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3.5 A saga dos métodos

3.5.2 A improbabilidade da vida

Em 1980 Edgar Morin publica o segundo volume de seu projeto: OMÉTODO 2: A VIDA DA VIDA, A IDENTIDADE HUMANA. Para quem não leu o primeiro volume está garantida a plena compreensão, pois Edgar Morin retoma as premissas desenvolvidas anteriormente, no primeiro Método A NATUREZA DA NATUREZAde 1977. Para quem já começou o diálogo com Morin desde esta obra, a continuidade da explicitação, bem como, a expansão das idéias lançadas sobre o universo (cosmos)

e da natureza (physis) para a dimensão da vida, manifestação exótica da natureza que se desenvolveu na terra nos últimos 4,5 bilhões de anos e da qual somos os representantes inteligentes. Morin redimensiona a sua perspectiva da complexidade no que ela pode explicitar sobre as organizações vivas e sua inserção como um elemento do sistema ecológico, onde se originou, e se desenvolveu e evoluiu em múltiplas formas.

Com a perspectiva ecológica, a vida na terra passa não ser um elemento isolado que se manifesta através de indivíduos de diferentes espécies, estes pertencem a um lugar que os constituiu e também os constitui, entende Morin.

A dimensão ecológica constitui, de qualquer modo a terceira dimensão organizacional da vida. A vida só era conhecida sob duas dimensões, espécie (reprodução) e indivíduo (organismo) e, por impressionante que seja, o meio parecia ser o envelope exterior. Ora, a vida não é apenas a célula constituída de moléculas; nem somente a árvore de múltiplas ramificações da evolução constituída em reinos, ramos, ordens, classes e espécies (MORIN, 2003, p. 34).

A dimensão ecológica, assim como a natureza, foi idealizada, teologicamente, como obra da suprema criação “com a invariância e uma de relojoaria”(idem), sempre pensada como o reino da ordem e da perfeição divina. Sublinha Morin:

Contudo quando se olha, seja a muito longo termo, seja de muito perto, essa ordem, de súbito, vacila e trinca-se. Na escala de centenas de milhares de anos, o subsolo racha e desloca-se, a crosta terrestre dobra-se, levanta-se, afunda-se, os continentes derivam, as águas inundam as terras e terras emergem das águas, as florestas tropicais e as calotas glaciais avançam ou recuam, as erosões cavam, nivelam, pulverizam. Ao olhar de muito perto e a curto termo, vê-se uma confusão de seres unicelulares e de animáculos, um amontoado e uma mistura de plantas que se parasitam nas florestas, selvas, savanas, matagais, insetos agitados de movimentos desordenados, animais da terra ou do céu de comportamento desconcertante, e por toda parte uma autofagia permanente da vida comendo a vida, uma luta feroz de todos contra todos, em que uns caçam, devoram, combatem, destroem os outros, numa desordem sem lei ridiculamente chamada de lei da selva (MORIN, 2003, p. 35).

Como em toda forma de organização, no ecossistema encontram-se sucessivas desorganizações/reorganizações onde a presença das desordens, destruições e antagonismos constituem-se em eventos menos impressionantes do que os fatores de ordem, de construção, de complementaridade nos ecossistemas.

Paradoxalmente tudo concorre para a desorganização do sistema ecológico, mas tudo, também, concorre para a sua organização.

Assim se desenha os contornos do anel eco-organizador e este indica que uma reorganização permanente responde à desorganização permanente, sendo que este processo reorganizador encontra-se no próprio processo de desorganização. Afirma Morin:

Assim, a cadeia trófica mostra-nos que toda podridão se torna alimento, que todo desejo se torna ingrediente, que todo subproduto se torna matéria prima, que todo resíduo morto é reintroduzido no ciclo da vida. As decomposições e excreções são o festim de um fervilhar de insetos e de microorganismos; engordam e remineralizam os solos que alimentam a vegetação. O ecossistema come não somente a sua própria vida e a sua própria morte, mas também a própria merda, e o excremento pode tornar-se o alimento do alimento de quem o defecou. O ecossistema renasce e revive incessantemente porque é, ao mesmo tempo, autófago (alimentando-se de si mesmo) e entrófego (alimentando-se de entropia), biófago, coprófago e, em suma, eurifago (ou seja, alimentando-se de tudo) (MORIN, 2003, p. 47). Uma das esferas da comunicação destacadas por Edgar Morin, e que é tematizada neste Método 2, é a ecocomunicação. Ela compreende todas as redes de comunicação vivas que se relacionam nos mais diversos ecossistemas, mesmo que todas os subsistemas não se comuniquem diretamente.

A ecocomunicação é tão complexa, tão eficaz, tão refinada, tão bem temperada e regulada, que tudo acontece como se fosse uma organização computacional/informacional/comunicacional recebendo informações e emitindo instruções.

Ainda que um ecossistema não tenha cérebro, memória, rede de comunicação, quero mostrar que constitui uma máquina computacional/informacional/comunicacional de caráter policêntrico e acêntrico (cf. a teoria dos autômatas acentrados, Rosentiehl, Peitot, 1974), cujas comunicações se realizam de modo extremamente original (MORIN, 2003, p. 53).

Os ecossistemas são formados por inúmeras redes de comunicação entre congêneres, especialmente constituídos pelas sociedades animais (insetos, peixes, pássaros, mamíferos). Cada uma dessas sociedades constitui e é constituída por uma gama muito variada de signos ou de sinais – olfativos, sonoros, gestuais –, e até por linguagens ricas como a das abelhas. Tais comunicações, no entanto são fechadas, estanques, sendo que a linguagem das abelhas é ininteligível as não-

abelhas. Nesse sentido, alerta Morin (2003), parece que a regra do ecossistema seja a não comunicabilidade entre sistemas de comunicação.

Todo sistema integra e organiza a diversidade numa unidade. Todo sistema nasce de uma unidade que se diferencia ou de uma diferença que se unifica. A originalidade do ecossistema é que ele nasce de ambas. A vida surgiu num meio somente físico. A biocenose nasceu da proliferação da vida, e eco-organização desenvolveu-se com a diferenciação da vida. Essa diferenciação criou diversidade nos unicelulares; nessa diversidade puderam surgir associações policelulares que, elas mesmas, se diversificaram em miríades de espécies vegetais e animais (MORIN, 2003, p. 57).

Com base nestes pressupostos, Morin formula o principio de que em determinadas condições e limitações, a diversidade das espécies em um ecossistema, aumenta em relação à sua resistência, a vitalidade e complexidade, isso sobre os dois eixos da eco-organização (MORIN, 2003).

As conseqüências para o pensamento ecológico são relevantes, pois a ecologia compreendida apenas a partir da ciência natural torna-se mutilada.

Não só as sociedades humanas sempre fizeram parte dos ecossistemas, mas, sobretudo, os ecossistemas, depois dos desenvolvimentos universais da agricultura, da criação de gado, da silvicultura, da cidade, fazem agora parte das sociedades humanas que fazem parte deles a ecologia geral deve, portanto, ser uma ecologia que integre a esfera antropossocial na ecosfera e, ao mesmo tempo, a retroação formidável dos desenvolvimentos antropossociais sobre os ecossistemas e a biosfera (MORIN, 2003, p. 88). Assim, a humanidade passou da atividade integrada nos ecossistemas à conquista da biosfera, mas não escapou à biosfera. A sociedade humana é constituída e constitui os ecossistemas, é parte integrante e está integrada aos princípios da relação ecológica. O homem se arvorou a dominador da natureza sem perceber que sofre, também, a ecodeterminação que toda a vida sofre.

A complexidade contida no paradigma ecológico não pode produzir plenamente seus frutos senão num pensamento que já reconheceu o problema e a necessidade da complexidade. Em outras palavras, o paradigma ecológico não produz “automaticamente” complexidade. A complexidade do principio ecológico degrada-se numa ecologia mental simplificadora, redutora, “cartesiana” ou “maniqueísta”, a qual já degradou o pensamento sistemático (cf. O Método 1) (MORIN, 2003, p. 100).

Neste sentido a diversidade é um componente fundamental de toda organização viva. Sem ela a degradação da energia vital é inevitável, dependendo para tanto das condições de equilíbrio do sistema.

A vida celular nasceu de encontros entre entidades moleculares extremamente diversas, e o desenvolvimento da organização celular aumentou esta diversidade desenvolvendo diferenciações e especializações das moléculas e dos organismos. O desenvolvimento dos organismos policelulares é inseparável da diversificação/diferenciação/especialização das células e dos órgãos que formam estes organismos (assim temos 200 tipos celulares nos nossos organismos humanos) (MORIN, 2003, p. 343). Morin sustenta a importância da polêmica, do conflito, da concorrência, dos antagonismos como sendo de fundamental importância para conceber o complexo vivo. Neste ponto, Morin busca esclarecer o que ele entende como sendo o um mal- entendido com René Thom. Este autor recusa o princípio de um conhecimento complexo, afirmando que este pode ser reduzido a alguns princípios simples, como a “luta dos contrários” que, segundo Thom, é um princípio simples. Mas Morin compreende este princípio como sendo do pensamento complexo, da mesma forma que o conceito thomiano de catástrofe (MORIN, 2003).

A vida é a união da união e da não-união. A vida é um fervilhar de heterogeneidade, de desmedidas, de dispersões, de desordens, de antagonismos, de egoísmos, de erros, de cegueira, onde tudo deveria “naturalmente” decompor-se, dissociar-se, desintegrar-se, dispersar-se e, efetivamente, tudo se decompõe, se dissocia, se desintegra, se dispersa naturalmente na e pela morte. Mas também, não menos “naturalmente”, tudo se recompõe, se reassocia, se reintegra, se agrupa, se solidariza nos anéis, ciclos, circuitos inúmeros, encadeados, entrecruzados, auto-eco- organizadores (MORIN, 2003, p. 413).

Morin defende que a complexidade uma exigência, uma exigência lógica e a aceitação de um ilogismo em função desta exigência. A exigência lógica complexa, explica Morin, parte do reconhecimento que os fenômenos não só são simultaneamente unos/múltiplos, mas comportam dialógica e polilógica (MORIN, 2003, p. 425).

Quando a lógica que controla as operações do nosso pensamento tropeça e escorrega diante da lógica do vivo, os fracassos desta lógica traem a riqueza e não a carência da organização viva. O vago, a eventualidade, a incerteza, a contradição que se infiltram nas nossas proposições exprimem não a fraqueza mas a excelência da auto-eco-re-organização. A lógica

formal não é “viva”: não é biodegradável. A imperfeição lógica da vida é uma das faces da sua complexidade (MORIN, 2003, p. 429).

Esta noção de organização viva, segundo Morin, ele já anunciara numa obra de 1973, O PARADIGMA PERDIDO, onde ele já desenvolvia algumas teses que vieram a desembocar no Método.

(...) sabemos que somos animais de classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie dita sapiens, que o corpo é uma máquina com trinta bilhões de células, controlada e procriada por um sistema genético, o qual se constitui no decurso de uma evolução natural com dois ou três bilhões de anos, que o cérebro com que pensamos, a boca com que falamos, a mão com que escrevemos, são órgãos biológicos, mas o saber é tão inoperante quanto o que informou de que o nosso organismo é constituído de combinação de carbono, de hidrogênio, de oxigênio e de azoto (MORIN, 2003, p. 458-59). Neste segundo momento do Método Morin reinsere na vida a antropologia. As ciências do homem haviam retirado toda a significação biológica dos termos “ser, jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, morrer, ter pais, uma família”. Tais palavras, aponta Morin, remetem a categorias socioculturais que variam no tempo e no espaço, sendo ainda que esta ciência remete a vida e para o privado (MORIN, 2003, p. 461).