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A justiça como valor e como valor positivado Justiça e juridicidade

PARTE II – O PROCESSO JUSTO COMO MODELO DE PROCESSO DO ESTADO

5. A justiça como valor e como valor positivado Justiça e juridicidade

Após a exposição precedente, desenvolvemos a porção do discurso filosófico e jus- filosófico da justiça em medida –acreditamos– suficiente para continuar com o tema. A partir deste item corresponde examinar com maior vagar a ligação entre as noções de justiça e Estado Constitucional, sendo que a nossa tomada de posição sobre tão difícil tema ficará ainda mais explicitada.

Autorizada doutrina entende que o Estado Constitucional tem um dos seus

princípios estruturantes (corações políticos) no Estado de Direito,209 que possui cinco

207 Para preservar o rigor científico, consideramos necessário distinguir o Estado Constitucional como ideia e,

de outro lado, um ordenamento jurídico concreto que, eventualmente, tenha consagrado, em grau maior ou

menor, esse modelo de Estado. Do contrário, os discursos confundir-se-iam ao não ficar claro se se está

descrevendo um direito positivo (ser) ou se se fala do modelo. Por exemplo, quando Luiz Guilherme MARINONI. Curso de processo civil, vol. 1, 5ª ed., p. 25 ss., fala de «Estado liberal de Direito» ou de «Estado Legislativo» refere-se a um fenômeno histórico. Trata-se de uma descrição, que também está presente ao desenvolver os elementos do «Estado Constitucional» (ibidem, p. 67, 94 ss.) que estariam plasmados na ordem jurídica brasileira. Já Daniel MITIDIERO. Antecipação da tutela, p. 60 ss., ao falar também de Estado Constitucional, embora não sendo explícito, está descrevendo as características que ele entende que pertencem ao modelo.

208 Cláudio Ari M

ELLO. Kant e a dignidade da legislação, p. 148.

209

José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito constitucional e teoria da Constituição, 7ª ed., p. 243 ss. Cabe indicar que o autor está precipuamente focado em explicar o sistema constitucional português.

dimensões fundamentais: (i) juridicidade; (ii) constitucionalidade; (iii) sistema de direitos fundamentais; (iv) divisão de poderes; e (v) garantia de administração autónoma local. No que tange à juridicidade:

O direito compreende-se como um meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir esta função ordenadora, o direito estabelece medidas ou regras, prescreve

formas e procedimentos e cria instituições. Articulando medidas ou regras materiais com formas e

procedimentos, o direito é, simultaneamente, medida material e forma da vida colectiva (K. HESSE). Forma e conteúdo pressupõem-se reciprocamente: como meio de ordenação racional, o direito é indissociável da realização da justiça, da efectivação de valores políticos, económicos, sociais e culturais; como forma, ele aponta para a necessidade de garantias jurídico-formais, de modo a evitar acções e comportamentos dos poderes públicos arbitrários e irregulares.210

O Direito não pode desempenhar o papel de ser uma ordem político-social construída a partir da racionalidade se não se encontrasse inspirado em determinados valores (infra, II, 6). A Constituição do Estado Constitucional, «não pode ter apenas como função a de fazer possível o exercício institucionalizado do poder político, senão a de fazer

possível um poder político institucionalizado desde certos valores e fins assumidos».211 E

esses valores e fins, em grande medida, condicionam o uso da Carta Fundamental como fonte de Direito, tendo de refletir essa prioridade axiológica e justificativa que, por sua vez, se adotada, plasmar-se-á nos juízos normativos internos, nos juízos de validade, no método jurídico, etc.212

No entanto, dois aspectos têm de ser salientados imediatamente: (i) o Estado Constitucional é um modelo de Estado adotado por uma Constituição, portanto, ela encontra-se em dimensão diferente àquele; (ii) juridicidade e justiça estão claramente vinculados (a primeira remete à segunda) mas não podem ser confundidos. Ambos os aspectos são indissociáveis e partem de um único raciocínio que, a partir da exposição nos tópicos anteriores, é da mais alta importância para clarificar o discurso.

Existem determinados valores que devem ser recolhidos por uma Constituição para concluir que ela consagra um verdadeiro Estado Constitucional. Por sua parte, isso também quer dizer que nem toda Constituição gera um Estado Constitucional, dado que aquela, na sua acepção material, vem a ser nada mais do que um documento que consagra a

210 Ibidem, p. 243-244. 211

Josep AGUILÓ.La Constitución del Estado Constitucional, p. 51. 212 Ibidem, p. 52.

normatividade mais elevada de um Estado, atinente à distribuição de competências,

organização do poder, forma de governo etc.213 «Estado Constitucional», portanto, está

muito longe ser apenas um «Estado com Constituição». Os valores são anteriores e externos à ordem jurídica instalada pela Constituição, e uma vez dada, passam a ser positivados por ela. Com o advento da Constituição e do ordenamento jurídico é absolutamente indispensável distinguir entre «valor» e «valor positivado» (embora, como já foi dito, se trate de uma noção que rigorosamente não é exata).

Vale a pena salientar que a imensa maioria nada doutrina de direito constitucional, na sua típica postura anti-positivista, inclui o discurso axiológico dentro do discurso

jurídico.214 Ou seja, afirma-se uma pertença do elemento valorativo ao elemento jurídico,

deixando de distinguir entre «valor» e «valor positivado». Entretanto, acreditamos que essa posição não é correta. Tendo já explorado a doutrina kantiana e conjuntamente com a exposição crítica sobre a separação entre moral e Direito no pensamento de alguns juristas, fica claro por que nós assumimos a posição de o valor e o Direito serem âmbitos ou dimensões separadas e plenamente identificáveis entre si.

213 Paulo B

ONAVIDES. Curso de direito constitucional, 27ª ed., p. 80-81.

214 Cfr. Antonio Enrique P

ÉREZ LUÑO. Los derechos fundamentales, 8ª ed., p. 20-21, 51, 61 ss.; Antonio Enrique PÉREZ LUÑO. La tercera generación de derechos humanos, p. 293 ss. (aqui com apoio em Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA); Gustavo ZAGREBELSKY. El derecho dúctil, 9ª ed., p. 122 ss. (embora o autor tenha uma posição bastante moderada sobre o tema); Ingo Wolfgang SARLET. Dignidade da pessoa humana e

direitos fundamentais, 9ª ed., p. 81 ss.; Jorge MIRANDA. Manual de direito constitucional, tomo II, 4ª ed., p. 231-232, recorrendo a Castanheira NEVES (a mesma exposição encontra-se em Teoria do Estado e da

Constituição, 1ª ed., p. 434 ss.); JuarezFREITAS. A interpretação sistemática do Direito, 3ª ed., p. 38, 113 ss.; Paulo BONAVIDES. Curso de direito constitucional, 27ª ed., p. 271, 275, 293, e a doutrina que segue com fidelidade o pensamento desses juristas. Inclusive chega a condenar-se o positivismo com razões pouco claras, como o faz Ingo Wolfgang SARLET. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 9ª ed., p. 85, nota 189, ao exprimir: «(...) parece-nos a necessidade de jamais esquecer a permanente presença dos valores no sistema normativo, seja nos princípios, seja nas regras, pena de, aí sim, incorrermos em grave equívoco e merecermos até mesmo o rótulo de positivistas no sentido formalista kelseniano». Na verdade, não vemos nenhum problema em assumir uma posição positivista no sentido kelseniano, como se isso significasse, por si próprio, algo negativo. Ainda na doutrina constitucional, aqueles que entendem o fenômeno constitucional desde uma perspectiva positivista constituem escassas exceções. Cfr. Luigi FERRAJOLI. «Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo». In Revista da Faculdade de Direito da

FMP; Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS. Teoria geral dos direitos fundamentais. Já na doutrina

processual com forte preocupação pelo entendimento do processo civil a partir dos direitos fundamentais, fala indistintamente de «valor» e «princípio» para qualificar a efetividade e a segurança, Carlos Alberto ALVARO DE OLIVEIRA. Do formalismo no processo civil, 4ª ed., p. 100 ss., e a doutrina que se alimenta mais de perto das lições do professor gaúcho.

Se é bem verdade que os valores influenciam a construção do ordenamento positivo, eles dirigem-se ao legislador, nomeadamente o constituinte (no caso do legislador infraconstitucional, ele tem o dever de adaptar os textos normativos de conformidade com as normas constitucionais). Ele tem à sua disposição a possibilidade de consagrar leis de liberdade (no sentido kantiano) e, ademais, pode fazer uso de um plexo de valores que a sociedade compartilha em um contexto histórico-social determinado. É com base neles que cria o direito positivo. Já o juiz, em nosso entender, tem outra função: ele tem o ordenamento jurídico como ferramenta de trabalho, o qual tem de aplicar adequadamente no caso concreto. O juiz, nem sequer a Corte Constitucional de um país, não deve trabalhar diretamente com valores, sob pena de cair no irracionalismo e no subjetivismo, ambos inadmissíveis para um aplicador do Direito. Como é que pode o juiz questionar a escolha valorativa feita pelo constituinte?

Note-se que trabalhar com valores está muito longe de interpretar a Constituição segundo eles. A razão disso é que, a partir da diferenciação entre texto e norma, a atividade do intérprete constitui uma autêntica reconstrução do ordenamento jurídico através da argumentação jurídica, sendo que «interpretar» significa a atribuição de sentido a um texto normativo ou a um elemento não textual. E daí que essa atribuição de sentido, conduzida por parâmetros lógicos e argumentativos, importa valorações do intérprete. Destarte, não podemos estar de acordo com a doutrina que entende a «interpretação constitucional» como uma operação que envolve recorrer a valores, não para preencher conteúdo às normas, mas

para «demonstrar» a presença de valores no ordenamento jurídico.215 Sobre esse tema

voltaremos mais adiante (infra, II, 7.4).

Se uma das funções do Direito é a de instituir uma ordem racional e orientar

condutas,216 não é possível que um juiz possa recorrer a valores para decidir uma

215 Para uma proveitosa esquematização da interpretação constitucional, cfr. Pierluigi C

HIASSONI. Tecnica

dell’interpretazione giuridica, p. 154 ss. 216

Segundo Joseph RAZ. O conceito de sistema jurídico, p. 225, o Direito é normativo porque «tem a função de guiar a conduta humana de duas maneiras: seja por afetar as consequências de certo rumo de conduta, constituindo uma razão convencional para a abstenção dessa conduta; seja por afetar as consequências de certo rumo de conduta, constituindo uma razão para executar ou não essa conduta, dependendo da vontade do sujeito». No entanto, frise-se que a concepção pessoal do autor é sustentar que nem todas as leis de um sistema jurídico são normas.

controvérsia, deixando de aplicar, por exemplo, as normas jurídicas. Os valores são essencialmente subjetivos e, no âmbito da decisão, subjetivamente incontroláveis.

Está fora de toda dúvida que, a partir das premissas filosóficas das quais partimos, o valor mais importante é a justiça. Isso é assim porque engloba a dignidade, liberdade e igualdade. Não é um conceito vazio; pelo contrário, sua formulação está dotada de conteúdo. A relação que vemos entre moral e Direito corresponde à relação entre justiça e juridicidade. Justiça, por ser o elemento de maior importância da dimensão axiológica; juridicidade, porque ela é capaz de refletir o íntegro da dimensão normativa.

É plenamente correto dizer que juridicidade remete à ideia de justiça.217 Porém, isso

só é verdadeiro se a juridicidade de que se fala está inserida no contexto de um ordenamento que adota o modelo de Estado Constitucional. Um Estado Constitucional é, por essência, um Estado cuja normatividade consagra, em grau razoável, a justiça. As implicações dessa afirmação examinar-se-ão a seguir.