi, portanto, “um meio de conhecer as pessoas e o seu meio ambiente, e depois controlá-las” (Löwy, 2006, p.39). No entanto, a mesma autora diz que isto não é tão simples quando pensamos em países como o Brasil que tinha instituições

de pesquisas já consolidadas e cientistas que participavam da rede internacional de pesquisas no início do século XX. As expedições da Liverpool School à Amazônia, por exemplo, demonstram que esta troca de conhecimentos e serviços efetivamente ocorreu na prática, quando os cientistas estrangeiros tanto colaboraram com as políticas públicas como partilharam das instituições médicas locais.