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Complexidade e perspectivismo

5.1 Edgar Morin e as grandes epistemologias modernas

5.1.4 Complexidade e perspectivismo

O questionamento que aqui propomos em relação ao pensamento Morineano não se refere aos postulados basilares de sua reflexão. Busca entender como este autor propôs uma ruptura radical com o paradigma cartesiano ignorando solenemente o “estrago” perpetrado a este modelo explicativo pelo ataque nitzscheano. Em suma, o que se defende é a necessidade de colocar um o paradigma perpesctivista entre o cartesianismo e a complexidade, pelo fato de que muito da pregação morineana é fruto do esforço e enfrentamento realizado por muitos autores e consubstanciado no pensamento de Friedrich Nietzsche, o que é ignorado por Morin, principalmente nos Métodos.

Saudada por Nietzsche como uma verdadeira revolução, a morte de Deus pos fim de a dois séculos de agonia. Tal fato “de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa” (NIETZSCHE, 2001, p. 233), afirmou o autor, acrescentando que este evento trouxe conseqüências até então impensadas para o conhecimento.

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres” ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminado por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre (...) (NIETZSCHE, p. 234).

A liberdade – ao mesmo tempo orfandade –, conquistada pelo homem tem como conseqüência o aprofundamento de sua condição de solidão no mundo. Antigo habitante do centro do universo, despejado para um planeta insignificante; ex-criatura feita a imagem e semelhança do divino criador, agora apenas mais uma espécie num processo evolutivo que o irmanou aos símios; o homem que, por fim, já

não gozava de uma situação privilegiada de pura consciência – sendo esta tomada como um acidente, mesmo que útil –, agora perdeu de vez seu guia e mentor.

Tal perspectiva nietzscheana vai encontrar eco no pensamento morineano e, por conta desta sintonia, a concepção de conhecimento que os aproxima. Após a missa de um século da morte de Deus, Morin assim se pronuncia:

De resto, eu excluo tanta a consciência particular como a grande consciência macroscópica, isto é, Deus. (...) Seria espantoso que neste universo trágico, que se desintegra ao mesmo tempo que se constrói, houvesse um todo onisciente e criador, ou mesmo que esse universo pudesse ser considerado uma totalidade organizadora e superpensante. A maior parte do universo, senão sua quase totalidade está, pelo contrário, destinada ao caos, à dispersão e à desintegração. Os sujeitos estão, portanto, completamente perdidos no universo (MORIN, 2003, p. 327). Abandonado na natureza, sem Deus e sem sentido algum, resta como único fundamento de conhecimento possível, aquele que é resultado da própria construção humana. O fim da metafísica, a morte Deus, a intangibilidade da coisa

em si apontam para uma nova condição de possibilidade do conhecimento, sua

essência humana demasiadamente humana. A reativação do sujeito, que de braços cruzados contemplava a natureza, sonhando com suas formas absolutas, passa agora a ser novamente medida e a qualidade da realidade kantianamente desenhada.

Apesar da ausência de uma teoria do conhecimento sistematizada, a exemplo de Descartes e Kant, os pilares do que viriam ser esta empreitada estão explicitados por Nietzsche. E esta sua virtual epistemologia, caracteriza o conhecimento como uma atividade de um determinado tipo de animal, o ser humano, empenhado, como todos os outros, na sua sobrevivência. E é a sua necessidade de viver em sociedade e de se comunicar que leva os homens a produzir conhecimento. Como os demais animais, com suas disposições naturais, o homem tem no conhecimento a condição de sua sobrevivência.

Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo (NIETZSCHE, 2001, p.13).

Na medida em Nietzsche entende que a consciência é uma parte ínfima da subjetividade, é possível traçar um paralelo entre esta característica dos sujeitos e a “percepção” que Morin tem em relação aos fenômenos como sendo ilhas de ordem (ou organização) num mar de desordem: fenômenos naturais e sociais e, ainda, a forma como apreendemos a realidade. Assim pode-se conceber a hipótese que não há uma quebra de paradigma entre Nietzsche e Morin, ao contrário, o filósofo francês trabalha sob as ruínas do edifício da cultura ocidental, platônico-cristã, implodidos pelo próprio “anti-cristo”.

A subjetividade individual, embora se considere o centro do universo, é efêmera, periférica, pontual. Mas é nesse ‘ponto’ que interferem os processos organizadores e que emergem as qualidades da vida. (...) Os indivíduos-sujeitos são os seres emergindo na realidade fenomenal. É nos indivíduos sujeitos que se operam todos os processos de reprodução. Portanto, o conceito de sujeito não deve ser considerado epifenômeno, mas sim inscrito ontologicamente em nossa noção de ‘vida’ (MORIN, 2003, p.320).

O conceito morineano de sujeito, bem como sua relação com o conhecimento, elemento central do paradigma da complexidade, não é uma contraposição direta, linear ao sujeito cartesiano que contempla e desvenda a ordem da natureza. O sujeito da complexidade é o sujeito órfão de Deus; fragmentado, descentrado, múltiplo. Não é mais o cogito e é mais que a unidade da apercepção kantiana.

Assim, vemos esboçar-se um conceito de sujeito radicalmente diferente do dos filósofos do Ego transcendental ou da consciência fundadora. O sujeito vivo emerge do processo complexo de auto-eco-organização e, nesse processo, ser, máquina, cômputo, sujeito, constituem noções ao mesmo tempo inseparáveis e fundadoras (MORIN, 1999, p. 58-9).

Assim, a concepção de conhecimento que funda o paradigma da complexidade e, concomitantemente, sua concepção de sujeito, não se constitui como uma simples oposição ao que Morin denomina como sendo o paradigma da simplicidade.

O diálogo de Nietzsche e Morin, que aqui é proposto, cumpre o papel de relacionar estes autores como sendo esforços epistemológicos que, cada um a sua maneira, rompem com o paradigma cartesiano vislumbrando, assim, novas possibilidades metodológicas. Mas tal caminhada apresentou inicialmente uma dificuldade, qual seja, um “silêncio bibliográfico” de Morin em relação a Nietzsche,

isto é, o fato de não se encontrar de forma explícita nas referências ao autor de

CIÊNCIA COM CONSCIÊNCIA nas obras reunidas sob o título de Método.