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1. O construtivismo piagetiano

1.2 O desenvolvimento das regras: a prática e a consciência

Para estudar a regras do jogo e as regras sociais, Piaget (1994) utilizou o jogo de bolinhas de gude, por ter regras bem definidas e complexas, procurando através dos relatos verbais e da ação do sujeito, verificar como a criança toma consciência das regras e passa a respeitá-las. Assim, o jogo de regras serviu para o estudo da prática, o modo que as crianças tentam jogar, e da consciência, isto é, o entendimento das regras, observando que a prática irá definir a mudança ou não das atitudes ou regras do jogo, pois para Piaget (1994) “a ação precede a consciência”.

Do ponto de vista da prática da regra, encontram-se quatro estádios sucessivos:

O primeiro estádio é o motor ou individual, que corresponde à faixa etária de até dois anos, aproximadamente. Neste estádio, a criança joga conforme os seus desejos e hábitos motores; não há regras coletivas e sim regras motoras que fazem parte de um esquema mais ou menos ritualizado e que apresentam um acerta regularidade. As crianças repetem sucessivamente

comportamentos particulares, em que não há esforço de adaptação. Havendo esquemas ritualizados, não existe submissão a algo superior, pois os comportamentos surgem da própria ação do sujeito, não caracterizando o surgimento da regra (PIAGET, 1994).

No segundo estádio, egocêntrico, por volta dos 2 aos 5 anos, aproximadamente, aparecem a linguagem e a imitação e inicia-se a conduta social mediante a verbalização da criança com o adulto. No que se refere ao jogo, a criança já recebeu exemplos de como se joga e apenas repete esta prática por imitação, pois recebe exemplos que são impostos de fora, isto é, externos. Ao jogar preocupa-se só consigo, jogando praticamente sozinha, não leva em consideração o parceiro. A criança acredita que o modo como ela joga é a maneira integral das regras, maneira esta que lhe foi transmitida pelos mais velhos.

O terceiro estádio, o da cooperação, por volta dos 7 a 8 anos, caracteriza-se por um interesse social, a criança sente-se pertencer a um grupo e começa a surgir a necessidade de controle mútuo e de regras, pois a criança tem como objetivo vencer o seu parceiro, mas a concepção das leis sagradas e imutáveis transmitidas pelos mais velhos está muito presente. Assim, as crianças não concebem as regras nos seus pormenores, tornando-as variáveis entre os jogadores.

No quarto estádio, a partir dos 11-12 anos, denominado de estádio de codificação das regras, as crianças que desde o estádio anterior procuram combinar as regras, mostram conhecê-las bem e há interesse em respeitá-las, prevendo todos os casos possíveis que possam ocorrer durante o jogo, atendo- se mais para a codificação das regras que ao jogo em si, deslocando o

interesse do estádio anterior da socialização para o interesse pela própria regra. Poderá haver mudança nas regras, desde que haja um consenso entre todos os jogadores, previsto na codificação das regras no início do jogo.

Quanto à consciência das regras, são propostos três estádios:

O primeiro estádio coincide com o início do estádio egocêntrico, assim, abrange os esquemas ritualizados e o início de uma conduta social, imposta moralmente pelo adulto. A criança não sente a obrigatoriedade da regra e, por já estabelecer relação com o ambiente e com o adulto, sabe que nos mais diversos domínios existem coisas permitidas e proibidas; assim também ocorre com o jogo de bolinhas. Para a criança, torna-se difícil distinguir o que é fruto de seu desejo e o que é proveniente da pressão ou imposição do adulto, a regra é puramente motora.

No segundo estádio, a criança utiliza-se da imitação e do contrato verbal para jogar, baseado em regras exteriores que foram transmitidas pelos mais velhos. A regra então, é considerada pela criança como sagrada e imutável, de origem adulta e eterna, sendo qualquer modificação proposta considerada como transgressão pela criança. Este estádio coincide com o apogeu do egocentrismo e primeira metade do estádio de cooperação. Há dois tipos de relações sociais que podem ser estabelecidas: a coação e a cooperação, sendo a coação um elemento do respeito unilateral, pois estabelece uma relação entre desiguais, que alia-se ao egocentrismo, enquanto a cooperação propõe o relacionamento entre iguais, favorecendo a descentração do egocentrismo.

No terceiro estádio, a regra é imposta pelo consentimento mútuo, o respeito é obrigatório, não existe coerção e a regra não é externa, depende do

consenso e da vontade coletiva do grupo. À heteronomia baseada no respeito unilateral da coação do superior sobre o inferior sucede a autonomia, relação entre iguais que está pautada na cooperação. Assim, a tradição das regras não é mais vista como sagrada e eterna e sim fruto de acordos que podem ser estabelecidos entre os indivíduos de um mesmo grupo.

Para Piaget (1994, p.64), “é a partir do momento em que a regra de cooperação sucede à regra de coação que ela se torna uma lei moral efetiva”.

Segundo o autor (1998, p. 61-62),

uma regra é um fato social, que supõe uma relação entre pelo menos dois indivíduos. E esse fato social repousa sobre um sentimento que une esses indivíduos uns aos outros e que é o sentimento do respeito: há regra quando a vontade de um indivíduo é respeitada pelos outros ou quando a vontade comum é respeitada por todos.

Assim, o fenômeno do respeito se apresenta, então, como unidade funcional, constituindo o “sentimento fundamental que possibilita a aquisição das noções morais” (PIAGET, 1996, p. 4).

Para que haja respeito, são necessários dois tipos de sentimentos: a afeição, que provém da admiração pelas pessoas que convivem com a criança, e o medo ou temor, que se estabelece através da relação do maior e mais forte. A criança imita as pessoas que admira, criando modelos que norteiam seus atos, mas existe também o sentimento do medo, pois esta relação propõe uma desigualdade do superior, no caso, o adulto, sobre o inferior, a criança. A mistura destes dois sentimentos dá origem ao respeito.

Deve-se salientar que a presença de apenas um desses sentimentos não desencadeia o respeito. Por exemplo, uma criança pode gostar e admirar muito o irmão mais velho, mas não sente a necessidade de obedecê-lo, pois para a criança o irmão não é visto como uma autoridade, portanto, nessa situação não há o respeito. Mas quando a criança está diante de uma situação com um adulto com o qual estabeleceu vínculos e este é visto como uma autoridade, a criança sente-se obrigada a obedecer às regras e, mesmo quando quebra a norma advinda dessa relação, permanece o sentimento de obrigação.

Portanto, para que a criança tenha uma aceitação interna das regras é necessário que sejam formuladas por um adulto respeitado, havendo a mistura de temor e afeição. Se a criança tiver pelo adulto apenas o sentimento de medo, na ausência deste não sentirá a necessidade de obedecer às regras, o que demonstra que existe apenas uma aceitação externa da regra (VINHA, 2000).

Há dois tipos de respeito: o unilateral, quando um indivíduo respeita um segundo sem ser respeitado em contrapartida, e o mútuo, quando dois indivíduos se respeitam mutuamente. O primeiro implica desigualdade entre aquele que respeita e aquele que é respeitado, trazendo consigo uma coação do superior sobre o inferior e caracterizando uma primeira forma de relação social, que é a relação de obediência, em uma relação de coação. A moral decorrente é essencialmente heterônoma. O respeito mútuo não implica nenhuma coação, os indivíduos se consideram como iguais e se respeitam reciprocamente, o que caracteriza um segundo tipo de relação social, que é a relação de cooperação. “A moral resultante se caracteriza por um sentimento

diferente, o do bem, mais interior à consciência, cujo ideal de reciprocidade tende a tornar-se inteiramente autônomo” (PIAGET, 1998, p. 29).

Portanto, percebe-se relação entre a prática e a consciência das regras, visto que a regra exterior proveniente de tradições de gerações ou da imposição do adulto caracteriza a heteronomia, pois não há uma consciência sobre a prática da regra. Somente quando a regra é internalizada, ou seja, a criança sabe o porquê da prática, é que existe a cooperação e a consciência da regra. Assim, o respeito heterônomo ou unilateral é sucedido pelo respeito mútuo.