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5.1 Edgar Morin e as grandes epistemologias modernas

5.1.3 Complexidade e marxismo

No início da década de 1940, com aproximadamente vinte anos, Edgar Morin já se encontra vinculado ao pensamento de esquerda – militância e reflexão – e, neste aspecto, como em nenhum outro, sua vida e sua obra articulam-se e se retroalimentam-se incessantemente. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a ascenção do Nazismo pela Europa e a ocupação da França Edgar Morin se junta ao movimento de resistência à dominação estrangeira. Dominação que não representava apenas – e já significava uma perda incomensurável – a supressão da cidadania, mas a negação de valores universais da democracia ocidental que o nazismo enxovalhava.

Neste contexto a presença do pensamento marxista na formação de Morin é decisiva, os fundamentos desta doutrina forneceram uma primeira e grande explicação para uma leitura do passado e uma utopia revolucionária. A adesão ao marxismo representou a primeira grande ruptura na concepção de mundo de Morin. Ele se refere a este momento momento como sendo sua primeira reconstrução genética, uma ruptura existencial que o ajuda a construir (gênese) tanto o autor

quanto o seu pensamento. A dialética – inicialmente hegeliana e por fim marxista – redesenhou-lhe o mundo, suas convicções e as convicções dos seus mundos.

As idéias de Marx forjaram o lastro teórico para a atuação na “resistência” e, também, formatou a leitura e visão de mundo, de natureza e sociedade do autor nos anos quarenta. Terminada a guerra, Edgar Morin passa a trabalhar em alguns jornais de esquerda, ligados ao partido comunista francês ao qual aderira no momento da ocupação estrangeira. No entanto, já nos primeiros anos da década de 1950, Edgar Morin começa a entrar em atrito com os ideais comunistas materializados no Stalinismo na União Soviética e com uma crescente estagnação do partido que se afundava num momento dogmatismo sem precedente e autodestrutivo.

As obras inicias dos anos 1950 expressam, como foi destacado anteriormente – 3.3 Antropologia fundamental, cultura de massa e comunicação – o crescente distanciamento da análise de Morin da ortodoxia marxista. Este afastamento não é total mas se abala grandemente nesta década até que em 1959, ao aproximar-se dos cinqüenta anos e fazer uma primeira revisão de sua obra e sua vida em

AUTOCRÍTICA(1959), Morin estabelece uma ruptura com este ideário. Isto não representa, num primeiro momento, uma negação da doutrina, mas a descrença na possibilidade do materialismo histórico ser “a resposta” para importantes fenômenos da política, da economia da sociedade e da cultura naquele momento.

Morin admite que as categorias hegelianas, com seu dogma que a verdade esta na totalidade, não percebe as armadilhas da dialética, de sua tendência em sair da realidade com contorcionismos retóricos, como passe de mágica. Muito influenciado pela antropologia marxista, não conseguia perceber o quanto a aparente cietificidade escondia um resíduo mitológico, de um dever ser e uma mística de salvação como fosse uma religião. Morin abre mão da idéia de reconstituir o homem total, o qual o autor passa a considerar um mito filosófico, mas mantém a necessidade de tomar o ser humano em sua multidisciplinaridade procurando evitar assim o determinismo.

É na análise de obras como O HOMEM DIANTE DA MORTE(1951) e ESPÍRITO DO

TEMPO (1962) que já se percebe o afastamento de Morin da ortodoxia marxista. Na primeira obra, escrita no final década de 1940, publicada no início dos anos 1950 manifesta sua formação transdisciplinar, incorporando conhecimentos da Geografia

humana, História, Psicologia infantil, Psicanálise, Etnografia. História das religioes, Mitologia e Filosofia. Em ESPÍRITO DO TEMPO, a presença dos pressupostos e dos conceitos marxistas estão ainda mais distantes. Obra dedicada a análise da cultura de massa, onde ele procura investigar a adesão do público ao imaginário cinematográfico, embarcando nesta viagem a partir dos conceitos de identificação e

projeção. São estes os conceitos centrais, oriundos da reflexão psicanalítica que

remete à noção de catarse da poética aristotélica.

Mesmo tendo se distanciando do marxismo, o pensamento complexo de Morin possui um significativo débito com a obra de Marx. Herda do ideário marxista uma dialética – até certo ponto combalida, na visão de Morin – mas que permitiu-lhe, ao abolir a síntese necessária, intuir a dialogicidade. Ao contrário de ter como fundamento a perspectiva que a resolução das contradições se resolve numa síntese a partir das contribuições do marxismo, a dialógica intuída por Morin aposta na superação das contradições pela coexistência das antíteses. Morin acresceu o imaginário – estrutura mágica da consciência – a relatividade e a contradição como elementos intrínsecos à realidade. Seu método vai privilegiar uma visão multidimensional, uma crítica sem fronteiras e com a atenção às ciências.

Na apresentação da obra já citada, EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS PERDIDOS, Maria Lúcia Rodrigues, uma das organizadoras da livro, comenta a especificdade da adesão ao marxismo por Edgar Morin. Ela surpeendia-se com o “marxismo integrador” [grifo da autora], denominação dada pelo próprio autor, cujas características fundamentais é não ser exclusivo nem excludente, que pode desenvolver a formação de seu espírito contestador, que admite o inconcebível que conserva a tolerância herdeiro de uma racionalidade iluminada. A presença constante da dúvida, de uma racionalidade aberta, a expansão dos limites, a presença das contradições compõe aspectos importantes desta teoria da que se organiza a partir destas características, um teoria da complexidade.

Do marxismo, enfatiza a autora, Morin não privilegiou as relações ecônomicas e sociais mas a noção de homem genérico; concepção tramada na dialética entre ciência do homem e ciência da natureza e na articulação entre teoria e práxis.

(...) tinha sido tomado pela energia singular com que Marx havia unido em uma só concepção teoria e práxis. O que me tocava e me impressionava era ele ter conseguido arrumar na visão dialética da história humana,

portanto inacabável por princípio, a idéia de que um salto revolucionário radical poderia provocar a abolição da exploração do homem pelo homem”. Marx influenciou definitivamente’ Edgar Morin tanto em sua trajetória pessoal e intelectual quanto em suas reflexões e produções, consignadas princj. palmente em sua obra La Méthode (I,II,III,IV,V) (MORIN apud RODRIGUES, 2004, p.8).

Morin não escreveu nenhuma obra “de folêgo” abordando teoricamente o marxismo, a única parte da produção intelectual deste autor é uma série de textos publicados entre os anos 1956 e 1963. São eles DIALÉTICA E AÇÃO, O ALÉM-

FILOSÓFICO DE MARX, FRAGMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA, (entre 1956 e 1962) e

MARXISMO E FILOSOFIA, E EM BUSCA DO FUNDAMENTO PERDIDO (1963). Estes textos foram recentemente publicados, com o título de EM BUSCA DOS FUNDAMENTOS

PERDIDOS 22. Na apresentação deste livro, Edgard de de Assis Carvalho23, antopólogo e conhecedor da complexidade observa em relação à peculiaridade do marxismo de Morin:

Sua adesão ao ideário contido na utopia revolucionária era nessa época irreversível, mesmo que depois a autocrítica ao realismo socialista e, principalmente, ao stalinismo tenha sido contundente. Nos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, fonte de inspiração de sua antropologia geral, soube extrair a universalidade da condição humana, assim como as bases constitutivas do homem genérico, que não separa a natureza da cultura (CARVALHO, 2001, p. 14).

Recentemente, em 2001, na apresentação da obra já citada e que reúne seus textos sobre o marxismo e no qual autor discute o seu afastamento desta doutrina, Morin afirma que se rejeitou esta teoria porque ele carecia de certos conceitos desenvolvidos, posteriormente, entre a década de sessenta e setenta e que se tornaram indispensáveis na estruturação do seu pensamento. São os conceitos de dialógica substituindo a dialética, o de circuito recursivo, o de princípio hologramático e, enfim, o conceito de complexidade.

Hoje, a Antropologia não pode abster-se de uma reflexão sobre: o princípio de relatividade einsteiniano; o princípio de indeterminação de Heisenberg; a descoberta da “antimatéria” desde o anti-elétron (1932) até o anti-nêutron (1956); a cibernética, a teoria da informação; a química biológica; o conceito de realidade. Tudo o que diz respeito ao homem nos revela ao mesmo tempo o homem em movimento e o homem permanente; o homem diverso e o homem uno. O mistério da interioridade do homem encontra-se em suas 22 MORIN, Edgar. Em busca do fundamento perdido. Porto Alegre: Sulina, 2005. (idem, 27)

obras, seus mitos, suas projeções; procurar o interior no exterior. Seria preciso mostrar que há menos materialidade no real do que parece, mais realidade no imaginário do que acreditamos e, através desta aproximação, tentar considerar seu estofo comum: a realidade humana (MORIN, 2004, p.64).

A necessidade da superação da dialética, cuja limitação Morin vislumbrava, consiste na supressão desta em favor de outra perspectiva: a dialógica. Entre ambas a difereneça relacionada à questão síntese, enquanto na dialética há uma síntese necessária na dialógica a abertura para a convivência de antagonismos nos sistemas. Esta questão é discutida por Morin em DIALÉTICA E AÇÃO. Neste artigo prouzido na segunda metade dos anos cinqüenta, destaca que a dilética é um valioso instrumento de compreensão das coisas do mundo, mas adverte para algumas incongruências que esta apresenta.

A síntese dialética é certamente, um momento privilegiado, mas de modo algum merece ser inflada como um balão. Muito mais doque síntese, o termo essencial e fecundo da dialética é operação. Principalmente as contradições humanas essenciais nunca encontram sua síntese, mas são, podem ser, cotidianamente superadas, sem todavia se suprimirem. A dialética progride a custo, no esforço perpetuamente recomeçado. As contradições acabam por alcançar o dialético tendo-as considerado como meras obstruções, com demasiada facilidade as superou (MORIN, 2004, p.29).

Foi somente com o fim da gerra fria, isto é, com o degelo político que Morin começou a perceber o quanto a dialética foi congelada. Segundo o autor, a dialética nascera parcialmente amputada: ignorava a realidade semi-imaginária do homem e desprezava o dever-ser. A dialética foi atrofiada, defende Morin, esterilizou a negação e, por conseguinte, petrificou a positividade. Também como equívoco, pode ser citado o fato de que esta foi mitificada e acabou inflando o momento da síntese. Por ter desprezado o dever-ser, confundiu o seu próprio dever-ser, o homem total e o universal concreto, com a realidade. Surpreendeu-se com sua própria função, que consiste em pensar e produzir o devir.

No final da década de 1970, Morin afirma: Marx tornara-se pra mim uma

estrela, entendia naquele momento Morin, uma estrela entre tantas outras.

“Ultrapassei” Marx, afirma, mas integrando-o e não desintegrando.

Com efeito, meu marxismo era singularmente aberto, como testemunha L’Homme et la mort, escrito em 1948-50. Eu aí integrava a contribuição de

diversas ciências humanas, o pensamento de Freud, Rank, Ferenczi, Jung, e alimentava-me de Heidegger e Sartre. Meu marxismo era caracterizado justamente por este traço integrador que visava a apreender a multidimensionalidade do problema humano da morte; buscava uma “totalidade” que não fosse aditiva. Foi durante a caminhada de Arguments que liguei minha aspiração à “totalidade” com a consciência adorniana, complementar e contraditória, de que a totalidade é a não-verdade (MORIN, 2001, p. 20).

“Completei” Marx, reitera, onde julgava haver insuficiência em relação ao que vinha construindo desde o final dos anos 1970 e que chamou de pensamento complexo. Complementa Morin afirmando que a “ultrapassagem” [grifos do autor] do marxismo continua a ser uma das vias para chegar ao pensamento complexo.

O homem genérico em Marx era destituído de subjetividade, de afetividade, de amor, de loucura, de poesia. Era essencialmente um homo faber e economicus. É preciso enriquecer o genérico. Assim entendido, o genérico é o primordial, l’arkhé, ao mesmo tempo origem e princípio. Neste sentido pode-se interpretar a palavra de Heidegger: “O Começo está aí. Não jaz atrás de nós ... mas estende-se diante de nós”. Esta verdade havia sido descoberta de outro modo por Rousseau em sua tese sobre o estado de natureza, reciclada por Marx na tese do homem genérico e completada no mesmo Marx pela verdade contrária. Esta dupla verdade dialógica nos diz que a finalidade humana (télos) passa pela origem genérica (arkhé), segundo um circuito arkhé-télos; o progresso só pode advir do retorno à arkhé, não do seu esquecimento (MORIN, 2001, pp. 21-2).

A idéia da necessidade de reencontrar a fonte geradora para progredir torna- se um pressuposto fundamental da complexidade. Para manter o que se conquistou, é preciso incessantemente regenerá-lo, afirma.

Para cada um e para todos, para si mesmo e para outrem, no amor, na amizade, no passar dos anos, é preciso a regeneração permanente. Tudo o que não se regenera, degenera. “Quem não está nascendo está morrendo, canta Bob Dylan (MORIN, 2001, p.22).

No artigo FRAGMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA, Edgar Morin coleciona uma série de pequenos textos, parágrafos na verdade, com idéias sobre sobre sua antropo-sociologia fundamental onde aparece a influência do marxismo e, ao mesmo tempo, a influência da crise do marxismo, entenda-se: de um certo marxismo. Observa-se, ainda, uma crítica à fragmentação do homem moderno, e também, constitui-se, ainda, uma revisão de alguns aspectos das ciências.

Estamos na época triste das ciências humanas: homem cortado em fatias. O que é necessário lamentar não é nem a matematização nem a estatística,

mas a atrofïa do espírito de hipótese. As hipóteses arrastam-se, exangües. Mas consideremos, antes, a pesquisa nas ciências físicas: aí a ciência é poesia; desreifica o real, relança sob formas de hipóteses os devaneios, verifica as maiores audácias do espírito, se arremessa em direção ao impossível (MORIN, 2001, p.36).

A crise de paradigma, da meta-narrativas dos sistemas fechados e absolutos é percebida e questionda por Morin que vai buscar nas ciências da natureza, na Física e, principalemente, na Biologia a orientação para um novo caminho: a complexidade.