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A equidade não é realizada somente em nome dos usuários que estão em situação de desigualdade. Deve ser promovida junto com elas. As pessoas que, de forma transitória ou permanente, estão em situação de insegurança, não são somente alvos das atividades de promoção de saúde, elas devem ser também as pessoas que constroem esse olhar de equidade.

Mas antes de avançarmos neste debate é preciso definir a equidade. Geralmente em apresentações visuais é apresentada a imagem de três pessoas de alturas diversas querendo ver um jogo de beisebol por detrás de uma cerca. Essa imagem apesar de ser ilustrativa e de ser bastante utilizada tem algumas dificuldades, ela apresenta um jogo que não é popular no Brasil e que as pessoas não se sentem representadas, se fosse um jogo de futebol, as pessoas poderiam se entender melhor na imagem e no desejo de assistir ao jogo, nem que seja pelo buraco da cerca. Outra questão na imagem é que a equidade seria de fato realizada não com todos podendo ver o jogo pela cerca, mas com todos podendo ver o jogo dentro do estádio. Assistir o jogo pela cerca responde a parte das necessidades, mas não a globalidade, e por isso esse conceito é importante. A igualdade como conceito diz que todos podem assistir ao jogo, seja no estádio, pela televisão, atrás de uma cerca, ouvindo pelo rádio, ou por tradução de libras. O acesso assim faria todos iguais, a equidade problematiza esse acesso, e faz com essas desigualdades sejam observadas e que as cercas sejam discutidas.

Barros e Sousa (2016, p. 15) analisam que a equidade pode ser entendida como uma desigualdade entre desiguais, ou seja, uma regra de distribuição desigual para indivíduos que se encontram em situações distintas ou como igualdade entre iguais, ou seja, uma regra de distribuição igualitária entre aqueles que estão em igualdade de condições. (BARROS e SOUSA, 2016, p.15)

A equidade não consegue resolver todos os problemas da sociedade, pois muitas das mazelas que causam desigualdades são estruturais. Barros e Sousa (2016, p. 16) que ela pode ser vista também como uma “estratégia para atingir a igualdade de oportunidades no tocante ao usufruto de boas condições de saúde e de acesso aos serviços de promoção, prevenção e recuperação, levando-se em conta as disparidades de ordem social, étnica, econômica e cultural.” Essa construção passa por dar voz aos sujeitos que estão em situação de disparidade social para que eles possam expressar como as desigualdades afetam suas condições de saúde.

A política de saúde já percebeu essa necessidade de construção conjunta e por isso criou comitês de promoção da equidade. Eles têm o objetivo de dar voz para pessoas marginalizadas e sempre lembrar aos gestores de saúde da realidade na qual eles estão inseridos. Costa e Lionço (2006), ao analisar o potencial dos Comitês Técnicos de Promoção da Equidade adotados pelo Ministério da Saúde desde 2003, informam que estes não contemplam todas as facetas de exclusão de grupos que compõem a sociedade, mas estas foram escolhidas por causa de uma inexistência de institucionalização de políticas prévias de saúde que contemplassem as necessidades de certos grupos, que no momento da publicação do artigo eram a População Negra, LGBT, e Campo, Floresta e Águas.

Os comitês seriam espaços de orientação, articulação, interlocução, provocação e construção de práticas transversais de saúde. As autoras afirmam que as necessidades e demandas devem ser compreendidas a partir das indicações dos próprios grupos de acordo com a sua visão de saúde e bem-viver. Mas ainda é questionável sobre a possibilidade de real escuta das pessoas subalternas, Spivak (2010, p. 126)”. As Portarias, e portanto leis, não garantem que as considerações do colegiado serão realmente incorporadas aos planejamentos de saúde e serão implementadas no SUS. Quando a fala não se traduz em ação no serviço de saúde, se concretiza a visão pessimista de Spivak que o subalterno não pode falar, porque não adianta investir tempo na construção de políticas se elas não serão levadas em conta pela gestão.

O desejo de uma coletividade não consegue ser expresso por uma só voz. Ela não consegue exprimir a diversidade e as contradições entre todos os sujeitos que compõem essa coletividade. A representação assim teria seu limite na própria formação de coletivos de representação que reúnem pensamentos muito díspares e que não conseguem ser expressos quando só um sujeito fala em nome de todos.

Dois sentidos do termo "representação" são agrupados: a representação como "falar por" como ocorre na política, e representação como "re-presentação", como aparece na arte ou na filosofia. Como a teoria é também apenas uma "ação", o teórico não representa (fala por) o grupo oprimido. De fato, o sujeito não é visto como uma consciência representativa (uma consciência que "re- presenta" a realidade adequadamente). (SPIVAK, 2010, p. 31)

Uma política de saúde que examina os corpos negros e define coisas para eles, sem eles, se assemelha muito ao esquadrinhamento dos corpos dos escravizados nos

portos. Estes eram examinados pelos futuros compradores e verificados quanto a qualidade de mercadoria a ser adquirida. A política de saúde tem feito esse exame e direcionado esses corpos para as especialidades sem ouvi-los, uma violência epistemicida continuada.

Para o "verdadeiro" grupo subalterno, cuja identidade é a sua diferença, pode- se afirmar que não há nenhum sujeito subalterno irrepresentável que possa saber e falar por si mesmo. A solução do intelectual não é a de se abster da representação. O problema é que o itinerário do sujeito não foi traçado de maneira a oferecer um objeto de sedução ao intelectual representante. (SPIVAK, 2010, p. 61)

Discordamos de Spivak e consideramos que não há nenhum sujeito que seja irrepresentável. Todos os sujeitos têm demandas e pode representá-las em diversos espaços. Mas não podemos deixar de considerar as assimetrias no acesso a fala e a escuta. Sendo mulher, negra, pessoa com deficiência, de comunidades rurais, comunidades tradicionais, de diferentes faixas etárias, esse sujeito pode não ser ouvido. O ideal seria que o sujeito, independente da identidade de gênero, orientação sexual, idade, raça ou compleição física, fosse ouvido. Mas a realidade contrapõe o desejo de uma sociedade equânime. A equidade de voz ainda não se faz presente em muitos espaços, mas a sua inexistência não é motivo para calar a sua possibilidade.

3.4 Representatividade e saúde

Utilizar os textos de Carolina Maria de Jesus nesta dissertação é dar espaço para que uma mulher negra possa falar sobre suas vivências. Carolina se insere no contexto da transmordenidade. Ela não é a resposta aos limites do pensamento racializado nos cursos da saúde, mas uma das respostas onde muitas alternativas podem ser construídas. É um universo em que muitos autores podem apresentar seus discursos e suas repercussões em saúde. É utilizar do espaço de fala que a pós-graduação permite, para esforçar-se num texto que seja uma caixa de som que ressoa a voz da margem, mas não se apropria dela. É um esforço de desconstrução do espaço do pesquisador que ao invés de falar pela margem, irá oportunizar ao centro que escute a voz que vem da periferia. É desafiante se colocar no lugar de quem teve acesso a vários instrumentos de ascensão

social e está distante da realidade periférica de Carolina. Um desafio que vem por acesso à ferramentas de poder, mas que ainda continua marginal.

Estar entre marginais não nos autoriza a falar por eles. O protagonismo deve ser de quem vive a opressão e não de quem coloca a lupa de pesquisador sobre a questão. O lugar de fala do pesquisador é diferente do lugar de quem vive a realidade, e essa diferença precisa ser assumida por todos os envolvidos no processo. Ser uma mulher negra não autoriza a pesquisadora a falar em nome de todas as mulheres negras, como se tivesse experimentado de forma igual as situações vividas todas elas. Ser negra no Brasil, é estar em contínua subalternidade, ainda que esteja em lugares que outras mulheres com o mesmo tom de pele, não terão acesso.

As mulheres negras, deficientes, LGBTs, doentes crônicas, não escolarizadas, vítimas de violências, em empregos considerados inferiores, têm vivências próprias que são pertinentes para a reflexão do processo saúde doença. A dificuldade delas, não é ter conhecimento das suas necessidades, mas estar em um espaço real de escuta, e que suas vozes, que não sejam apenas, citações acadêmicas. Mesmo em espaços de escuta coletiva como os conselhos de saúde, suas posições podem ser abafadas por outros grupos que têm mais fluência verbal e/ou poder simbólico.

A mulher negra têm sido historicamente silenciada. Por isso, a nossa inquietação não pode ser reduzida a um sim ou não, elas podem e devem falar ou não. Por mais que existam espaços coletivos e diversas demandas que as afetam, tenham sido levadas para as políticas de saúde, não são elas que tem falado por si. Muitas vezes dependem de outros sujeitos que legitimem sua fala e levam o grupo a aceitar aquela demanda como verdadeira, como importante. Não sendo, portanto, a voz delas que causa a mudança, mas a anuência de um outro sujeito que tem mais legitimidade. Simionatto (1997, p. 19) faz uma análise dos conselhos, muitas vezes burocráticos, que “aliada à ausência de preparo, acabam centrando suas ações nas propostas apresentadas pelo Executivo, enfraquecendo esses espaços de participação e não traduzindo em nível real de sua força, na definição da política de saúde como um todo.”

mesmo surgindo a partir do cumprimento da exigência legal, os Conselhos tendem a ser catalizadores dos segmentos interessados na transformação democrática do sistema de saúde, na medida em que transcendem o "poder legal", ampliando os espaços contra-hegemônicos em relação ao Estado. É nessa ótica que se alteram as relações Estado/sociedade, na medida em que um projeto político, no caso a saúde, consubstanciado na Reforma Sanitária e

no SUS, concretiza na cultura política brasileira a "alteridade", ou seja, a presença do "outro", a diversidade de sujeitos na luta pela efetivação de "direitos socialmente pactuados". (SIMIONATTO, 1997, p. 19)