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1. O construtivismo piagetiano

1.3 O desenvolvimento da noção de mentira

Como foi observado nos estudos de Piaget sobre as regras do jogo, a coação do adulto favorece o aparecimento da heteronomia e, por outro lado, no que se refere à consciência, o egocentrismo não deixa que a criança consiga perceber e coordenar os diferentes pontos de vista.

Piaget (1994) compara a coação moral com a coação intelectual, por serem as regras exteriores, recebidas do adulto, predominantes nos juízos (moral) e na linguagem (intelectual), fazendo a comparação também entre o realismo nominal, aquele resultante da confusão entre o signo e a coisa (o nome tem existência material) e o que denominou de realismo moral, ou seja,

a tendência da criança em considerar os deveres e os valores a eles relacionados como subsistentes em si, independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstâncias às quais o indivíduo está preso (p. 93).

Portanto, é com a intenção de estudar os juízos da criança que Piaget (1994, p.114) aprofunda-se na noção que se refere à mentira, dizendo penetrar mais no fundo na intimidade das avaliações infantis, pois “a tendência à mentira é uma tendência natural, cuja espontaneidade e generalidade mostram quanto ela faz parte do pensamento egocêntrico da criança”.

A criança pequena não mente por mentir, na verdade, ela altera a realidade em função dos seus desejos e fantasias. Segundo Piaget (1994, p. 131) foi o que Stern chamou de pseudomentira ou mentira aparente, devido à espontaneidade da mentira infantil.

Até aproximadamente os 7/8 anos, a criança não tem obstáculo interior à mentira, mente como brinca, pois não sente a necessidade de dizer a verdade.

A criança recorre à pseudomentira quando deseja sair de uma situação difícil, então, inventa uma história. Assim como do ponto de vista intelectual a criança evita questões difíceis, do ponto de vista moral não percebe nada de errado em alterar a realidade conforme seus desejos. Trata-se da própria estrutura do pensamento espontâneo da criança e não de uma verdadeira intenção de mentir.

A análise do desenvolvimento da consciência da mentira para Piaget teve como primeiro objetivo a definição da mentira, constatando suas tendências a partir das definições das crianças.

Depois, analisou a questão do tipo de responsabilidade dos conteúdos das mentiras. Segundo Piaget (1996), no julgamento infantil duas tendências estão presentes: a responsabilidade objetiva, quando a criança considera o ato proporcionado e não a intenção, isto significa que quanto maior a mentira, a transgressão, o valor material dos objetos, por exemplo, maior a culpa; e a

responsabilidade subjetiva, em que o julgamento se faz em função da intenção,

ou seja, o resultado de um ato pode ser analisado de acordo com uma intenção boa ou má, não se levando em consideração apenas o dano material resultante desse ato.

Piaget (1994) encontrou três etapas com relação ao desenvolvimento da consciência da mentira.

Na primeira etapa, puramente realista, a criança define a mentira como “nome feio”, mas ela sabe que mentir consiste em não dizer a verdade. O que ocorre é um sentido comum da palavra “mentira”, seria uma falta moral que se comete através da linguagem. Isso provavelmente acontece porque o adulto repreende a criança da mesma forma com relação às coisas não verdadeiras que a criança fala e quando ela pronuncia coisas que realmente não devem ser ditas, como os palavrões e as blasfêmias. Com isto a criança acaba por estabelecer uma relação entre estas duas situações, considerando ambas como mentiras, tanto o que não é verdade como os palavrões ou blasfêmias. Assim, a proibição de mentir permanece sob a coação do adulto; portanto, a mentira é exterior à consciência da criança.

Nesta etapa há o predomínio da responsabilidade objetiva, em que a criança concebe a mentira relacionada com a punição, isto é, se houver punição é realmente uma mentira e não se deve mentir, caso contrário, sem qualquer tipo de punição, não há mentira, então, pode-se mentir. Outra característica predominante da responsabilidade objetiva está baseada na relação da mentira com a gravidade que ela proporciona, isto é, para a criança pequena a mentira mais grave é aquela que mais se afasta da realidade.

A segunda etapa consiste na noção de mentira como uma falta em si só, pois a criança não distingue muito bem na prática um ato intencional de um erro involuntário, isto devido aos fenômenos do finalismo, animismo e artificialismo2, portanto, mesmo se não houver punição, a mentira é considerada como tal. Somente quando esses fenômenos começam a desaparecer e ocorre um avanço das noções do intencional e do involuntário, é que a criança fará a diferenciação entre erro e mentira, considerando esta como uma afirmação intencionalmente falsa, o que constitui a terceira etapa do desenvolvimento da consciência da mentira, isto é, a mentira opõe-se à confiança e ao respeito mútuo. Assim, a “consciência da mentira interioriza-se então pouco a pouco e podemos apresentar a hipótese de que isto sucede sob influência da cooperação” (PIAGET, 1994, p.137).

Para a criança desta etapa, a mentira mais grave é aquela que consegue atingir seus objetivos, havendo a diferenciação entre mentira e erro ou exagero, o que não acontece na etapa anterior.

A mentira entre crianças é vista de maneira diferente, pois a criança pequena julga menos grave mentir entre elas e muito mais grave mentir para os adultos, enquanto os maiores afirmam que a mentira é grave tanto nas relações entre crianças quanto nas relações com o adulto. Assim, o realismo moral, em que há a predominância da responsabilidade objetiva, apresentada nas crianças menores, ocorre por coação do adulto juntamente com o

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O finalismo faz com que a criança tome a causa dos fenômenos físicos pela sua finalidade ou vice-versa, “a verdadeira causa que a criança busca nos fenômenos é precisamente uma

intenção, que é, ao mesmo tempo, causa eficiente e razão de ser do efeito a explicar”

(PIAGET, s/d, p. 189); no animismo as crianças consideram que os objetos inanimados têm vida e consciência; e no artificialismo as crianças confundem os fenômenos naturais e a causalidade material com a fabricação humana.

egocentrismo infantil; e a responsabilidade subjetiva é favorecida quando as relações são de cooperação.

Portanto, a mentira está associada aos dois tipos de respeito que fundamentam o desenvolvimento da moralidade.

O respeito unilateral é aquele em que a criança, por ainda estar presa às condutas egocêntricas, não consegue interiorizar e compreender a regra de não mentir imposta pelo adulto, o que faz essa regra ser considerada como sagrada pela criança; e o respeito mútuo ocorre quando há cooperação.

Somente com a cooperação e a superação do egocentrismo é que será possível que a criança aos poucos compreenda a necessidade da regra de não mentir, ou seja, quando o respeito mútuo tiver primazia sobre o respeito unilateral e seus julgamentos não estiverem mais pautados na responsabilidade objetiva.