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CAPÍTULO VI – DIREITO DE RETENÇÃO

4. Os fundamentos do AUJ nº 4/2014

4.2. A imputabilidade reflexa

O administrador de insolvência substitui, automaticamente, o insolvente nas ações patrimoniais268 em que este seja parte (à laia da apensação do processo e acordo da parte contrária)269 270. Sucede-lhe, portanto, na gestão do património e atua de acordo com o que

267 Idem, Gravato Morais, Promessa Obrigacional de Compra e Venda com Tradição da Coisa e Insolvência do Promitente Vendedor, in

Cadernos de Direito Privado, nº 29, pp. 8 e ss.

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Com exclusão dos atos processuais próprios e, bem assim, das ações que versem sobre direitos de Natureza pessoal.

Neste sentido AC. do TRL de 13-09-2011 , Relator Paulo Barreto: “A constituição de arguido e o termo de identidade e residência constituem atos processuais com carácter próprio e pessoal tão acentuado que a sua aceitação, em representação do insolvente exorbita a natureza eminentemente patrimonial das funções do administrador de insolvência”.

269 “As ações relativas a bens que integrem o acervo da massa insolvente intentadas contra o devedor ou terceiro e as ações de fei ção

patrimonial, intentadas pelo devedor, poderão ser apensadas ao processo insolvencial, a pedido do seu administrador com fundamento na conveniência. A apensação vigora à pendência do processo, encerrado que seja, a ação é desapensada e remetida para o Tribunal competente (art.233.º, nº4). À data de declaração de insolvência as ações pendentes contra o devedor assumirão uma de duas vias: são apensas ao processo, nos exatos termos descritos, são suspensas ou extinguem-se.”, ob. cit, Coimbra Editora, 1999, p. 512.

270Questão pertinente - e que não colhia unanimidade Jurisprudencial - é a de saber qual o destino de uma ação declarativa pendente, não

apensa, para efeitos de reconhecimento do crédito. O Supremo Tribunal de Justiça vinha firmando Jurisprudência em prol da extinção por inutilidade superveniente da lide. Às palavras de José Lebre de Freitas: “ A impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra a extinção fora do esquema da providência pretendida, a solução do litígio deixa de interessar por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui por ele já ter sido atingido por outro meio", apud João Rendinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I.

O Ac. do STJ número 1 de 2014, publicado em D.R, 1ª série de 25 de Fevereiro de 2014 uniformizou jurisprudência: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitado de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide nos termos da alínea e) do art.287º. do C.P.C.”

Neste sentido, entre muitos, o Ac. do STJ de 20-09-2011 Relator Garcia Calejo, e o Ac do mesmo Tribunal datado de 2-03-2010. Sob a argumentação de que a posição inversa abriria espaço a situações de conluio e favorecimento entre credores específicos ou falsos credores. Com entendimento distinto, os Acs do TRP 17-12-2008 Relator Maria Catarina, TRP de 22-09- 2009 Relatora Ana Lucinda Cabral, Ac. do TRP de 2-03-2010 Marques de Castilho e Ac. do TRL de 15-02-2011.

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seja mais benéfico para a massa. De um lado, os interesses da massa insolvencial, do outro, o interesse do credor (promitente).

O legislador para fazer face a este estado de coisas em que uma igualdade abstrata impera concedeu ao administrador de insolvência uma dualidade eletiva – a execução do contrato ou a recusa do seu cumprimento.

Limitado, teoricamente, o espaço próprio de atuação do administrador de insolvência, há que indagar, sobre o significado da recusa, da culpa e da imputabilidade reflexa O conflito que aqui se estabelece, haja ou não direito de retenção, é entre o sentido que tais conceitos revestem no direito de insolvência.

Impõe-se um afinamento conceptual

A recusa não é um ato da contraparte do promitente-comprador, nem a mesma deve ser tida como culposa (mera possibilidade de que o administrador tem para exercer em prol da massa).

O acórdão mencionado assaca o incumprimento do insolvente mediante uma

imputabilidade reflexa271

A imputabilidade deve ser entendida, neste particular, como ter dado causa a, ter

motivado272.

Em última análise, deve considerar-se que o promitente deu causa à situação, desde logo, por uma eventual inércia em preparar o cumprimento273. O próprio art. 20.º.nº1 do CIRE estabelece factos índices cujo teor deixa já transparecer essa mesma “imputabilidade”.

Não pretendemos, frise-se, associar a culpa, enquanto pressuposto de incumprimento, à insolvência. O conceito de insolvência culposa (incidente) não coincide com a noção de culpa civilista.

No rigor dos conceitos, concebemos que a insolvência nem sempre significa incumprimento das obrigações, porquanto a insolvência pode ter sido fortuita, art.185.º e art. 189.º,n.º1 do CIRE.

Mau grado, há uma obrigação, um credor, um devedor e uma prestação não realizada e que pode reflexamente ser imputada à atuação do devedor274 visto o sinalagma funcional

271 Ac. do STJ de 19-09-2006 relator Sebastião Póvoas: ”a falência gera uma situação de impossibilidade objectiva e superveniente de

cumprimento por parte do promitente-vendedor falido, a quem essa impossibilidade é imputável por se ter colocado em situação que não lhe permite satisfazer pontualmente as suas obrigações”, in www.dgsi.pt

272 Passim, Gravato Morais, Promessa Obrigacional de compra e venda com tradição da coisa e insolvência do promitente-vendedor, p. 8. 273 Brandão Proença, do incumprimento do contrato-promessa bilateral, ob. cit., p. 89.

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persistir mesmo em situação de insolvência 275. Uma “imputabilidade reflexa” causal da insolvência, considerando o comportamento do promitente vendedor na fonte refletida do processo falimentar.

Voltando ao círculo de casos e implicações práticas que a posição contrária –à por nós defendida e adotada no AUJ – traduz, esboçaremos quadro sinóptico, tendo por referência os seus argumentos .

Fosse o contrato resolvido antes da declaração de insolvência o credor poderia reclamar o seu crédito titulado com o direito de retenção, art.47.º, n.º4 al. a) do CIRE e o art.755 ºn.º1, al. f) do CC

Se tiver sido declarada a insolvência sem que tenha havido ainda incumprimento definitivo da promessa e se o administrador optar pelo cumprimento e depois não cumprir, a outra parte poderá resolver o contrato e exigir o sinal em dobro.

De forma distinta, a recusa de cumprimento conduziria, nos termos do art.106.º n.º2 do CIRE, à aplicação do art.104.ºn.º5 do CIRE onde se contempla a indemnização pela diferença, sendo que este remete, com a especialidade vertida, para o art.102.ºn.º3 do CIRE.

Uma dúvida metódica nos cerca, a de saber se tal não constitui um certo, contributo (patológico) para que os devedores relegassem ao domínio insolvencial a satisfação do (s) crédito (s) Sendo sabido de antemão que o montante indemnizatório assumiria aí valor inferior. Sendo certo que, a situação configura um recorte próximo ao do incumprimento definitivo do contrato, o qual, resulta de uma impossibilidade não muito apartada da espera de atuação, ora do PV, ora do Administrador de Insolvência.

Ainda em raciocínio hipotético: ficcionando não existir lacuna teleológica, atentemos ao suposto alcance do art.106 do CIRE, permanecendo, para o conseguir, espartilhados ao dogma e à solução imediata que resulta da lei na leitura superficial e não integrada da mesma. Isto posto, o promitente-comprador que prestou sinal terá que abandonar o imóvel, onde porventura viverá, passando a ser credor comum de uma indeminização calculada nos termos do art.106ºdo CIRE e que pode estar limitada ao valor do sinal. De que viria a obter, em rateio geral, eventualmente, uma mera porção.

Aceitar (aparente) contradição valorativa entre a finalidade legal e a sua aplicabilidade prática é desvirtuar, parece-nos, o objetivo primordial: a proteção do interesse do adquirente cumpridor276 em prol de um conceptualismo desprovido de justiça material.

275 Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, O novo regime insolvencial de compra e venda, in revista da Faculdade de Direito da

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A importância económica do contrato, a que uma frequência prática crescente corporiza, articulada à feição, por regra, assumida pelo promitente adquirente (vulgo consumidor) abrem caminho à solução mais justa que o problema exige. Repudiar a sua utilidade é tolher a realidade, constrangendo concomitantemente os instrumentos jurídicos que devem estar ao serviço dos contraentes para melhor tutela de seus interesses.

Somos, por isso, conduzidos a uma interpretação restritiva do art.106.º, n.º2 do CIRE, retirando do seu âmbito a promessa sinalizada. Resulta da análise dos regimes civil e insolvencial a falta de regulamentação da situação da recusa de cumprimento por parte do administrador de insolvência no contrato-promessa sinalizado em que o promitente-vendedor (empreiteiro, mediador imobiliário) seja insolvente. Eis uma lacuna teleológica cujo suprimento requer o recurso à analogia.A qual, por sua vez, leva à aplicação do art.442.º do CC 277278

Por outro lado, a teleologia radicada na concessão do direito de retenção ao beneficiário de promessa, art.755.n.º1, al f) do CC – em domínio de extra processo insolvencial, encontra justificação plena – e quiçá necessidade maior – após a declaração de insolvência.

Logo, a posição do promitente-comprador na promessa com eficácia obrigacional sinalizada e em que tenha ocorrido tradição, se o administrador recusar o cumprimento, consiste no crédito do direito à restituição do sinal em dobro (por uma imputabilidade reflexa como requisito de incumprimento) garantido por um crédito de retenção,

A graduação de créditos é geral para os bens da massa insolvente e especial para os bens a que respeitam direitos reais de garantia e privilégios creditórios gearis,art.140.º,n.º2CIRE.

Logo, para o bem objeto da garantia.

Ou seja, se em tempo útil o credor garantido propuser a aquisição do bem, por preço superior ao da alienação prevista, o administrador de insolvência se recusar a proposta, fica vinculado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse montante, se vier a concretizar-se por preço inferior.

276 Gravato Morais, Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente – vendedor, Anotação Ac. de Uniformização de

Jurisprudência n.º4/2014, Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º46º, Abril-Junho 2014.

277 Idem, Calvão da Silva, ob.cit. Sinal, 12º Edição, p. 164 e ss.

278 A solução não é inovadora. O código civil de Macau, tendo por base, segundo Almeno de Sá a “lógica do princípio da efetividade dos

direitos do credor”, alude a uma indeminização suplementar se o dano for consideravelmente superior ao valor do sinal, admitindo a redução judicial caso o valor fira a equidade”, in Traços Inovadores do Direito das Obrigações no Código Civil de Macau - o princípio de efetividade dos direitos credor, in BFD,LXXXV,1999, p. 558.

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Por esta via, se permite, ao promitente garantido, que venha a adquirir o bem objeto de retenção279

Expulsa pela porta principal a justiça ela acaba por regressar por outras vias280., assim sucedeu, com o quadro gizado pelo AUJ n.º4-2014