1. Noção e Caracterização do Tipo Contratual
1.2 Caracterização do Contrato
1.2.1 Distinção entre Negócio de Cobertura e Negócio de Execução
Aquando do estudo das actividades exercidas pelo intermediário encaixou-se a gestão de carteiras nas operações por conta alheia. Ora, é neste tipo de operações que se procede à
distinção entre os negócios jurídicos de cobertura e os negócios jurídicos de execução108.
O contrato de gestão de carteiras é um exemplo de um negócio de cobertura, pois é através da sua celebração que o cliente confere ao intermediário legitimidade para realizar
determinados negócios no âmbito da administração da carteira – os designados negócios
jurídicos de execução. Por isso, é frequente na doutrina a consideração como um contrato-
quadro109 por integrar e regular o conteúdo dos negócios a celebrar no futuro ao abrigo
deste.
Os negócios jurídicos de execução, por sua vez, são celebrados entre o gestor e terceiros por conta e no interesse do cliente e prendem-se, no essencial, com a aquisição e alienação de valores mobiliários. O risco da actividade desenvolvida pelo gestor corre por conta do cliente já que o gestor celebra os negócios de execução no interesse daquele encontrando-se somente sujeito ao risco da violação dos deveres aos quais está vinculado no exercício da
sua profissão e pelo contrato celebrado com o cliente110. Neste ponto, poderá questionar-se
a responsabilidade do intermediário pelas obrigações resultantes destes negócios de execução celebrados com terceiros.
Seguindo o raciocínio apresentado, não será plausível a consagração de uma obrigação
del credere dos intermediários, como já havia defendido CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA
não só para os casos em que o intermediário actua em nome próprio mas por conta do
cliente, como também para as situações de actuação em nome do cliente111. Mais
recentemente, MENEZES LEITÃO pronunciou-se quanto a este aspecto no sentido da
existência desta obrigação de garantia face ao regime em vigor, mais especificamente a
108 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA in “As Transacções de Conta Alheia no Âmbito da Intermediação no Mercado de Valores
Mobiliários”, cit., pp. 291-309. Recorde-se que o Autor enquadra, em primeira linha, a gestão de carteiras no grupo das actividades de
prestação de serviços admitindo apenas a qualificação como operações de conta alheia “quando haja atribuição de poderes” para a sua realização – p. 293.
109 Cfr. MENEZES LEITÃO in “Actividades de Intermediação e Responsabilidade dos Intermediários Financeiros”, cit., p. 134 e “O
Contrato de Gestão de Carteiras”, cit., pp. 111 e 113.
110 JOSÉ QUEIRÓS ALMEIDA, “Contratos de Intermediação Financeira enquanto Categoria Jurídica” in Cadernos do Mercado de
Valores Mobiliários, Nº 24, Nov. 2006, p. 297 em nota de rodapé.
111 In “As Transacções de Conta Alheia no Âmbito da Intermediação no Mercado de Valores Mobiliários”, cit., pp. 304 e ss. Diga-se que
aquando dos comentários feitos pelo autor citado vigorava ainda o Cód. MVM sendo que a opinião formulada tinha como ponto de partido a norma do art. 183º n.º 1 do código revogado.
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norma do art. 334º n.º 1 alínea a) do Cód. VM112. Em sentido oposto, encontra-se na
doutrina ANA AFONSO que, na sua óptica, entende ser “mais adequado manter aqui a regra
geral predisposta para o mandato”113.
Contrabalançando as duas posições apresentadas, crê-se que no contrato de gestão de carteiras a obrigação del credere não decorre da lei, pelo contrário, está na diponibilidade das partes. Desde logo, por razões de integração sistemática da norma jusmobiliária que prevê esta obrigação, pois está inserida na secção II, intitulada “Ordens”, do capítulo II do Cód. VM dedicado aos contratos de intermediação. Depois, por razões de ordem histórica, nomeadamente quando se atende à evolução legislativa operada com a entrada do novo código e a revogação do Cód. MVM, diploma que também previa uma norma de conteúdo semelhante à actual norma do art. 334º n.º 1 al. a) do Cód. VM.
Pelo que os indícios apontam para a limitação do campo de aplicação da actual norma especificamente às ordens, ao passo que a norma do art. 183º n.º 1 do Cód. MVM, inserido num capítulo dedicado a disposições gerais, apresentava-se como uma regra geral, ou seja, aplicável a todas as operações de conta alheia realizadas pelo intermediário. Perante isto, se o legislador pretendesse manter a natureza geral da norma, na redacção do código em vigor teria inserido a disposição legal do art. 334º n.º 1 al. a) na secção das regras gerais que regem todos os contratos de intermediação.
Retomando a distinção que nos ocupa, o negócio de cobertura, logo, o contrato de gestão de carteiras é condição necessária à celebração dos negócios de execução. Significa que o negócio de cobertura é o gerador da obrigação de realizar os negócios de execução¸ ou seja, estes pressupõem aquele. Se o negócio de cobertura, maxime o contrato de gestão de carteiras, pode ser celebrado acompanhado ou não da atribuição de poderes representativos, na mesma medida, os negócios de execução poderão realizar-se em nome do investidor ou em nome do intermediário. Tudo irá depender de como o negócio de cobertura foi configurado pelas partes.
Duas outras possibilidades, como nos dá conta CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, são as
situações em que o negócio de execução se realiza por conta do próprio intermediário, isto
112 In “O Contrato de Gestão de Carteiras”, cit., p. 115.
113 In “O Contrato de Gestão de Carteira: Deveres e Responsabilidade do Intermediário Financeiro”, cit., p. 86. Quer no mandato
comercial, mais concretamente na comissão, quer no mandato civil o regime instituído confere às partes liberdade para estipularem a obrigação del credere, sendo que na sua falta vigoram as disposições legais, o que implica que o mandatário não será responsável pelo incumprimento das obrigações dos terceiros com quem contrata – cfr. art. 269º do C. Com e art. 1183º do C. C.
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é, quando actua como contraparte no negócio e quando o intermediário encarrega um outro
de executar o negócio114. De todo o modo, as partes dispõem da faculdade de estipular
cláusulas que regulem esta matéria, nomeadamente que limitem ou proíbam a sub- contratação, face à relação de confiança que o investidor desenvolve com o gestor.
Remata-se a distinção entre negócio de cobertura e negócio de execução, salientando
que apenas o primeiro poderá ser qualificado como contrato de intermediação financeira115
porque é o único que tem por objecto um serviço de investimento. Por sua vez, os negócios de execução são uma decorrência da actividade de intermediação financeira levada a cabo pelo intermediário, à qual se obrigou por força da celebração do contrato de cobertura.
1.2.2 A Individualidade e a Discricionariedade como Traços do Tipo Contratual