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PARTE II – O PROCESSO JUSTO COMO MODELO DE PROCESSO DO ESTADO

7. Por uma teorização da decisão justa Elementos para sua conformação

7.4. Positivismo, moral e interpretação: uma reflexão

Após de todo o assinalado sobre decisão justa, é preciso realizar alguns esclarecimentos adicionais que, por serem importantes, merecem estar separados do discurso anterior.

Em primeiro lugar, somos cientes das preocupações sobre a possibilidade de inclusão da moral na interpretação jurídica (correção moral interna) que, sem dizer que a validade das normas jurídicas depende da conformidade com critérios morais (correção moral externa), chegar-se-ia a sustentar, explicita ou implicitamente, a inseparabilidade entre Direito e moral. Esse último entendimento sói ser comum em correntes tópicas,

retóricas, hermenêuticas ou dialógicas,393 tendo elas como elemento comum o prestígio da

argumentação jurídica.

Mas isso não quer dizer que seja negada a possibilidade de compatibilizar a nossa visão positivista com a teoria lógico-argumentativa da interpretação. Fica claro que «interpretação» não consiste apenas em atividade cognitiva, mas também em operação argumentativa. Isso resulta da diferenciação já exposta entre texto normativo e norma e suas consequências. Sendo a norma uma escolha possível de significado do texto (ou do elemento não textual), então o intérprete deve dizer por que escolheu um significado e não

392

Michele TARUFFO. La motivazione della sentenza civile, p. 238.

393 Dimitri D

outro, e isso só pode dar-se mediante argumentação. Positivismo e argumentação na interpretação, desde o nosso ponto de vista, não são incompatíveis.

Entretanto, damos plena razão Luigi FERRAJOLI quando diz, acidamente, com apoio

em PRIETO SANCHÍS, que a irracionalidade de sustentar a conexão entre Direito e moral

costuma ser «compensada» com uma teoria forte da argumentação.394 Com efeito, sustentar a necessidade de a moral intervir na interpretação jurídica, ademais de constituir inaceitável confusão entre dever-ser e ser (porque se diz que deveria existir uma influência da moral no Direito) pressuporia uma «legitimação incondicional das decisões dos órgãos estatais» com a consequente privação dos cidadãos de «criticar o direito empregando

argumentos morais».395 Afirmar que os tribunais resolvem ou devem resolver recorrendo às

suas concepções morais, por mais racionais, complexas ou sofisticadas que sejam as regras

da argumentação jurídica, implicaria cair em perigosíssimo decisionismo.396 Ele deve ser

evitado a qualquer custo.

Daí que seja muito preocupante, em nossa visão, a grande abertura dada ao intérprete no uso das suas próprias valorações para reconstruir o sentido do texto normativo. Certo, sendo a interpretação uma escolha, ela envolve valorações. Isso –nos parece– é uma margem de discricionariedade inafastável. No entanto, a justiça da decisão, em nossa opinião, implica que essa margem deva ser o mais reduzida possível. Embora nosso trabalho não possa se destinar a elaborar critérios para combater esse grave problema, acreditamos que se trata de tarefa pendente da doutrina especializada.

394

Luigi FERRAJOLI. «Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo». In Revista da Faculdade de

Direito da FMP, p. 11. 395 Dimitri D

IMOULIS. «Moralismo, positivismo e pragmatismo...». In Revista dos tribunais, p. 19.

396 Com efeito, como indica D

IMOULIS (Ibidem, p. 15), «uma concepção aberta da interpretação anula a obrigatoriedade das normas jurídicas e não permite distinguir entre um ordenamento jurídico e uma ordem política e moral que não possui regras jurídicas precisas. Nos últimos anos, foi elaborada uma teoria da argumentação jurídica que concebe a interpretação como um processo volitivo-criativo. A sua meta é a de controlar o processo de tomada de decisão para não cair no arbitrário, que é conhecido como decisionismo. Por este motivo, são elaboradas regras muito sofisticadas de uma argumentação racional e busca-se a solução ideal em um diálogo de especialistas. As teorias abertas e moralistas interessam-se apenas pelo sucesso prático de uma argumentação, isto é, buscam a interpretação convincente em uma situação concreta. Porém, não nos dizem qual é o conteúdo do direito em vigor. Chamo esta ótica de subjetivismo desejado. O seu fundamento é a tese de que o sistema jurídico não só é aberto em confronto com a moral, mas também que é fundado sobre a moral».

Curiosamente, muitas vezes se diz que a justiça consistiria em trabalhar com valores sociais por parte dos tribunais. Pelo menos diante da dramática realidade do ativismo judicial contemporâneo, pensamos exatamente o contrário: «fazer justiça» ou «proferir uma decisão justa», no modelo que tentamos construir, não significa, de jeito nenhum, que o juiz deva recorrer à moral ou aos princípios racionais do Direito. A argumentação oferece razões para obtenção da norma mediante intepretação e sua posterior aplicação, mas ela pouco ou nada vale se os tribunais, ao invés de trabalharem com o ordenamento jurídico, decidissem na prática com base na moral. Não há decisão justa se o juiz julgar de costas ao ordenamento jurídico vigente.

A importância de ter partido, em grande medida, de KANT e, com a contribuição de

outras teorias, ter assumido que entre direito natural ou moral e direito positivo não há uma conexão nem condicionamento da validade (senão um reflexo deste naquela desde que tal ordem jurídica espelhe o modelo de Estado Constitucional) faz com que se rejeite a possibilidade de ignorar a ordem jurídica. Nem o cidadão nem, por lógica consequência, a autoridade cuja função é tutelar seus direitos (reconhecidos pelo ordenamento positivo), pode excluir-se do estado civil, recorrendo a princípios suprapositivos, por mais «racionais» que eles sejam. Isso acontece, por exemplo, quando se busca «acomodar» a ordem jurídica a determinada solução, seja pelo motivo que for. É a partir dessas «interpretações» que começa a desconfiança do cidadão pela funcionalidade do seu sistema legal e também a arbitrariedade, ainda que muitas vezes ela esteja encoberta sob o nome de «justiça». Exatamente por isso é que dedicamos, até agora, tantas páginas para reduzir, no final, o que significa «justiça no processo» para nós.

Finalmente, é possível, saliente-se, qualificar de justa ou injusta uma norma (ou, melhor, a interpretação que possa ser dada a um determinado texto normativo) desde uma perspectiva valorativa externa, isto é, a partir da adequação ou inadequação ao modelo do Estado Constitucional e, consequentemente, ao modelo de processo justo. Daí a utilidade da

construção de um modelo. Entretanto, tal qualificação está destinada –como queria KANT

com sua constituição republicana– ao melhoramento do direito positivo, ou seja, direciona- se ao legislador, e jamais ao juiz, que necessariamente está submetido ao ordenamento posto. E isso é assim porque uma decisão judicial adotada de conformidade com o direito

vigente, mediando uma adequada apuração dos fatos e respeitando os direitos fundamentais processuais será necessariamente justa, entendida esta, se for possível adotar a expressão, como justiça jurídica.