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Complexidade e cartesianismo: Discurso do Método e Os Métodos

5.1 Edgar Morin e as grandes epistemologias modernas

5.1.1 Complexidade e cartesianismo: Discurso do Método e Os Métodos

A separação sujeito-objeto cartesianamente estabelecida na aurora da modernidade colocou, naquele momento, um abismo entre o ser e o conhecer situando em dois mundos diferentes e quase incomunicáveis o humano e o cognoscível. Desde então, o ser que contempla o mundo, e o fragmenta em conceitos se situa fora da natureza, da realidade que se propõe a definir. O caminho privilegiado pelo cartesianismo foi a separação: a separação do sujeito do objeto; a separação do homem da natureza, a separação corpo e da alma. Ao conceber o acesso ao conhecimento a partir da maior fragmentação possível dos objetos estudados, Descartes abre o caminho para o nascimento, ou Renascimento, de diversas disciplinas.

E é este movimento de objetificação da natureza que retira os objetos dos seus contextos ignorando o sistema nos quais eles operam. Morin retoma o sistema, mais do isto, ele o coloca-o no lugar do objeto.

Todos os objetos-chave da física, da biologia, da sociologia, da astronomia, átomos, moléculas, células, organismos, sociedades, astros, galáxias, constituem sistemas. Fora dos sistemas, há apenas a dispersão particular. Nosso mundo organizado é um arquipélago de sistemas no oceano da desordem. Tudo que era objeto tornou-se sistema. Tudo que era até mesmo uma unidade elementar, inclusive e, sobretudo, o átomo virou sistema (MORIN, 2003, p.128).

Descartes, após construir sua cadeia de raciocínios, o que o levou à síntese

cogito ergo sun, fecha o seu sistema (sistema fechado) colocando Deus como

desfecho do caminho. Pode-se considerar, nesse sentido, que o autor de DISCURSO DO MÉTODO realizou, com seu pensamento, uma revolução incompleta. A existência de Deus é, a partir dele, afirmada pela racionalidade humana, sofrendo uma inversão radical em relação à lógica medieval cristã que concebia a razão humana como sendo apenas mais um dos atributos concedidos pela divindade.

Mas é a separação do sujeito do objeto, e a conseqüente valorização da consciência como o que de mais sublime há no humano, que determina o abismo entre estes autores. A hegemonia da consciência na cultura ocidental tem, sem dúvida, em Descartes seu herói fundador, no entanto tal perspectiva já vem amadurecendo desde a releitura e tradução dos clássicos na idade média. Nietzsche destaca que essa transição que inaugura a modernidade é um momento específico de um processo mais amplo, que busca disciplinar e controlar, a partir de uma metafísica, a presença do caos, oferecendo ao mundo, pelo menos um ponto de apoio. Assim sendo, a crítica ao imperativo da consciência é um dos principais motes da posição anticartesiana de Nietzsche. Ele afirma:

A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria necessário, “contrariando o destino”, como diz Homero. Não fosse tão mais forte o vínculo dos instintos, não servisse no conjunto como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua consciência; ou melhor: sem aquele, há muito teria desaparecido (NIETZSCHE, 2001, p.62).

Nietzsche ressalta que Descartes representa o momento em que estas duas vertentes basilares do pensamento ocidental se amalgamaram no elogio à razão e à consciência. Para o autor de A FILOSOFIA NA ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS, o

platonismo representava um perigo para a vida da polis, como manifestações de decadência. Impelidos pelo que Nietzsche denominou de vontade de verdade, o pensamento de Sócrates e Platão ganhou ressonância decisiva na civilização ocidental.

A reflexão epistemológica de Edgar Morin é, sem dúvida, uma exposição marcada pelo anticartesianismo. Compreender os postulados deste autor implica necessariamente, relacioná-lo ao ideário do formulador do cogito, com o qual estabelece um diálogo e uma oposição em aspectos essenciais.

A filosofia cartesiana fecundou de tal forma o pensamento ocidental que por mais três séculos, praticamente, o método cartesiano passou a ser sinônimo de método científico, e mesmo que este, desde o final do século XIX e, principalmente no século XX venha sendo alvo de inúmeras e fundadas críticas, tal pensamento não pode ser reduzido a apenas um grande equívoco.

No entanto esta ordem, derivada e fundamentada no cartesianismo era fruto de uma simplificação, de um funcionamento mecânico do mundo, uma possibilidade de compreensão entre tantas outras, mas que se concebia como a única. Observador e interpretante da realidade, o homem se demite desta para se distanciar e melhor compreendê-la. Mas é exatamente este distanciamento que vai contaminar a sua visão de mundo. Tal percepção só foi possível pelo esforço de Descartes para, naquele momento, sobrepor a razão à tradição medieval.

Morin argumenta fundamentalmente contra o método científico – de inspiração cartesiana –, que foi hegemônico no pensamento ocidental por três séculos (sem ter perdido ainda sua força). A simplificação dos fenômenos cosmológicos, da natureza, da vida e do ser humano foi responsável pela abertura e solidificação de uma perspectiva teórica a qual Morin denominou de paradigma da simplicidade. Neste sentido Morin é um anticartesiano.

Como principais aspectos do cartesianismo, Morin destaca a redução ao manipulável e a separação entre sujeito e objeto.

A separação sujeito/objeto é um dos aspectos essenciais de um paradigma mais geral de separação/redução, pelo qual o pensamento científico ou distingue realidades inseparáveis sem poder encarar sua relação, ou identifica-as por redução da realidade que é mais complexa à menos complexa. Assim, física, biologia, antropologia tornaram-se ciências totalmente distintas, e quando se quis ou quando se quer associá-las é por

redução do biológico ao físico químico, do antropológico ao biológico (MORIN, 2003, p. 138).

A ciência, a partir das características que o pensamento cartesiano a impõe, permite vislumbrar a possibilidade de uma verdade absoluta. Para contrapor a tal caminho, Morin vai destacar algumas características do fazer científico e que foram suprimidas, ou não permitidas, pela moderna concepção de ciência. Segundo Morin, o viés reducionista do paradigma cartesiano que dominou a pesquisa científica estava baseado em princípios de simplificação, disjunção e redução. Mas fundamentalmente o monopólio da ordem como princípio explicativo, restringindo a causalidade á uma causalidade linear.

Ao contrário de Descartes, que partia de um princípio simples de verdade, ou seja, que identificava a verdade com as idéias claras e distintas, e por isso podia propor um discurso do método em poucas páginas, eu faço um discurso muito longo à procura de um método que não se revela por nenhuma evidência primária e que deve ser elaborado com esforço e risco (MORIN, 2003, p. 140).

Morin entende que a ordem do universo e a capacidade da racionalidade humana em abarcá-la, produzindo verdades absolutas, não passa de uma ilusão, pois estas – verdade e consciência –, não passam de acidentes, ilhas ou, quem sabe, arquipélagos de ordem, em meio ao oceano, onde a desordem constitui a regra. Contrapondo-se ao paradigma da simplificação, Morin propõe um paradigma fundamentado em princípios da complexidade, da relação, da emergência, da auto- eco-explicação, princípio hologramático, dialógico, da retroação e recursão, cujo objetivo é explicar os fenômenos a partir da relação dialógica entre ordem, desordem e organização.