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A importância de definir o que se entende por «modelo»

PARTE II – O PROCESSO JUSTO COMO MODELO DE PROCESSO DO ESTADO

1. A importância de definir o que se entende por «modelo»

filosofia e na filosofia do Direito.- 4. Justiça, moral e positivismo.- 4.1.- A justiça no pensamento de Immanuel KANT.- 4.2. A justiça em Hans KELSEN e Gustav RADBRUCH.- 4.3.

Segue. Influência no debate entre H. L. A. HART e Lon FULLER.- 4.4. A dimensão moral e a dimensão positiva do Direito: reapreciação da doutrina kantiana.- 5. A justiça como valor e

valor positivado. Justiça e juridicidade.- 6. Por uma concreção do modelo ideal do Estado

Constitucional.- 6.1. Dignidade humana como fundamento do Estado Constitucional. A liberdade e a igualdade como fins do Estado Constitucional.- 6.2. Segurança jurídica e verdade como meios. Segurança jurídica como realização. Justiça e verdade: a dimensão epistémica do Direito e do processo civil.- 6.3. «Il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto quello e proprio quello ch’egli ha diritto di conseguire»: uma síntese da necessidade de justiça no processo. A tutela dos direitos como fim do processo civil no Estado Constitucional- 7. Por uma teorização da decisão justa. Elementos para sua conformação.- 7.1. Correção do procedimento: o respeito aos direitos fundamentais processuais e à legalidade procedimental.- 7.2. Adequada apuração dos fatos da causa substanciada na busca pela verdade no processo.- 7.3. Adequada individualização do segmento normativo, interpretação do texto (ou do elemento não textual) e aplicação da norma no caso concreto mediante lógica e argumentação jurídica.- 7.4. Positivismo, moral e intepretação: uma reflexão.- 8. Dimensões do modelo de processo justo.

1. A IMPORTÂNCIA DE DEFINIR O QUE SE ENTENDE POR «MODELO» Quando se fala em processo justo evidentemente se está adjetivando o substantivo

«processo».1 Trata-se de uma escolha semântica que coloca um ônus argumentativo

naquele que decide adotar essa opção conceitual. Nesta parte II visa-se a demonstrar a intrínseca vinculação da noção de justiça com o processo no marco do Estado Constitucional, entendendo, em primeiro lugar, o Estado Constitucional como um modelo e, depois, o processo justo também como um modelo derivado daquele.

1 Na particular visão de Ennio A

MODIO. «Giusto processo, procès équitable e fair trial: la riscoperta del giusnaturalismo processuale in Europa». In Rivista italiana di diritto e procedura penale, p. 95 ss., o adjetivo «justo» adiciona pouco ao substantivo «processo», pois vem a ser nada mais do que um reflexo do fair trial (conceito elaborado na Inglaterra antes da idade moderna) e do due process of law (conceito recolhido na Emenda V da Constituição Americana de 1791). Para ele, a justiça no processo apenas pode ser explicada a partir de um redescobrimento do direito natural (o muito conhecido eterno retorno, ainda que nos tempos atuais isso é muito discutível). Diz AMODIO: «la vaghezza dell’attributo “giusto” è oggi superata dalla positivizzazione che la natural justice ha conosciuto non solo nell’art. 111 della nostra Costituzione, ma anche nell’art. 14 del Patto internazionale dell’ONU sui diritti civili e politici, fonti nelle quali le garanzie del

fair trial sono enumerate in modo preciso e inequivocabile». Procuraremos demonstrar que a razão não está

Doutrina recente também faz uso da expressão «modelo» (ainda que sem definir o que se deve entender por tal expressão) para falar de um modelo universal de processo: o procès équitable.2 Segundo a referida doutrina houve três metamorfoses no direito processual que justificam trabalhar com um modelo universal: (i) a aparição e progressiva importância dos direitos fundamentais processuais nos instrumentos internacionais; (ii) a modélisation das garantias fundamentais de uma boa justiça produto da mondialisation dos procedimentos; e (iii) a própria melhora da técnica nos processos mediante novos princípios

diretores do processo (diálogo, confiança legítima diante da contraparte e do juiz, etc.).3

É claro que não é possível negar essas três mudanças de perspectiva; nada obstante, o modelo de processo justo que será proposto neste trabalho é substancialmente diferente por três razões bem concretas:

(1) Ao contrário de possuir no seu seio outros direitos fundamentais processuais (o que, na verdade, em se tratando de consequências normativas pertenceria mais a um ordenamento jurídico específico, nacional ou comunitário, do que a um verdadeiro «modelo universal»), quando aqui se fala de modelo, alude-se a um paradigma ou um arquétipo, é

dizer, a uma representação teorética ideal e abstrata de coisas ou de outras ideias.4 Nessa

perspectiva, o processo justo como modelo é entendido como uma abstração, apesar de ser, por sua vez, uma concreção da ideia abstrata de justiça, própria do Estado Constitucional (infra, II, 6). Essa abstração que caracteriza o modelo do processo justo manifesta-se, principalmente, pela necessidade de obtenção de uma decisão justa. Mais em frente ver-se- á que é perfeitamente possível delimitar, conceitualmente, uma decisão como justa (infra, II, 7); no entanto, ainda nos encontramos no plano das ideias.

2 Serge G

UINCHARD e outros. Droit processuel – Droit commun et droit comparé du procès équitable, 4ª ed.

3 Ibidem, p. 19-20.

4 Deixe-se constância que não estamos trabalhando com a noção de modelo de Miguel R

EALE. «Estruturas e modelos da experiência jurídica». In O direito como experiência, 2ª ed., p. 163, para quem «modelos jurídicos são, em suma, os que surgem na experiência jurídica como estruturação volitiva do sentido normativo dos fatos sociais; modelos do Direito ou dogmáticos são estruturas teoréticas, referidas aos modelos jurídicos, cujo valor eles procuram captar e atualizar em sua plenitude. Em ambas as hipóteses, todavia, –por mais que se distingam os objetivos que os põem in esse,– há uma nota comum, que é a natureza operacional própria dos instrumentos de vida e convivência humana, governando tanto a intencionalidade volitiva dos modelos

jurídicos como a intencionalidade teorético-compreensiva dos modelos dogmáticos». Embora várias páginas

antes (ibidem, p. xxv), sendo coerente com sua preferência de entender o fenômeno jurídico a partir dos dados da experiência, REALE afirmara que os modelos puramente lógicos possam ter importância decisiva, para ele um modelo é uma estrutura concreta de pensamento, o que difere da proposta aqui realizada.

(2) Como já foi dito (e como veremos com maior profundidade – infra, II, 6.3), o modelo do processo justo vem a ser uma exigência lógica decorrente do Estado Constitucional. É dizer, apenas as ordens jurídicas que, na sua evolução, tenham sido construídas a partir desse tipo de Estado, incorporam de fato um modelo de processo que necessariamente deve responder à justiça. A razão é singela e será explicada mais em frente: uma ordem jurídica que consagrou o modelo de Estado Constitucional tem como exigência, diante do dever de tutelar dos direitos, a realização da justiça. E como é evidente, não é possível afirmar que o Estado Constitucional, sendo um modelo que só algumas ordens jurídicas podem espelhar pelo fato de terem chegado a um determinado estágio civilizatório, é um conceito que possa ser assumido como «universal».

(3) O modelo de processo justo dá ênfase, precisamente, à possibilidade de o processo outorgar justiça, característica que vai muito além de uma estruturação justa do processo, mas que se concentra no resultado. Isto, aliás, não se mostra como uma

preocupação da doutrina que fala do modelo do procès équitable.5

É momento, pois, de desenvolver as premissas e o conteúdo desse modelo do processo justo.

2. «PROCEDURAL JUSTICE»: SOLUÇÃO AO PROBLEMA DA JUSTIÇA NO PROCESSO?

Parte dos problemas milenares com a pergunta de o que seja justiça é a possibilidade de poder definir ou não algo como intrinsecamente justo. Essa discussão, evidentemente, também foi levada para o âmbito processual, a partir do qual surgiram muitas reações para tentar solucionar esse problema. Diversos pensadores, ainda não tendo a preocupação própria dos processualistas, foram determinantes para influenciar àqueles

5 Com efeito, no momento de estabelecer as características do modèle universel de procès équitable (ibidem,

p. 407 ss.), GUINCHARD desenvolve uma série de direitos (ele fala de «garantias») processuais que tem a ver com a justiça no processo, mas, como será matéria de crítica mais em frente, não garante a produção de uma verdadeira decisão justa.

que, posteriormente, renunciaram à busca de uma justiça substancial no processo (porque

ela não existiria). Dois deles são Niklas LUHMANN e John RAWLS.6

Em apertada síntese é possível dizer que, segundo LUHMANN, existe uma grande

preocupação pela maior ou menor aceitação das decisões judiciais em uma sociedade (ou seja, a legitimação do poder estatal). Por isso, a participação no procedimento mostra-se

como um critério suficiente para que o resultado dele seja justo7.

Por outro lado,RAWLS está mais preocupado com as liberdades públicas e com a

distribuição de bens (em sentido amplo) pelas instituições sociais. Para ele, a construção de uma sociedade justa dá-se através de pessoas representativas e racionais mediante um debate equitativo; daí que esse consenso político leva sempre a resultados justos, quaisquer

que eles forem (justiça procedimental perfeita).8 De outro lado, para RAWLS existe também

a justiça procedimental imperfeita, ou seja, um resultado incerto (não necessariamente justo) porque as regras foram impostas e não debatidas. O exemplo que ele oferece é precisamente o processo judicial: a estruturação do procedimento não determina que se possa chegar sempre ao resultado correto.

No entanto, posteriormente RAWLS encarregou-se de esclarecer que para ele

também é importante a justiça substantiva, sendo que a justiça do procedimento sempre depende da justiça do seu resultado provável. Existiria, portanto, uma mútua interpenetração entre justiça (ou equidade) procedimental e substantiva, cada um delas

possuindo valores de procedimento e de consequência.9

LUHMANN e RAWLS influenciaram fortemente o surgimento da chamada

«procedural justice», corrente nascida nos Estados Unidos não no âmbito jurídico, mas no

6 Nesse mesmo sentido, com ampla bibliografia (sobre tudo do common law), cfr. Giulia B

ERTOLINO.Giusto processo e giusta decisione, p. 44 ss.

7 Niklas L

UHMANN.Legitimação pelo procedimento, p. 29 ss. 8 John R

AWLS.A theory of justice, revised edition, p. 74 ss. Para uma exposição crítica da teoria de RAWLS tal como apresentada em 1971, cfr. Alexander PECZENIK. On Law and Reason, 2ª ed., p. 86 ss. Uma exposição crítica sobre a evolução do pensamento rawlsiano pode-se encontrar em Carlos MASSINI CORREA.

Constructivismo ético y justicia procedimental em John Rawls, p. 65 ss. Cfr. também, Reinhold ZIPPELIUS.

Filosofia do direito, p. 171 ss., e também, neste trabalho, infra, II, nota xx. 9

John RAWLS. «Réplica a Habermas» [1995]. In HABERMAS, Jürgen; RAWLS, John. Debate sobre el

ramo da psicologia social (que só posteriormente influenciou os especialistas em Direito).10 O objetivo era fazer experimentos empíricos que viessem a demonstrar de que maneira as controvérsias, tal como enfrentadas pelas cortes, influenciam na avaliação dos litigantes das

suas experiências em um processo judicial.11 Os adeptos a essa teoria chegaram à

conclusão, a partir de dados empíricos, que há uma maior aceitação da conduta dos tribunais no próprio procedimento do que na decisão, principalmente porque existe oportunidade para participar no procedimento, há percepção de neutralidade do juiz, há

respeito pelo juiz e há confiança no juiz.12 Daí conclui-se que a justiça estaria no

procedimento e não na decisão.

O exemplo típico que pode mostrar o que significa essa justiça procedimental é o de um árbitro de futebol. Como é sabido, o árbitro limita-se a apitar faltas, a validar um gol se foi feito segundo o regramento ou invalidá-lo se não o foi, etc. Dessa maneira, sempre que sejam respeitadas as regras do jogo, não interessa qual foi o placar: o time que tenha feito mais goles é o justo ganhador. Em outras palavras, a justiça consegue-se mediante o respeito ao procedimento.

É preciso dizer que o processo civil nos Estados Unidos não está precisamente voltado para levar justiça ao caso concreto, mas propriamente para solucionar

10 Rebecca H

OLLANDER-BLUMOFF. «The Psychology of Procedural Justice in the Federal Courts». In

Hastings Law Journal, p. 132 ss., esp. 142 ss.; Robert FOLGER;JeraldGREENBERG. «Procedural justice: an interpretive analysis of personnel systems». In Research in Personnel and Human Resources Management, p. 141. Para um trabalho extenso e completo sobre o tema, Lawrence B. SOLUM. «Procedural Justice». In

Southern California Law Review, p. 181-321. 11

A ideia é explicada por Tom R. TYLER.«Procedural justice and the courts». In Court Review, p. 26, um dos exponentes mais importantes na atualidade da procedural justice: «The concepts behind procedural justice have developed from research showing that the manner in which disputes are handled by the courts has an important influence upon people’s evaluations of their experiences in the court system. The key finding of that research is that how people and their problems are managed when they are dealing with the courts has more influence than the outcome of their case on the issues noted above. Judgments about how cases are handled are generally referred to as assessments of procedural justice to distinguish them from assessments of the favorability or the fairness of the outcomes that people received. Studies suggest first that procedural justice has an impact on whether people accept and abide by the decisions made by the courts, both immediately and over time. Second, procedural justice influences how people evaluate the judges and other court personnel they deal with, as well as the court system and the law». É bom salientar que a própria

procedural justice possui diferentes teorias. A respeito, amplamente, cfr. Rebecca HOLLANDER-BLUMOFF. «The Psychology of Procedural Justice in the Federal Courts». In Hastings Law Journal, p. 138.

12 Tom R. T

controvérsias.13 Esta é a razão pela qual a teoria da justiça procedimental foi bem recebida naquela experiência jurídica. Nada obstante, quando isso se pretende levar a outros contextos –como o brasileiro–, consciente ou inconscientemente, pergunta-se: será que é suficiente assegurar apenas que um debate seja perfeitamente realizado? Não há possibilidade de existir erro do juiz por ser humano (e, por tanto, falível)? Será que essa justiça, descomprometida com os resultados concretos, é a que realmente procura o processo civil inspirado no contexto do Estado Constitucional?

Esses problemas não são mais do que um indicativo da necessidade de desenhar um modelo filosófico de processo justo alheio a qualquer experiência positiva, com o qual possamos não só julgar outros sistemas, mas também traçar o caminho para futuras reformas no nosso próprio. Com efeito, a única forma de demonstrar coerentemente, por exemplo, o porquê da insuficiência da correção ou da mera aceitação do procedimento para concluir pela justiça da decisão, é partir de um pressuposto do que significa uma decisão materialmente justa. E esse é um dado que não pode se extrair do próprio direito positivo (nem de outro) por aquele que faz esse esforço teórico. É preciso, para esse juízo, partir de um modelo ideal.