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O silenciamento da população negra e os questionamentos da representatividade

A possibilidade de subalternos falarem de saúde foi uma das questões que nos inquietaram para a escrita deste texto. Por mais que existam vozes das periferias, elas não têm o mesmo poder de influência para mudar a situação de saúde, tal como as falas acadêmicas. Esse texto busca trazer a voz marginal, para que ela diga por si própria suas inquietações em saúde. Eles não precisam ser tutelados para serem ouvidos, eles precisam ser ouvidos para deixarem de ser tutelados.

Ao buscar aprender a falar ao (em vez de ouvir ou falar em nome do) sujeito historicamente emudecido da mulher subalterna, o intelectual pós-colonial sistematicamente "desaprende" o privilégio feminino. Essa de aprendizagem sistemática envolve aprender a criticar o discurso pós-colonial com as melhores ferramentas que ele pode proporcionar e não apenas substituindo a figura perdida do (a) colonizado (a). (SPIVAK, 2010, p. 88)

A tutela rouba o protagonismo de quem realmente conhece a realidade vivida. Muitas mulheres têm feito discursos em nome dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres negras, que por sua vez, têm encontrado pouco espaço para falar de suas inquietações. Mesmo com dados epidemiológicos e diversas métricas, não é a voz das negras que interpreta os dados e dá significado a eles. Elas são sufocadas pela tutela paternalista que as impedem de falar por si mesmas.

A invisibilidade das pessoas negras faz com que suas realidades, seja na saúde e em outras áreas, sejam retratadas pela ótica racista de construção social. A literatura, para Dalcastagnè (2008), é um espaço que tem afastado autores negros, com poucos escritores e poucos personagens. Trata-se de homogeneidade de discursos que invisibiliza as pessoas negras. “A ausência de personagens negros na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma vez que implica na redução da gama de possibilidades de representação.” (Dalcastagnè, 2008, p. 97)

Na pesquisa feita por Dalcastagnè (2008) com 258 romances e 165 escritores diferentes, 93,59 % dos escritores são brancos. Em 56,6% do romances não há nenhuma personagem não branca. Os negros são 7,9 % das personagens, 5,8 dos protagonistas e 2,7 % dos narradores. 33% das crianças e 56% dos adolescentes negros são dependentes químicos em contraposição a 4% das crianças e 8% das personagens adolescentes brancas. Mais de um quinto dos negros representados nos romances são bandidos ou contraventores, “[...] o homem negro diante da mulher branca continua sendo representado como o animal sujo cobiçado pela fêmea depravada, ele é o corpo desprezível que a mulher branca, em sua irracionalidade deseja” (Dalcastagnè, 2008, p. 98). As mulheres negras aparecem nas atividades de domésticas e prostitutas, enquanto as brancas a ocupação predominantemente a posição de donas-de-casa. As personagens de religiões de matriz africana em 81,1% dos casos são pobres e miseráveis.

Os dados da pesquisa de Dalcastagnè (2008) apontam como estereótipos têm sido perpetuados na representação de negras e negros. O imaginário popular é permeado por essas imagens e acaba por legitimar a desigualdade racial. Não somente nos romances mas em diversos veículos, o preconceito contra negros é confirmado a exaustão. Os programas de televisão que mostram pessoas negras em situação de conflito com a lei têm o mesmo papel que o filme “Cidade de Deus” onde 99% dos personagens negros estão envolvidos com o crime. O preconceito fica justificado e qualquer ação violenta contra os corpos negros, está legitimada no imaginário popular.

Grosfoguel (2016) analisa a construção do conhecimento ocidental, apontando a construção de hierarquias entre conhecimentos e o silenciamento de narrativas:

O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais importantes do mundo contemporâneo. O privilégio epistêmico dos homens ocidentais sobre o conhecimento produzido por outros corpos políticos e geopolíticas do conhecimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão que tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo. A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo. (GROSFOGUEL, 2016, p.25)

O autor adverte para a construção monolítica do pensamento da universidade ocidental, restrita à experiências e problemas da Itália, França, Inglaterra Alemanha e Estados Unidos. De um lado está o “privilégio epistêmico” e do outro, a “inferioridade epistêmica”. Os países citados dão sequência ao cânone, o conhecimento validado por uma parte da sociedade global. Não por acaso, são destes países os principais periódicos e eventos científicos em saúde, produzindo tecnologias, informações, tratamentos.

A invasão imperialista foi marcada por epistemicídios, sendo que Grosfoguel (2016, p. 40) argumenta que, “Nas Américas os africanos eram proibidos de pensar, rezar ou de praticar suas cosmologias, conhecimentos e visão de mundo. Estavam submetidos a um regime de racismo epistêmico que proibia a produção autônoma de conhecimento.” O genocídio/ epistemicídio também influiu sobre as mulheres que eram as transmissoras da tradição oral. “Os “livros” eram os corpos das mulheres e, de modo análogo ao que aconteceu com os códices indígenas e com os livros dos muçulmanos, elas foram queimadas vivas.”(GROSFOGUEL, 2016, p.42)

Um dos meios é reconhecer que todo o conhecimento foi afetado pelo eurocentrismo “e muitos aspectos do eurocentrismo foram engessados nessas novas epistemologias” (GROSFOGUEL, 2016, p. 44). Existem outras perspectivas que sobreviveram a violência do eurocentrismo e essas podem ser utilizadas para romper com a hegemonia do conhecimento. Grofoguel (2016) apresenta alguns outros caracteres da transmodernidade:

Ademais, a transmodernidade pede por diálogos interfilosóficos para produzir a pluralidade de sentidos, onde o novo universo também é plural. Entretanto, a transmodernidade não é, de modo algum, equivalente a uma celebração liberal e multiculturalista da diversidade epistêmica do mundo, onde as estruturas de poder permanecem intactas. A transmodernidade é um reconhecimento da diversidade epistêmica sem o relativismo epistêmico. O chamado por uma pluralidade epistêmica, como uma oposição ao universalismo epistêmico, não é equivalente a uma posição relativista. Ao contrário, a transmodernidade reconhece a necessidade de um projeto global compartilhado contra o capitalismo, o patriarcado, o imperialismo e o colonialismo. Mas ele rejeita a universalidade das soluções, onde um define pelos outros qual é a “solução”. Universalidade, na Modernidade europeia, significava “um define pelos outros”. A transmodernidade clama por uma pluralidade de soluções, onde “muitos decidem por muitos”. A partir de diferentes tradições epistemológicas e culturais surgirão também respostas diferentes para os mesmos problemas. O horizonte transmoderno tem como objetivo a produção de conceitos, significados e filosofias plurais, bem como de um mundo plural. (GROSFOGUEL, 2016, p.45)