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3.6 Porque Carolina Maria de Jesus

3.6.1 A importância do livro "Quarto de despejo"

Souza (2010, p. 3) sintetiza a trajetória de Carolina:

Mulher negra, descendente de escravos e agricultores, migrante, Carolina atravessa diversos territórios, ao sair do campo exerce várias ocupações desde empregada doméstica, vendedora ambulante até chegar à catadora de papel, como forma de resistência à pobreza e exclusão em que vivia ela se apropria desse instrumento cultural até então restrito às classes letradas e busca através da escrita novas vias de participação social. (SOUZA, 2010,p.3)

Souza (2010, p. 1) nos informa que “Quarto de despejo: diário de uma favelada” foi um dos maiores best-sellers do ano de 1960. Teve oito edições só no ano em que foi publicado e vendeu mais de 90 mil exemplares, sendo traduzida ainda para treze idiomas”. Essa mesma autora aponta que “o mundo da alvenaria não estava disposto se abrir para uma aceitação ampla da autora, seja social e literariamente, limitando as possibilidades de acesso de Carolina nesse novo mundo [...]” (Souza, 2010, p.2).

Apesar do sucesso editorial e a posterior saída da favela, ela não estava socialmente inserida neste novo mundo, do qual foi excluída durante toda a sua vida. Não podemos esperar que o dinheiro ressignifique todas as suas vivências.

Quando eu estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores do que nós? Será que o predomínio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela? (JESUS, 2014, p. 50)

O acesso ao dinheiro não a fez detentora dos meios de produção, mantendo-a portanto, na subalternidade na sociedade de São Paulo. Rendimentos que deram a ela

acesso à uma casa de alvenaria, em um bairro diferente, não mudou as relações sociais de poder. Ela não conseguiu poder para ser dona dos meios de produção do meio editorial. Mesmo sendo consagrada internacionalmente, ela continuou sendo trabalhadora que precisava produzir, para ter acesso aos bens de consumo. O seu trabalho intelectual e não braçal nas ruas da cidade, não alterou seu lugar de proletária.

Carolina era estranha aos lugares de poder e também estranha à favela. Ela se considerava diferente das aspirações e das vivências dos sujeitos dos dois lugares. Ela não se identificava com as conversas das faveladas, não gostava de ouvir o que falavam na torneira, não aspirava um homem para conviver. Por outro lado, quando fazia viagens, participava de jantares com políticos, jornalistas, intelectuais, pessoas da sala de visita, ela também não estava inserida nas suas discussões e vivências. Ela tinha um olhar diferente dos dois mundos em que transitou. Vale ressaltar que essa falta de sentimento de pertencimento, pode desencadear sofrimentos psíquicos.

Entre as mulheres negras que ascendem socialmente, é comum sentir dificuldade com parentes e amigos nas camadas sociais inferiores. Apesar de estar na sala de visitas, ainda podem sofrer racismo e todos os preconceitos que sofriam antes. O acesso aos bens de consumo e status social não mudam a hierarquia social, pois o racismo faz parte da estrutura e faz com que essas pessoas ainda estejam no quarto de despejo, apesar de estarem com os pés nas salas de visitas. Santos (2010, p. 6) nos fala da sensação de confusão de Carolina, que estranhava o fato de ter se tornado uma atração turística, de ser divulgada, falada.

A condição de escritora de Carolina não foi uma definição heteróloga, mas interna, explícita de si mesma. Ela se define como escritora, mesmo antes de Audálio Dantas a ter conhecido e de ter seu livro ser publicado. Condição que é confirmada pelos moradores da comunidade que sabiam que ela escreve. Quando comunicados que estariam no livro, buscaram informações de como seriam retratados. É uma preocupação com a imagem. Apesar de estarem em situação subalterna, estes ainda se preocupam com a forma em que serão retratados. Carolina, no livro, relata situações nas quais não podia tomar banho e andava suja contra a sua vontade, situação que lhe causa desconforto e desejo de apresentar-se de outra forma.

Escrivivência, um termo cunhado por Conceição Evaristo diz respeito à escrita que parte do próprio sujeito, de suas vivências, como nos reportamos anteriormente. As etnografias poderiam ser classificadas como escrivivências, nas quais o etnógrafo se coloca como objeto da própria pesquisa, como tema a ser discutido, avaliado e

problematizado. Assim fez Carolina ao escrever um diário para ser publicado. Um diário do seu cotidiano, no qual ela enfatiza os episódios da fome, o trabalho penoso que lhe fazia doer as costas, e as pernas.

Carolina narra seus dias de doença com muita aflição, pois ela e os filhos iriam passar fome. A favela, pelos olhos de Carolina, não é uma teia de solidariedade, um local de vivência harmônica dos excluídos. Mas um caldeirão de excitações, de violências. Somente nos dias que Carolina está muito cansada não é registrado um episódio da favela.

O quarto de despejo da cidade de São Paulo é o cenário de muitos personagens que vivem experiências diversas. Os homens, por exemplo, são retratados de diversas formas, os que trabalham no comércio, os que assediam e agridem as mulheres, os que são sustentados por mulheres, os doentes. São narrativas de um gênero que possui diversas origens formas de estar no ambiente. A favela é formada por migrantes como Carolina, que foram para São Paulo, com esperança de melhores oportunidades de vida. Além de dividir com Carolina o cenário, os personagens do romance dividem a invisibilidade, que só era amenizada nas eleições e nos momentos de caridade das pessoas da sala de estar. São narrados durante o romance, diversos momentos em que políticos se dirigem à favela para fazer promessas, e que terminam não sendo cumpridas.

O uso político das pessoas não é novidade na vida de Carolina, que apresenta posições duras em relação a eles, não se deixando levar pelas propagandas e pelo discurso populista. Demonstra, nessas críticas, um conhecimento político e social das mazelas que lhe são imputadas e as responsabilidades dos entes governamentais.

Os órgãos governamentais são apresentados durante o texto como ineficazes por não atender as demandas das pessoas, como quando Carolina adoece e ela decide procurar o Serviço Social. Depois de percorrer a cidade inteira atrás do local correto, acaba presa sem ao menos conhecer o motivo.

A Secretaria de Saúde aparece no texto em atividades que envolvem o controle da leishmaniose. O órgão realiza ações de prevenção com a apresentação de vídeo. O material certamente foi utilizado como ferramenta, pois era comum na favela do Canindé apresentação de filmes para evangelização, feita por padres. Na década de 1950, o nível de desigualdade no acesso à alfabetização no Brasil era bastante alto, e que essa ferramenta deve ter sido escolhida para facilitar o contato com a comunidade.

Mesmo tendo essa sensibilidade com a escolha do suporte para transmissão dos conhecimentos, o mesmo não acontece para a compreensão social da comunidade.

Percebe-se que a recomendação de saúde não reconhece a falta de água por exemplo na ação sobre a transmissão sobre esquistossomose. Ao informar sobre a contaminação da água da lagoa eles não perceberam que a lagoa era o único lugar disponível para lavar roupas e louças e quem não podia pagar para ter acesso à bica, a única fonte de água para consumo para todas as atividades.

A sensibilidade de Carolina ao se colocar como narradora e personagem dos dilemas de uma comunidade, pode ser contestada pela falta de críticas às situações vividas pelos personagens, mas está presente por dar existência à essas pessoas. A autora apresenta a histórias sem muitos julgamentos morais, entendendo que faz parte de muitas de suas vivências, uma reação violenta.

Os estados constantes de fome e precariedade explicam a violência, mas ainda são muito distantes para quem não viveu em tal estado. A carência contínua, causa um estado de constante sofrimento, amenizado pelo álcool e pela alienação. As mulheres e homens do Canindé escolhem se alienar da realidade em que vivem, atitude que Carolina decide não ter para poder dar subsistência a seus filhos. Ela decide que o dinheiro adquirido na venda de recicláveis será revertida para alimentar os filhos e não um vício que poderia deixá-la em estado de entorpecimento. Tal decisão está sempre sujeita à mulher, que por carregar o peso social da maternidade, lhe é cobrado um comportamento que privilegie os filhos em detrimento da própria condição. Tal fato é percebido nas caminhadas de Carolina na busca do filho, que já está em vulnerabilidade pelas ruas de São Paulo e sob o qual ela ainda busca ter alguma tutela.

"Quarto de despejo" trata as personagens negras em sua diversidade. No diário estão retratadas pessoas periféricas em seus dilemas cotidianos em uma sociedade anterior a construção da concepção do Estado de Bem-Estar Social. Nesta concepção, o Estado não é servido por uma plebe republicana, mas deve utilizar de seus recursos para a construção de políticas públicas que abarque as necessidades da população.

No dia 19 de agosto de 1960, Carolina lançou seu livro na Livraria Francisco Alves em São Paulo com venda de 800 exemplares, segundo informações colhidas pelo biógrafo Tom Farias (2017, p. 283). Farias (2017, p. 221) nos relata que apareceram ex-chefes e patrões de Carolina, como o Doutor Eurípedes de Jesus Zerbini, e personalidades como Edson Arantes do Nascimento, Benedito Ruy Barbosa e Clovis Moura. No dia 21 de agosto o jornal “Folha de São Paulo”, segundo Farias (2017, p. 225) inseriu “Quarto de despejo” em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. O biógrafo também registra (FARIAS, 2017, p. 227) que a primeira tiragem de dez mil exemplares esgotou em uma semana, com 497

livros vendidos em uma única sessão de autógrafos. Carolina ficou conhecida nacionalmente e internacionalmente.

Na Livraria Francisco Alves, Farias (2017, p. 261) relata que eram vendidos cerca de 500 exemplares por dia. “Um livro normal, considerado “best-seller”, pelos jornais, como “Folha de São Paulo”, podia vender cerca de 50, nada além do que isso.” (FARIAS, 2017, p. 261). Carolina recebeu homenagens de instituições do movimento negro, de associações de mulheres, coroações de rainha de ébano, de centros acadêmicos [...], jantares, almoços, visitas a hospitais beneficentes, escolas e igrejas (FARIAS, 2017, p. 261).

“As primeiras repercussões do livro no exterior ocorreram nos Estados Unidos, com inserções de reportagens, feitas por correspondentes no Brasil [...] “.(FARIAS, 2017, p. 287). O biógrafo nos dá um panorama sobre as traduções do livro:

As edições estrangeiras de “Quarto de despejo” surgiram, em sua maioria, entre os anos de 1961 e 1965. O primeiro país a traduzir o livro foi a Dinamarca, seguido por Holanda e Argentina. [...] No ano de 1962, o livro saiu na França, Alemanha Ocidental, Suécia, Itália, Tchecoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos e Japão. Há indícios da publicação do livro neste ano na União Soviética, mas pode também ter acontecido no ano seguinte. Em 1964, o livro saiu na Polônia, no ano seguinte na Hungria e em 1965, em Cuba. Fora desses países, circulava no Uruguai [...], Espanha e Venezuela. Apenas em Portugal foi proibido, pelo regime Oliveira Salazar, sucedido por Marcelo Caetano, que duraria até 1974 [...] (FARIAS, 2017, p. 297)

Carolina foi utilizada como exemplo de pessoa negra no curso da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, disponibilizado no UNASUS pela Plataforma Arouca. A citação feita à Carolina retrata sua condição como escritora e mulher negra, e cria-se uma situação fictícia de diálogo no serviço de saúde. O conteúdo do curso objetiva apresentar a política e utiliza de Carolina e outras pessoas negras para exemplos nos serviços de saúde.

3.7 Violência

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que

resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (KRUG, DAHLBERG, MERCI, ZWI, LOZANO, 2002, p.5)

A OMS dividiu a violência em três grandes categorias de acordo com quem comete o ato de violência em auto-infligida, interpessoal e coletiva. Em complemento à definição, a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da , trouxe diversos avanços para a proteção da mulher, para coibir e prevenir os atos de violência no ambiente doméstico. A legislação traz importantes definições, considerando:

Violência física: qualquer conduta que ofenda integridade ou saúde corporal;

violência psicológica: qualquer conduta que cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

violência sexual: qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

violência patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)

O Ministério da Saúde, em 2006, ano da edição da Lei Maria da Penha, instituiu o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) por meio da Portaria nº 1.356, de 23 de junho do mesmo ano. Por meio da ficha de notificação de violências interpessoais e autoprovocadas, o Ministério consegue registrar as ocorrências que envolvam este

fenômeno. Na ficha devem ser registrados os casos suspeitos ou confirmados pelo profissional de saúde. O Ministério informa (BRASIL, 2018) que para crianças, adolescentes e idosos haverá a obrigação de comunicação a órgãos específicos, o que não ocorre para mulheres adultas, terão o direito ao atendimento integral à saúde garantido. Essa fragmentação da saúde e da segurança pública tem causado riscos para a mulher, que poderiam a partir do acionamento dos órgãos da saúde, ter acesso à medidas de proteção e coibição da violência.

São casos de notificação compulsória de acordo com Brasil (2018) a violência doméstica/ intrafamiliar, a sexual, a autoprovocada, o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, o trabalho infantil, a tortura, a intervenção legal e as violências homofóbicas.