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2. As regras escolares e a questão da autonomia

2.1 A indisciplina na escola

A indisciplina é uma das discussões mais comuns e freqüentes no campo educacional e discorrendo o estudo de Longarezi (2001) sobre este tema, poderemos acompanhar algumas idéias equivocadas a esse respeito.

Longarezi (2001) teve como objetivo identificar quais são os sentidos da indisciplina na concepção dos professores, da equipe técnica (diretor, coordenador e inspetores de alunos) e dos alunos.

Para a autora, compreender a indisciplina é uma questão muito difícil, pois, constitui um fenômeno de múltiplos significados e valores, com muitas dimensões e de difícil abordagem.

Um dos pontos ressaltados, segundo Longarezi (2001, p. 11), foi o de

como contribuir para a constituição de uma educação que preserve a liberdade sem abrir mão da autoridade, visto que a interpretação errônea de liberdade e independência na escola e na família, trouxe ao processo educativo uma visão de que o aluno pode fazer o que deseja ou apenas o que é de seu interesse, não havendo respeito, contribuindo com o individualismo e o egocentrismo.

Foram identificados cinco tipos de transgressões de naturezas variáveis, sendo: transgressões ativas – andar, conversar na sala de aula; transgressões

passivas ou de fuga – não prestar atenção na aula, não fazer as atividades

propostas; transgressões envolvendo valores éticos - não mentir e roubar; transgressões agressivas, destrutivas ou invasivas nas relações com o

envolvendo violência oral ou corporal – ameaçar, agredir ou matar, sendo ora

consideradas indisciplina, ora não-indisciplina. Constatou “a dificuldade em estabelecer com precisão, o que é ou não permitido, aceito e, conseqüentemente, o que é ou não um comportamento indisciplinado” (LONGAREZI, 2001, p. 215), identificando três dimensões de transgressões: a

pedagógica ou técnico-pedagógica, visto que a disciplina é considerada

condição fundamental à atuação docente; a ética e moral, que teve maior ênfase nos discursos dos sujeitos envolvendo aspectos valorativos e normativos; e a individualista ou egocêntrica, quando os direitos e as necessidades individuais são colocados acima dos direitos e das necessidades sociais.

A falta de regras e limites foi uma questão que predominou na opinião do corpo docente e da equipe técnica, no que se refere às atitudes e comportamentos inadequados na escola, mas, ao serem questionados sobre o comportamento dos alunos na escola, classificam-nos como disciplinados, confirmando a dificuldade na caracterização do que é indisciplina e não- indisciplina.

A escola, segundo Menin (1996), constrói muito mais uma moral heterônoma do que uma moral autônoma, através de práticas comuns já incorporadas por professores que privilegiam atividades individuais. Afirma que “a existência e a necessidade das regras são justificadas quando as razões são compartilhadas”, mas, além de conhecer e obedecer às regras, a moralidade implica refletir sobre elas, só assim há a possibilidade de respeitá-las.

A este respeito, Longarezi (2001) salienta que o problema está na impossibilidade de uma reflexão sobre o que não se conhece.

Vinha (2000) também faz algumas considerações sobre a indisciplina e ressalta que o conceito de (in)disciplina está associado à concepção de cada educador.

A concepção mais usual é a de que ser disciplinado é ser obediente ou submisso e qualquer ato contrário, como a discordância, bagunça, pergunta fora de hora, é considerado como indisciplina. Portanto, a escola tradicional justifica este tipo de disciplina como sendo necessária para a aprendizagem. Dessa forma, as crianças devem comportar-se ajustando-se às normas de não conversar, ficar sentados, prestar atenção, fazer o que o professor mandou, etc.

Por outro lado, segundo Vinha (2000), muitas escolas querem romper com os métodos tradicionais e tendem para total permissividade, pois nesta perspectiva disciplina é sinônimo de opressão. Mas, este tipo de concepção não leva à autonomia, muito pelo contrário, privilegia-se a anomia, já que as crianças não são levadas a considerar o outro em suas relações.

Essa dicotomia autoritarismo-permissividade deve ser superada por uma relação de respeito mútuo e reciprocidade que possibilite o diálogo e as trocas de pontos de vista mediante a elaboração das regras pelo grupo. Dessa forma, a indisciplina é vista como uma transgressão que desrespeita os acordos firmados.

Para exemplificar essa situação, Vinha (2000, p. 131) comenta um estudo realizado por Delval e Enesco, que comparou o tipo de relação existente em três grupos de crianças: o autoritário, em que o adulto impunha as atividades para as crianças e direcionava o que iriam fazer; o democrático, em que todas as decisões eram tomadas mediante discussões com o grupo; e o

“laissez-faire”, em que predominava a permissividade e as atividades não eram

estabelecidas e cada um realizava-as de acordo com sua vontade. Os resultados mostraram que a tendência dos grupos autoritários era de apatia e agressividade, principalmente, quando o líder se ausentava; os democráticos eram mais estáveis e a tendência era para a atuação autônoma; e os grupos

“laissez-faire” mostraram-se caóticos.

Isso demonstra o quanto o posicionamento do professor com relação a sua prática pedagógica e na sua interação com o aluno influencia nos aspectos do desenvolvimento da moralidade.

Outra questão importante da indisciplina é que muitos professores procuram justificá-la por fatores externos. Alguns afirmam o caráter social da indisciplina, como o reflexo da pobreza e das situações de violência vividas pelas crianças. Outros consideram que a indisciplina tem suas raízes nos relacionamentos familiares, como lares desestruturados, pais ausentes e omissos, etc. Há ainda aqueles como os encontrados no estudo de Longarezi, que associam a indisciplina à personalidade do sujeito.

Todos esses fatores isentam a escola da responsabilidade pela indisciplina, já que os fatores não são de seu alcance, pois têm suas origens em outras esferas.

Mas devemos salientar que a indisciplina se constitui mediante a interação da criança nos mais variados ambientes e, por isso, as relações estabelecidas em sala de aula, como as citadas acima (em ambientes autoritários ou permissivos, que não colaboram com a interiorização das regras), são passíveis de favorecer comportamentos indisciplinados.

Uma das regras mais importantes cobradas na escola é a de “não mentir”. Alguns dados do estudo de Longarezi (2001) mostraram resultados interessantes sobre essa regra.

A maioria dos professores julgou mentir para o professor ou mentir para outro aluno, como comportamentos não-indisciplinados, enquanto para a equipe técnica mentir permaneceu para alguns como um comportamento indisciplinado e, para outros, um comportamento não-indisciplinado.

Os alunos mostraram-se ainda egocêntricos, sendo mais exigentes ao julgar os comportamentos dos colegas do que os seus próprios. Quanto à mentira, foi um dos únicos comportamentos considerados pela maioria deles como não-indisciplinado, quando se tratava de mentir para um outro colega.

Na opinião dos professores, mentir para o professor não é indisciplina por tratar-se de um comportamento que expressa traços de personalidade ou caráter desviante; para a equipe técnica, é apenas um hábito, uma necessidade ou uma dificuldade do aluno; e para os próprios alunos, trata-se de uma resposta ao comportamento do outro ou ao ambiente.

A mentira foi identificada como transgressão envolvendo valores éticos, caracterizada como traço da personalidade e/ou caráter desviante, denotando a indisciplina um problema psicológico, ou até mesmo patológico,

assim, fica difícil imaginar uma forma de resolver a questão, pois ela é tratada como uma enfermidade, como uma doença difícil de ser curada, porque já tomou conta do que caracteriza a própria essência do ser humano: a sua personalidade (LONGAREZI, 2001, p.154).

Mas, atribuir o problema da indisciplina a um problema de personalidade demonstra uma falta de conhecimento dos processos “naturais” (espontâneos) do desenvolvimento do ser humano, como a moralidade. O mesmo pode ser dito com relação à noção de mentira, que faz parte do desenvolvimento moral, e que, conforme os resultados apresentados por esse estudo, está sujeita a equívocos.