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A Individualidade e a Discricionariedade como Traços do Tipo Contratual

1. Noção e Caracterização do Tipo Contratual

1.2 Caracterização do Contrato

1.2.2 A Individualidade e a Discricionariedade como Traços do Tipo Contratual

O contrato de gestão de carteiras pauta-se pela existência de um interesse de investimento do titular do património objecto da gestão já que pretende a sua rentabilidade, ou seja, tenciona retirar vantagens desse conjunto de bens por via da implementação de uma política de investimento a executar pelo gestor. Face a isto, há que realçar que uma das

características do contrato é precisamente a gestão individualizada116, o que permite

diferenciá-lo da gestão de instituições de investimento colectivo. Esta característica obriga o gestor a adaptar a actividade gestória ao cliente em concreto, nomeadamente ao seu perfil como investidor e aos seus objectivos.

Neste particular, o dever do intermediário conhecer o cliente impõe-se de modo mais vincado porque, para além de ter a obrigação de se informar acerca das características do investidor para que possa prestar os serviços de investimento de forma adequada, o que é

114 In “As Transacções de Conta Alheia no Âmbito da Intermediação no Mercado de Valores Mobiliários”, cit., pp. 298 e ss. Também

sobre as formas de actuação do intermediário, LUÍS DE LIMA PINHEIRO, “Direito Aplicável às Operações sobre Instrumentos Financeiros” in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IX, Coimbra Editora, 2009, p. 155.

115 Posição defendida por JOSÉ QUEIRÓS ALMEIDA in “Contratos de Intermediação Financeira enquanto Categoria Jurídica”, cit., pp.

297 e 298 e MENEZES LEITÃO in “Actividades de Intermediação e Responsabilidade dos Intermediários Financeiros”, cit., p. 133 e “O Contrato de Gestão de Carteiras”, cit., p. 110.

116 Assim o consagra expressamente a lei no art. 335º n.º 1 do Cód. VM, bem como a doutrina o sublinha. A título meramente ilustrativo,

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA in “Relação de Clientela na Intermediação de Valores Mobiliários”, cit., p. 122; RUI PINTO DUARTE,

“Contratos de Intermediação no Código de Valores Mobiliários” in Cadernos 7, 2000, p. 355; MARIA VAZ DE MASCARENHAS, “O

Contrato de Gestão de Carteiras: Natureza, Conteúdo e Deveres” in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, Nº 13, Almedina,

2002, p. 117; ANA AFONSO in “O Contrato de Gestão de Carteira: Deveres e Responsabilidade do Intermediário Financeiro”, cit., p.

60; MARIA MIGUEL REBELO PEREIRA in “Do Contrato de Gestão de Carteiras de Valores Mobiliários (Natureza Jurídica e Alguns Problemas de Regime)”, cit., p. 42.

49 transversal a todas as actividades de intermediação financeira, na gestão de carteiras este dever desempenha uma outra função ligada à própria natureza do contrato. É que o gestor tem efectivamente que conhecer o seu cliente para que o cumprimento da obrigação principal à qual está adstrito se efectue em absoluta conformidade com o regime legal. Isto porque, o gestor não se desonera da sua prestação com a simples administração da carteira; essa administração tem que ser individualizada, isto é, tem que corresponder aos interesses daquele cliente em específico, tem que ser desenvolvida em consonância com o tipo de investimento pretendido, a fim de realizar ou, pelo menos, de ter feito tudo o que lhe era exigível para concretizar os objectivos que o cliente tinha em vista com a administração da carteira.

Desta feita, uma gestão individualizada significa que toda a actividade gestória deve orbitar em torno dos interesses do cliente, atendendo ao tipo de operações pelas quais tem preferência, v.g., se mostra abertura para a realização de operações que envolvam instrumentos sofisticados ou se prefere as mais tradicionais, considerando aspectos como a vontade de internacionalizar os investimentos, o prazo das operações, a sua aversão ao risco e os limites do investimento.

1.2.2.2 A Discricionariedade na Actuação do Gestor

Por outro lado, se é certo que o gestor prossegue o interesse do cliente e está vinculado ao plano gestório definido e às possíveis ordens vinculativas que o cliente emita, a circunstância de gerir um acervo patrimonial alheio não implica, nem pode em momento

algum interferir no carácter discricionário que caracteriza a gestão117. Embora, a letra da lei

não utilize o adjectivo ‘discricionária’ para qualificar a gestão, como o anteprojecto do

Cód. VM previa118, compreende-se que não deixa de ser um traço do tipo contratual, visto

que o gestor é um profissional com conhecimentos técnicos e especializados, logo, é aquele que se encontra em melhor posição para tomar decisões ponderadas e conscientes dos

117 Como bem salienta JANUÁRIO COSTA GOMES in “Em Tema de Revogação do Mandato Civil”, cit., p. 96, e transportando para o

universo da gestão de carteiras, “a orientação programática e gestória do mandante [leia-se cliente] não quebra, porém, a autonomia do mandatário [leia-se gestor] ”.

118 Como nos dá conta RUI PINTO DUARTE in “Contratos de Intermediação no Código de Valores Mobiliários”, cit., p. 367, o legislador

ao referir-se à gestão discricionária da carteira pretendia salientar a autonomia do gestor, no entanto, acabou por abandonar esta formulação porque “tinha o inconveniente de propiciar a acentuação da discricionariedade, com reflexos no grau de protecção do cliente”.

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riscos e implicações que daí advenham.

Secundando MARIA MIGUEL REBELO PEREIRA, saliente-se que “no âmbito de actuação

no mercado de valores mobiliários essa discricionariedade torna-se mais ampla devido às

assimetrias de informação”119 existentes entre o cliente, normalmente um investidor não

profissional, e o gestor. Ora, se o investidor, que na maioria dos casos não se encontra capacitado para agir no mercado e rentabilizar os bens mobiliários que lhe pertencem, opta por entregar a gestão da carteira a um profissional, então, terá que deixar o gestor actuar e executar o programa gestório.

Uma gestão discricionária não significa uma gestão arbitrária, desde logo, porque a actuação do gestor é conformada por disposições normativas que estabelecem deveres e princípios a observar no exercício da actividade de intermediação. Em segundo lugar, a gestão será delineada pelo programa definido atendendo ao próprio perfil do cliente (se é um investidor de cariz mais conservador ou se demonstra maior abertura ao risco), aos seus

objectivos, ao tipo de bens e de operações que pretende realizar. Em suma, e citando PAULO

CÂMARA, o gestor tem “a margem decisória para praticar as decisões de investimento

adequadas à política de gestão contratualmente definida”120.

Um aspecto relevante diz respeito aos limites que a própria intervenção do cliente deve ter na actividade do gestor. Apesar de a actuação deste último ser “vinculada ou dirigida,

uma vez que se encontra circunscrita aos limites gestórios traçados”121, as instruções dadas

pelo cliente não devem ser intrusivas, devendo conceder-se margem para que o gestor possa

realizar a gestão. Seguindo a apreciação de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “as

concretizações minuciosas e desnecessárias na enumeração dos poderes conferidos”

contribuem para aumentar o risco do não cumprimento dos objectivos estabelecidos122. Por

estas razões, tende-se a pensar que uma gestão ‘direccionada’, segundo a qual o gestor

limita-se a propor as operações a realizar e o cliente decide sobre a sua execução, não vai ao encontro da gestão pensada pelo legislador quando definiu o regime aplicável ao contrato de gestão de carteiras.

Com efeito, não se poderá partilhar a opinião expressa por PEDRO PAIS DE

119 In “Do Contrato de Gestão de Carteiras de Valores Mobiliários (Natureza Jurídica e Alguns Problemas de Regime)”, cit., p. 112.

120 In “Manual de Direito dos Valores Mobiliários”, cit., p. 449.

121 JANUÁRIO COSTA GOMES in “Em Tema de Revogação do Mandato Civil”, cit., p. 91.

122 In “Código Civil Anotado”, Vol. II, cit., p. 792, em comentário ao art. 1159º n.º 2 do C.C. que estabelece que o mandato abrange

todos os actos necessários à sua execução mesmo que não referenciados no mandato, o que demonstra como o mandatário goza de flexibilidade e liberdade na sua actuação, tal como acontece na gestão de carteiras.

51 VASCONCELOS que admite que no limite a gestão poderá ficar condicionada à consulta e

acordo do cliente quanto a todos os aspectos da administração123. Diversamente, defende-se

que o contrato terá por base uma gestão ‘discricionária’, o que significa que, de um modo geral, o gestor tem liberdade (não total pela faculdade do cliente emitir ordens vinculativas) para realizar as operações que considere mais adequadas e convenientes sem necessitar de consultar ou avisar o cliente, ou seja, não tem que se verificar necessariamente uma

intervenção prévia deste último124. Em moldes generalizados será assim, mas

concretamente os termos e as condições da liberdade de actuação do gestor poderão ser ajustados através do conteúdo contratual fixado.

Por último, relembre-se que é intrínseco à estrutura do contrato, principalmente por ter em vista a prática sucessiva de actos, que a prestação do gestor seja dotada de uma certa indeterminação, cuja extensão será variável consoante a vontade das partes entre um mínimo exigível pela própria natureza do contrato e um máximo que não afaste a emissão de ordens vinculativas. Assim o é porque o gestor não é “um mero ‘agente executivo’”,

diversamente, é dotado de “ampla autonomia”125 com a nuance de não arredar por completo

o cliente do controlo da gestão da carteira, salvo quando se estipule uma rendibilidade mínima, casos em que a autonomia já será absoluta.