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Correção do procedimento: o respeito aos direitos fundamentais processuais e à legalidade

PARTE II – O PROCESSO JUSTO COMO MODELO DE PROCESSO DO ESTADO

7. Por uma teorização da decisão justa Elementos para sua conformação

7.1. Correção do procedimento: o respeito aos direitos fundamentais processuais e à legalidade

Não há possibilidade de chegar-se a uma decisão justa se os direitos fundamentais processuais forem desrespeitados de forma inaceitável. Disso não existe nenhuma dúvida, pois dependendo da intensidade da violação de determinado direito fundamental, a decisão que se emita pode ser invalidada. Não há decisão justa, por exemplo, se o juiz que julga a causa não é o juiz natural. Também não a haverá se existir uma infração ao contraditório

(por exemplo, uma decisão de terza-via302) ou uma violação na necessária promoção da

simetria entre as posições jurídicas das partes. No marco de uma ordem espelhada no Estado Constitucional, o procedimento deve ser construído pelo legislador infraconstitucional segundo os direitos processuais consagrados na Constituição e, assim sendo, esse procedimento deve ser plenamente observado pelo juiz. Isso não obsta,

300 Alexander P

ECZENIK. On Law and Reason, 2ª ed., p.153: «Moreover, a fully elaborated justification is apt to contribute to rationality and justice rather than to irrationality and injustice. Thus, fulfilment of the criteria restricts irrationality and contributes to justice. Yet, it cannot entirely eliminate unjust and unreasonable content of a normative system». Essa última afirmação de PECZENIK justifica-se no fato de que, para ele, as duas condições necessárias para interpretação judicial são (i) que tenha como suporte nas normas jurídicas socialmente estabelecidas e (ii) que tenha suporte suficiente em normas morais prima facie (ibidem, p. 234- 235). Para isso, segundo ele, para proferir uma decisão justa, a justificação tem de partir de um sistema medianamente coerente (ibidem, p. 145). Para o autor sueco, por exemplo, os sistemas legais de HITLER ou de POL POT, pelo fato de serem extremamente imorais e incapazes de garantir aos seus cidadãos a «legal certainty», o qual redunda na impossibilidade de reduzir a injustiça do próprio sistema mediante o método interpretativo que ele considera correto (ibidem, p. 234).

301

É necessário advertir desde logo, conforme explica Aulis AARNIO. Essays on the Doctrinal Study of Law, p. 173, que embora não seja possível chegar a uma racionalidade perfeita, o grau em que ela seja atingida é diretamente proporcional à aceitabilidade social das decisões judiciais: «In this sense, rational acceptability has the same general role in legal reasoning as the concept of truth has in the (natural) sciences. It is an ideal for DSL. This ideal cannot actually be reached, but it can be approximated. The more the criteria of rational acceptability are fulfilled, the more satisfactory is the reasoning. In other words, the genuine social relevancy of legal reasoning is dependent on its degree of rational acceptability».

302

Cfr. Renzo CAVANI. «Contra as nulidades-surpresa...». In Revista de processo, p. 73, e a bibliografia citada.

entretanto, para que o juiz –pelo menos nos ordenamentos em que é permitido– possa controlar a densificação do processo justo (aqui entendido como princípio constitucional, espelhando um direito fundamental) efetivada pelo legislador.

O que foi dito anteriormente tem a ver com a parte III do nosso trabalho e será abordado adiante. Agora interessa demonstrar qual a vinculação entre procedimento e decisão justa ou, neste ponto, decisão legítima. Isso nos remete necessariamente a um problema de ciência política.

A sentença e, em geral, as decisões dotadas de poder público (em uma palavra, os atos de poder) precisam, para serem legítimas, que de alguma maneira tenham podido ser

adotadas ou construídas com a participação dos próprios destinatários desse ato de poder.303

Os atos de um Congresso ou do Presidente de uma República gozam, a princípio, de legitimidade, porque os destinatários desses atos (o povo) participaram na sua eleição como autoridades. Isso, como é claro, não sói acontecer com a jurisdição, cuja eleição não se dá pela vontade popular, apesar de que os mecanismos para sua seleção estejam, em maior ou menor medida, na Constituição ou nas leis infraconstitucionais. Existe, portanto, um defeito

de legitimidade que tem de ser suprido.304

Já antecipamos de alguma maneira que a procedural justice não é suficiente para espelhar a justiça que o modelo de Estado Constitucional exige a um ordenamento determinado. A aceitação da condução do procedimento pelas partes não diz nada a respeito do resultado que se condensa em decisão que, por sua vez, deve promover, em grau razoável, os valores da dignidade, liberdade, igualdade, verdade e segurança, porque esses valores têm de estar plasmados no ordenamento constitucional e infraconstitucional e,

assim, possam ser prestigiados pelo papel que deve desempenhar a jurisdição.305 Daí que

não é possível aceitar as teorias procedimentalistas que visam apenas a destacar a

303 Cfr. Cândido D

INAMARCO. A instrumentalidade do processo, 6ª ed., p. 89 ss.

304 Cfr. Luiz Guilherme M

ARINONI. Curso de processo civil, vol. 1, 5ª ed., p. 442.

305

É claro, isso não resta a possibilidade de sustentar uma teoria dessas no contexto de um ordenamento apenas preocupado com a solução de controvérsias, mais do que a justiça material das decisões.

legitimidade do procedimento através da participação das partes nele, fazendo com que tal

legitimidade abranja, forçadamente, também à decisão.306

Entretanto, isso não quer dizer que o procedimento possua um valor menor para conformação da decisão justa. Da mesma forma do que uma adequada apuração dos fatos e uma adequada individualização do segmento normativo, interpretação do texto normativo (ou do elemento não textual) e aplicação da norma, o procedimento é um elemento para uma decisão justa. É possível afirmar que a legitimidade do procedimento possui um valor próprio porque essa só se consegue através da participação das partes no processo. Com efeito, permitindo que o exercício do poder estatal da jurisdição seja influenciado por aqueles que o suportarão, efetiva-se a promoção da democracia participativa, que é o fator

que legitima tal poder.307 Essa necessária influência obtém-se através do diálogo paritário

entre juiz e partes308 e, também, no dever de o juiz, como destinatário do contraditório,

espelhar na motivação da sua decisão os fundamentos no marco do debate realizado.309

Não é possível, portanto, descartar a legitimidade da decisão como sendo impossível de ser objetivada, nem colocar tal legitimidade em função da legitimidade do procedimento. Muito pelo contrário, a legitimidade do procedimento está funcionalmente vinculada à legitimidade da decisão. Essa é a lição de Luiz Guilherme MARINONI:

Há quem entenda que não há como pensar em legitimidade da decisão, uma vez que não existe objetividade possível em questões normativas, e há quem –embora admitindo o problema da legitimidade da decisão– suponha que a decisão só pode ser racionalmente avaliada a partir de critérios procedimentais. Para os primeiros é possível falar apenas em legitimação pelo procedimento, e não em legitimidade da decisão. Para os últimos, embora seja viável aludir a legitimidade da decisão, essa legitimidade dependeria da observância de um procedimento em que fossem observadas as condições asseguradoras da correção do seu resultado. De qualquer forma, enquanto os primeiros falam somente em legitimação, os últimos admitem que a legitimidade decorre da observância do procedimento, isto é, que a decisão é legitima quando são observadas as premissas e as características do procedimento, especialmente a participação.

306 Para uma análise crítica das teorias procedimentalistas de F

AZZALARI,LUHMANN, ELY e HABERMAS, destacando suas diferenças, cfr. Ibidem, p. 442-452.

307 Segundo M

ARINONI (ibidem, p. 462), «um procedimento incapaz de atender ao direito de participação daqueles que são atingidos pelos efeitos da decisão está longe de espelhar a ideia de democracia, pressuposto indispensável para a legitimidade do poder». Cfr., também, Hermes ZANETI Jr. Processo constitucional, p. 113 -116.

308 Daniel M

ITIDIERO. Colaboração no processo civil, 2ª ed., p. 71 ss., 113 ss., embora não estejamos de acordo com chamar a isso de «colaboração».

309

Ingo Wolfgang SARLET; Luiz Guilherme MARINONI; Daniel MITIDIERO. Curso de direito constitucional, p. 666-667.

Quando a legitimidade da decisão não importa, há apenas legitimação do exercício do poder pelo procedimento. Mas, no caso em que se entende que a decisão deve ser legítima, a observância das

regras do procedimento é imprescindível para se ter uma decisão legítima. Apenas nesse último caso, e não no primeiro, é que importará saber se a observância do procedimento é capaz de assegurar uma decisão justa ou conforme o conteúdo material dos direitos fundamentais.310

Precisamente neste último ponto do texto transcrito é que a legitimidade da decisão adquire sua autêntica feição: chegar a uma decisão legítima equivale a uma decisão fundada nos direitos fundamentais. E os direitos fundamentais, como situações de vantagem que se encontram na mais alta hierarquia normativa de um ordenamento jurídico positivo, se plasmados no marco do modelo de Estado Constitucional, devem refletir, em grau mais ou menos adequado, os valores que conformam tal modelo.

Cabe, portanto, concluir o seguinte: se a legalidade de um procedimento constrói-se com base nos direitos fundamentais processuais, e se uma decisão legítima deve estar espelhada, por sua vez, nos direitos fundamentais, então os órgãos jurisdicionais, ao exercer o poder público, devem respeitar esse procedimento, sem que isso seja óbice, como foi enunciado, para que possam controlar a constitucionalidade do trabalho desenvolvido pelo legislador infraconstitucional.

7.2. Adequada apuração dos fatos da causa substanciada na busca pela verdade no