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CAPÍTULO I A AMAZÔNIA: PAISAGEM E DOENÇA NOS TRÓPICOS A EMERGÊNCIA DA MEDICINA TROPICAL

1.4. As “típicas” doenças tropicais: malária e febre amarela

1.4.1 Malária – modelo de doença tropical

A malária, segundo Worboys (1997), foi o modelo da doença tropical no século XX, pois ela era considerada a maior causa de mortes de europeus nos trópicos e também se tornou uma das principais causas de morte entre a população indígena no período entre guerras. Além disso, nenhuma outra “doença tropical” recebeu tanto investimento para a prevenção e controle. As concepções miasmáticas sobre a origem da doença prevaleceram até o final do século XIX, a malária era entendida pelos higienistas como sendo produto de venenos e fermentações provenientes da decomposição da matéria no solo que era espalhada pela evaporação depois das chuvas ou era exposta pela agricultura e pela ocupação dos centros urbanos. Como em outros venenos zymoticos, o agente da malária também poderia agir através de causas

predisponentes29, enfraquecendo o sistema e agindo através dos seus venenos

no corpo humano. A malária era, portanto, considerada como um produto de fatores de clima e topografia (Snowden, 2006). A doença era definida por seus sintomas, ou seja, por suas febres, e não por sua etiologia e as condições de desenvolvimento. A febre aos poucos foi sendo vista como fator secundário da

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doença, assim, o laboratório ganhou importância tanto no diagnóstico como no

entendimento da ação do agente no corpo humano (Worboys, 2003)30.

A malária ganhou expressividade internacional quando na construção do canal do Panamá pelos franceses, na década de 1880, morreram em torno de 20 mil trabalhadores (Sutter, 2005). Alphonse Laveran (1845 – 1922), em 1880, um cirurgião militar francês, trabalhando na Argélia, observou o plasmódio da malária no primeiro estágio da reprodução sexual. Apesar do achado, ainda permanecia a pergunta pela forma de transmissão (Porter, 1998). Foi Patrick Manson quem elaborou a hipótese do mosquito como hospedeiro e vetor, a partir das suas pesquisas com a filariasis, mas coube a seu colaborador Ronald Ross (1857 – 1932) demonstrar a hipótese de Manson, identificando no estômago do Anopheles um estágio intermediário do ciclo de vida do

Plasmodium, em 1897 (Porter, 1998, p. 470). Ross, portanto, demonstrou o

papel do mosquito na transmissão da malária, fazendo experimentos com pássaros, detalhando a relação entre o ciclo de vida do Plasmodium e a doença.31

Ao mesmo tempo, os italianos Giovanni Grassi (1854 – 1925) e Amico Bignami (1862 – 1929), em 1898, de modo independente, descobriram a relação da malária humana com o mosquito Anopheles, mostrando que o inseto se tornava infectado através da picada de uma pessoa com o parasito

Plasmodium na corrente sanguínea (Manson, 1919, p.20). Os italianos fizeram

experimentos em voluntários humanos que foram picados pelo Anopheles, que 30 W G 6 F: 2 3 / 0 @ 1' 2 / " " 3 2 - 2 3 @$ 1 / 2 2 @ 1 0 ( - 2 . & . ' 2 "# 0$ H $ "# - 3 31 J. 2 - $ ' 2 *+ # . # 67 ' 9' +9: , Q " G !' " % & 6 >: FL - 0 ' 0 $ 0 3 ' 3 ' ? ' ' P ' ( 3 ) G E # 3 <$ ' - 3 - 3 ?

desenvolveram a malária e no ano seguinte provaram esta tese (Porter, 1998, p. 471).32 A demonstração do papel do mosquito na transmissão da malária teve repercussões importantes em termos de combate e controle da doença, pois as medidas de profilaxia começaram a priorizar a erradicação do mosquito

Anopheles, que já havia sido identificado como o responsável pela transmissão

da malária.

O modelo para uma “política vertical” se deu a partir da identificação do vetor: o plano era atacar o estágio larval aquático do mosquito e agir sobre a fase alada. O modelo era de brigadas contra os mosquitos como indica o título do livro de Ross - Mosquito Brigades, que defendia a proposta de campanhas para a erradicação do mosquito (Worboys, 1997, p. 524; Anderson, 2006). As medidas de defesa individual também foram propagadas como o uso de mosquiteiros, telas nas casas e o uso da quinina para o tratamento da doença. Porém, os programas “horizontais” deveriam acompanhar as medidas verticais, tais como as drenagens, a distribuição de água, ruas pavimentadas, etc.

As medidas de combate contra a malária não foram unânimes nas diferentes escolas de medicina tropical: Programas britânicos e americanos tendiam em ver a doença como um problema do mosquito; os alemães e franceses concentravam o seu ataque ao parasito através do uso de quinina (Worboys, 1997, p. 525). Humphreys ainda coloca uma terceira forma de controle da malária que foi utilizada nas colônias européias na África, que consistia na segregação dos moradores brancos, construindo suas casas em locais distantes das casas dos nativos, estratégia que também foi cogitada para a Índia, mas que nunca se concretizou (Humphreys, 2001, p. 73).

No caso do Brasil, como veremos mais adiante, houve tanto medidas de combate ao mosquito e larvas como o combate ao parasito através do uso de

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medicamentos. Além de medidas de saneamento das cidades e sugestões de defesa individual contra o mosquito. Elas poderiam ser modificadas de acordo com o lugar e as atividades desenvolvidas, pois uma obra como a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré exigia um tipo específico de profilaxia, diferente de ações dirigidas a um contexto de cidade como Manaus ou nos seringais dispersos no vale amazônico. Ambos estão inseridos no mesmo espaço amazônico, no entanto, exigiram estratégias diferentes pela natureza da atividade humana e sua relação com o ambiente. Com isto queremos dizer que as medidas nem sempre foram tão simples de serem decididas por um determinado modelo, mas que seguiam diferentes estratégias dependendo de outras variáveis como recursos, investimentos, acesso à tecnologia, conhecimentos sobre a flora e fauna, os conflitos políticos, etc.

Arthur Neiva defendia a tese de que não se podia “padronizar regras de profilaxia contra o impaludismo” porque era necessário primeiramente conhecer as condições locais para avaliar a “diretriz da campanha”. Há, segundo ele, fatores fixos e variáveis que podem interferir na epidemiologia da doença (1941, p.179). Neiva enfatizava que o “impaludismo é um problema local”, e questões como o ambiente natural, a organização social, o tipo atividade executada e a quantidade de habitantes são relevantes e definidores do tipo de profilaxia a ser adotada. A questão local destoava da tendência do momento que adotava o ponto de vista da doença como única e universal que passou a predominar após a Segunda Guerra Mundial. O estudo das condições ecológicas e ambientais locais tanto da população como da relação dos indivíduos com os vetores foi uma importante colaboração dos cientistas brasileiros para o entendimento das doenças tropicais, algo que será retomado após a crise do modelo unicausal.

O conhecimento do vetor e do ciclo de vida do parasito demandou um entendimento sobre a zoologia e a ecologia dos lugares, sendo outros conhecimentos que se agregaram á medicina (Worboys, 2003). O ambiente que era tão valorizado e importante para a teoria do miasma passa a ganhar novos significados com a teoria do mosquito. O saneamento continua a ter valor nas medidas de prevenção e combate á doença, porém sendo

resignificado pelas idéias do germe e dos mecanismos de transmissão da malária. A campanha do major William Gorgas em Havana e no canal do Panamá é ilustrativa deste processo, pois simultaneamente ao combate aos mosquitos adultos, ele ainda insistia na drenagem das alagações e pântanos; cortar arbustos e relva; colocar óleo na água, espalhar larvacida solúvel; colocar telas nos quartos (Anderson, 2006, p. 215). Neste momento, o estudo da malária envolvia a complexidade local e ambiental tais como vetores, patógenos, nichos ecológicos e o comportamento da população (Stepan, 2003, p. 30).

A malária tinha importância econômica para a expansão do imperialismo europeu, pois doenças como febre amarela e malária se constituíam em um impedimento para o comércio e a colonização dos países tropicais. Em termos científicos a malária teve um papel decisivo que foi um ramo específico do conhecimento que se diferenciava da bacteriologia. Manson propõe uma separação entre as doenças parasitárias/tropicais que estavam sob condições específicas de um vetor para se propagarem, e as doenças bacterianas/cosmopolitas, as quais eram independentes de um meio ambiente específico. Porém, como lembra Worboys (2003), o mosquito Anopheles também era cosmopolita, assim como as doenças bacterianas também eram bem sérias nos trópicos. Apesar disto, o modelo do parasito-vetor foi bem sucedido no sentido de definir um campo para as doenças tropicais.

O impaludismo, como categoria, teve um lugar de destaque na discussão das febres e da teoria dos miasmas, pois foi resignificada para dentro do contexto das doenças tropicais, principalmente a partir dos conhecimentos na área da parasitologia, da entomologia e da terapia. A malária passa a ser o modelo das doenças tropicais, pois possui o parasito e o vetor que se relacionam na história da endemia foi dominada pela teoria da causa única da doença: malária é causada por um plasmódium dispersado via picada do mosquito, mecanismo de transmissão e de desenvolvimento do ciclo de vida do parasito (Humphreys, 2001, p. 3).

A malária para uma região como a Amazônica tem um lugar central porque é diferente de outras epidemias que existiram ou passaram, como a varíola e a febre amarela, ela permaneceu como endemia. Os índices de mortalidade de malária quase sempre estiveram em primeiro lugar, e isto se agravou quando levas de migrantes chegaram atraídas pela extração da goma elástica. O médico Alfredo da Matta33 quando monta as tabelas de mortalidade no Estado do Amazonas, queixa-se pela falta de critérios para registrar os dados e também de ausência de informações sobre o interior do Estado, onde a malária era a companhia dos seringueiros. Os relatórios de Oswaldo Cruz (1910) e de Chagas (1913) sobre as condições sanitárias e epidemiológicas da região apontam a doença como o principal entrave para o desenvolvimento da região.34 Malária, no entanto, não está relegada ao passado histórico da

Amazônia, mas faz parte da identidade da região e o seu entendimento também passa por uma compreensão da região e a dinâmica cultural e social.35

No século XX as ações da saúde pública envolveram múltiplas disciplinas. Ao lado dos médicos estavam os microscopistas e outros técnicos, químicos, entomologistas,36 farmacologistas e engenheiros. O que caracterizou a saúde pública deste período foi a especialização dos profissionais em conhecimentos mais específicos sobre cada problema (Humphreys, 2001, p. 3). Houve uma grande esperança de erradicação das endemias devido a alguns trabalhos bem sucedidos no mundo todo através de campanhas anti-mosquito, como a erradicação da febre amarela no sul dos Estados Unidos, a campanha

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em Cuba37 e no canal do Panamá chefiada por Gorgas (idem, p. 69). Não podemos esquecer da campanha de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro que se tornou modelo de saúde pública para o país e projetou o cientista e a instituição que ganhou o seu nome. A malária não foi erradicada destes locais, mas foi relativamente controlada para níveis toleráveis para o trabalho em obras como o do canal do Panamá, ou em obras de ferrovias e de infra-estrutura no Brasil. Ronald Ross em aula inaugural de Medicina Tropical, em 1899, já anunciava que tinha as novas descobertas e os novos métodos que possibilitavam a erradicação da malária em certas áreas. O cientista avaliava que o melhor método consistia na eliminação das espécies de mosquitos que transmitiam a doença, e afirmava que as medidas preventivas contra a picada do mosquito como mosquiteiros não eram eficazes porque nem toda a população de uma região endêmica fazia uso do mosquiteiro. Ross justicava o combate ao mosquito porque o parasito da malária necessitava de dois hospedeiros para seu desenvolvimento, portanto, quebrando esta cadeia pela morte do mosquito, a malária necessariamente deixaria de existir. Ainda explicava que dentro do ciclo de vida do mosquito, a melhor estratégia era combater a fase larvária do mosquito, através da dessecação dos lugares específicos de procriação do inseto. E para uma ação mais ampla, o combate ao mosquito específico, na sua fase alada, também deveria ser realizado.

A entomologia médica ganhou importância com o combate da malária, pois uma profilaxia baseada na erradicação do mosquito tinha necessidade de conhecer a ecologia dos insetos e as condições ambientais onde a doença estava se produzindo e reproduzindo (Sutter, 2005). Surgiu a necessidade de conhecer os hábitos dos mosquitos, pois estes mudam de região a região, mesmo sendo o Anopheles o vetor responsável pela transmissão da malária, não se tem o mesmo tipo de ambiente e nem o mesmo tipo de ocupação humana nos diferentes lugares. Segundo Sutter, os entomologistas no Panamá detectaram que um dos problemas de reprodução da malária estava no

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encontro entre um lugar e um processo, entre um ambiente que sob certas circunstâncias era apto para a vida dos insetos e um processo de expansão industrial e comercial que transformava o ambiente do país. Historicamente se tinha culpado a natureza pelas doenças tropicais, e depois da teoria do vetor a culpa passou a ser dos nativos que eram os reservatórios do parasito, porém nada disto era natural e sim produto de mudanças ambientais causadas pela ação humana, no caso a obra do canal do Panamá. Porter também afirma que as “doenças tropicais” foram agravadas e, até mesmo, criadas pelo imperialismo através das guerras, desmatamentos, comércio, estradas e estradas de ferro e entre outras mudanças ecológicas, ou seja, a colonização colaborou com a dispersão das doenças (1998, p.465).