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2 BASES TEÓRICAS

2.1 TEORIA CRÍTICA

2.1.3 A indústria cultural como manifestação da razão instrumental

Segundo a Teoria Crítica, a indústria cultural é uma manifestação exemplar da razão instrumental. Na obra A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, de Adorno e Horkheimer (1985), é feito um detalhamento de como o sistema midiático é capaz de promover uma alienação e dependência das pessoas por meio da oferta de um excesso de informação e ilustração. Ele se transformou ao longo dos anos “no mais sensível instrumento de controle social e na venda em liquidação de bens culturais, na decadência da cultura e progresso da barbárie” (op. Cit., 1985, p.32), apontando as várias tecnologias (o rádio, a televisão, o cinema e a música da época) como instrumentos de dominação e poder.

Os elementos da indústria cultural, embora existentes antes dela, levaram à intensa padronização, à produção e ao consumo em série de mercadorias, em todo o mundo, a partir dos países liberais industriais, a serviço dos setores mais poderosos do aço, petróleo, eletricidade e química, fortalecendo o sistema capitalista.

Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos... O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.114).

Nessa ideologia do negócio, “os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.116). Adorno enfatiza ainda que a indústria cultural é violenta nos estímulos que faz no fomento ao consumismo, pois ocupa de forma acelerada todos os espaços, apresenta todas as previsões dos fatos e dos acontecimentos e não dá brechas para que o expectador entre com sua fantasia, pensamentos, imaginação e reflexão. Atrofiado, o expectador é impedido de desenvolver sua atividade intelectual, “se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.119).

O poder nas e das mídias dentro do sistema capitalista5 se revela no sentido de que

“tudo que vem a público já foi ajustado de antemão” e antecipado com uma dada intenção. “Algo está previsto para todos: para que ninguém escape” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.116). Com relação à veiculação das propagandas de produtos, Adorno destaca que as

5 Esse poder da indústria cultural pode ser facilmente ilustrado com o caso do impeachment da presidenta do

Brasil – tema que ocupou em 2016 a vida, a mídia e a preocupação dos brasileiros. Segundo Leonardo Boff, “é sintomático que em março de 2014, Emy Shayo, analista do JP Morgan, coordenou uma mesa redonda com publicitários brasileiros ligados à macroeconomia com o tema: ʻcomo desestabilizar o governo Dilmaʼ”. O autor alerta que a intenção maior da jogada midiática, longe de ser somente de grupos brasileiros, é desestabilizar o Brasil (também pela participação na BRICS - grupo político de cooperação composto por

Brasil, Rússia, Índia, China, e África do Sul) e a América Latina em geral, a partir de uma estratégia global pelo domínio do mercado do petróleo, de um processo que estava sendo construído pela BRICS com fortalecimento e autonomia dos envolvidos. Parece se enguer uma onda direitista que vem pressionando todos os países da América Latina, principalmente os governos progressistas (na Argentina, por exemplo), “que elevaram o nível social dos mais pobres, de forma democrática” (BOFF, 2016).

aparentes vantagens e desvantagens discutidas, quando apresentadas, “servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. [...] “Para o consumidor não há nada mais a classificar” (idem, p.116). O estímulo voraz e veloz ao consumo tem como premissa o descarte daquilo que foi produzido ontem. Tudo deve estar em constante movimento, numa reprodução mecânica e superficial de conteúdo. Com isso, a indústria cultural apresenta para Adorno uma sucessão acelerada de coisas aparentemente novas, mas que se constituem, na essência, sempre a mesma coisa, “têm a imitação como algo de absoluto”, compondo um sistema de barbárie estética, um sistema que funciona “no esquematismo da produção” (idem, p. 123), que nega a cultura e a formação às pessoas. Desde o trabalho até os momentos de lazer, “as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza a produção” (idem, p.117) e mergulhar no culto sedutor desta “catedral do divertimento de alto nível” (idem, p.134) articulada pela indústria cultural.

Sob o monopólio privado da cultura, a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma... Os consumidores são os trabalhadores e os empregados, os lavradores e os pequenos burgueses. A produção capitalista os mantém tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido... Obstinadamente insistem na ideologia que os escraviza. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.125)

Diante de tanta má qualidade e malefícios, Adorno nos provoca a pensar sobre por que permitimos que a indústria cultural invada nossas vidas, sem uma forte resistência social. Isso acontece, segundo ele, porque a indústria cultural é imbuída de uma promessa permanente de felicidade, lazer e prazer. No entanto, essa promessa não é cumprida, de fato. A felicidade e o prazer são sempre prorrogados, numa espécie de “crueldade organizada” (ADORNO;

HORKHEIMER, 1985, p.129)6. As frustrações se somam, crescem e parecem se enovelar em si

mesmas.

A violência das sensações, ressalta Türcke (2010), se constitui em choques visuais que superexcitam a todos. E é a partir dessa superexcitação que as pessoas são exploradas para o consumo. Tais choques visuais atuam de forma sistemática “para o retrocesso do prazer em pré-prazer” (p.293). O autor enfatiza ainda que as contínuas repetições compulsivas de toda

6 Diversos trabalhos de análise do consumismo infantil, orientados por Valquíria Padilha (FEARP/USP), têm

mostrado crueldades da mídia com relação às crianças, que, em processo de formação da personalidade, sem proteção e senso crítico formado, tendem a sofrer mais com as seduções violentas midiáticas.

essa aparelhagem midiática fomentam uma loucura cultural, que carrega um estado de vício e, consequentemente, gera comportamentos de abstinência.

Os estímulos iniciam e obstam. Seu gozo é muito mais pré-prazer do que prazer. Oferecem mais a demolição do desprazer do que a construção do prazer. Os substitutos se transformam na própria coisa: em fetiches, em substâncias que viciam. Eles são ingeridos para evitar o desprazer que se anuncia quando não mais são consumidos. (TÜRCKE, 2010, p.292).

O autor nos coloca (a todos) como viciados e parte desse problema. A primeira questão é a característica essencialmente conformista do vício, “quando nos deixamos ser explorados neurológica e esteticamente diante de um conta-gotas da aparelhagem multimidiática” (TÜRCKE, 2010, p.294). A exploração se dá por uma pressão objetiva e subjetiva, tanto numa pressão externa, como internamente, pelo sujeito excitado. Com isso, é possível traçar um paralelo entre o vício causado por certas substâncias e o efeito das multimídias. Assim como o vício, que não cumpre o gozo que promete, são os choques audiovisuais, com cenários tridimensionais, com maior plasticidade, numa “explosão de sucedâneos audiovisuais”; num “impulso imagético frenético” (idem, p.294). A difícil, quase insuportável, adaptação à sociedade atual exige alívios e, assim, a indústria cultural e sua ação viciadora cumprem um papel fundamental de anestesiar nossos sentidos. O papel das mídias sobre a formação e a vida das pessoas é enorme e podemos supor que, hoje, com a influência que a internet passou a ter, os efeitos nocivos estejam bastante amplificados.

Türcke (2010) cunha o termo distração concentrada para a situação em que nos encontramos adictos às mídias, seja nos celulares e computadores individuais, no olhar fiel e ansioso à espera da próxima mensagem do WhatsApp, do Facebook e das demais “redes sociais”. Absortos por horas na sequência acelerada de ofertas imagéticas, sem perceber o que acontece ao redor, as pessoas podem ficar totalmente concentradas numa distração das situações mais importantes da vida7.

De qualquer forma, “um lado bom da internet (assim como o telefone), por exemplo, pode ser o de ajudar os tímidos a ultrapassar a barreira psicológica para fazer os primeiros contatos com outras pessoas, aos desesperados e solitários, a ligar-se com o mundo exterior”

7 Quantas experiências de qualidade se deixam de viver em função das horas dedicadas à leitura e digitação

de comunicados superficiais numa suspeita forma de relação interpessoal proporcionada pelas redes sociais? Considerando-se que na rede “social” Facebook é viável “curtir” um aniversário sem falar com o aniversariante, expor o último pacote da viagem consumida e até informar e ou “curtir” o falecimento de um parente, é possível dimensionar a espetacularização que pode ser feita de absolutamente tudo.

(idem, p.291), funcionando como um confessionário moderno “e lugar de um cuidado psíquico recíproco e informal” pela reserva e preservação do anonimato (ibidem)8.

Muitos motivos clamam pela emancipação, como as contradições sociais e a falta de liberdade para ser autêntico, mas as pessoas - sem reação - são absorvidas por mediações poderosas que as configuram de forma heterônoma, desviadas de seu potencial e de sua consciência. Retomando a questão colocada por Adorno sobre por que não resistimos à indústria cultural, ele destaca que ela controla os consumidores pela mediação da diversão e do entretenimento, não pela dor e pelo esforço. É pelo humor e pelo riso do outro e do cotidiano ridicularizado que essa indústria vem aliviar o cansaço dos atarefados e afastar qualquer possibilidade de crítica e resistência ao sistema (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Assim, ela “fisga” cada pessoa como um consumidor (objeto) facilmente manipulável.

Segundo Grushka (2014), o potencial dos novos meios de comunicação para a propagação e legitimação da frieza também era apontado por Adorno e Horkheimer. A frieza como parte da subjetividade burguesa pode ser ilustrada na diversão com os sofrimentos dos outros em programas televisivos, demonstrando “uma bárbara falta de relação com a respectiva vítima” (p.53)9. Da mesma forma, até torturas e cenas de guerras podem ser

apresentadas de forma tão atraente, fria e criativa, que podem ser vivenciadas como uma ficção, “um espetáculo bárbaro, dissolvido na manipulação” (ibidem). Assim, o sofrimento das pessoas não é foco de reflexão. A partir de uma linguagem fria que distorce a realidade, é possível eliminar a experiência das pessoas. A frieza desse modo de funcionamento revela o objetivo maior da venda e lucro com as imagens.

A indústria cultural também interfere diretamente na concepção e propagação da arte, na medida em que transforma tudo em negócio reproduzível. No entanto, na reprodutibilidade técnica da arte, “mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”, segundo Walter Benjamin (2012, p.181). A arte carrega seus vestígios históricos, suas

8 Embora possamos questionar quão real é o anonimato prometido pela internet, pois ela fomenta, ao mesmo

tempo, a exposição fácil dos dizeres, fotos e análises mais espontâneos e, por vezes, criminosos, de pessoas que parecem olvidar que estão sujeitas à visualização de muitos. Até as fotos e cenas íntimas, expostas sem cerimônias, parecem revelar uma falta de percepção das famílias sobre as possíveis consequências de tal exposição.

9 A veiculação das “vídeocassetadas”, no programa Domingão do Faustão, da Rede Globo/ Brasil, é exemplo

transformações no tempo e seu conteúdo autêntico, transmitindo sua tradição, sua função ritualística, sua aura. E a aura escapa à reprodutibilidade técnica, pois, esta, ao contrário, inverte a lógica e reproduz uma “obra de arte criada para ser reproduzida” (idem, p.171). Daí o declínio da escultura e da arte dramática e o avanço da fotografia e da produção cinematográfica, com “seus intérpretes exilados de si mesmos, [...] atuando domesticadamente para um aparelho” (idem, p. 171).

Mas, mesmo diante desse poder da indústria cultural, “a arte escorrega sutilmente dos confins da coisificação, da utilidade” (PUCCI, 1994, p. 26). A grandeza da obra de arte reside em seu poder de permitir que sejam desveladas as coisas que a ideologia oculta (idem, p.34). Somente a arte genuína contém um momento utópico que aponta para uma futura transformação política e social, em que a estética assume um caráter político, no sentido mais profundo do termo (idem, p.45). Assim, a Teoria Crítica e a arte apontam para “uma futura transformação política e social como instrumentos da negação do status quo”. (idem, p.25). A verdade estética só se revela nas obras que se desafiam a atingir a autonomia frente à sociedade atual, em oposição à razão instrumental que busca utilidade em tudo. O artista expõe diferentes identidades e uma diferença qualitativa em cada obra (PUCCI, 1994). E Benjamin lembra que o comunismo responde com a politização da arte (2012, p.212).

A crise de formação cultural, potencializada pela indústria cultural, resulta num problema de semiformação, que será tratado a seguir.