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Qualificação Jurídica do ponto de vista Jurisprudencial

A Jurisprudência portuguesa não é rica no que ao contrato de gestão de carteiras diz respeito, sobretudo na apreciação dos elementos integradores do tipo contratual. Por este

204 Relembre-se que pela teoria da dupla transferência, o mandatário assume os efeitos dos actos praticados, o que significa que torna-se

proprietário dos bens que adquira no seu decurso embora, como adverte ANDRÉ FIGUEIREDO in “Mandato Sem Representação, Separação Patrimonial e Concurso de Credores”, cit., p. 233, esta seja “uma propriedade por natureza temporária, instrumental e

limitada - quer de um ponto de vista funcional, quer de um prisma estrutural -, pelas obrigações e deveres resultantes da lei e do mandato, aos quais corresponde uma tutela intensa”.

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motivo, o pensamento vertido estará inevitavelmente limitado às escassas decisões que se debruçam sobre esta matéria.

Actualmente, parece pacífica a natureza de contrato de prestação de serviços na

modalidade de mandato (comercial) reunindo “feições próprias que lhe conferem alguma

autonomia”, como é possível ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de

21 de Junho de 2011205. No entanto, a Jurisprudência nem sempre entendeu que o contrato

de gestão de carteiras implicava a prática de actos comerciais. O Acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça (STJ) de 11 de Janeiro de 2000206, em função do regime à data em

vigor207, não considerou a compra e venda de valores mobiliários conteúdo típico do

contrato e, consequentemente, decidiu pela não aplicação das regras do mandato mercantil. Acontece que, independentemente da questão de saber quais os actos que integram o seu conteúdo, a gestão de carteiras envolveria sempre a práticas de actos comerciais quanto muito pela perspectiva subjectiva, visto que seriam praticados pelo intermediário que é comerciante à luz do art. 13º do C. Com.

Centrando as atenções na subsunção de situações fácticas à figura jurídica da gestão de carteiras, comecemos por discorrer acerca do acórdão do Tribunal da Relação do Porto

(TRP) de 16 de Março de 2015208. Nesta decisão tomou-se como posição que “se alguém,

que vem a ser definido como investidor não qualificado209, aceita verbalmente que um

funcionário bancário, gratuitamente, lhe aplique o seu dinheiro na condição de o fazer de modo a que o risco da aplicação seja equivalente a um depósito a prazo, não está a celebrar com o banco respectivo um contrato de gestão de carteira”. Não se poderá concordar com esta apreciação pois, ao contrário daquilo que o TRP invoca, há factos suficientes para a recondução do negócio ao contrato de gestão de carteiras.

Antes da análise desses elementos convém referir que, no caso concreto, o negócio foi celebrado verbalmente e não se convencionou qualquer remuneração para o funcionário do banco que geria as contas dos clientes. Este circunstancialismo não afecta, contudo, a

205 No processo 3345/08.8TVLSB.L1-1, relator ANTÓNIO SANTOS, disponível em www.dgsi.pt. 206 No processo 99A792, relator RIBEIRO COELHO, disponível em www.dgsi.pt.

207 O art. 608º do Cód. MVM ao elencar as actividades de intermediação previa na sua al. h) a gestão de carteiras como “tendo em vista

assegurar tanto a administração desses valores e, nomeadamente, o exercício dos direitos que lhes são inerentes, como, se os seus titulares expressamente o autorizarem, a realização de quaisquer operações sobre eles”. A autorização para realizar operações tinha de constar de documento escrito que fixasse os termos, limites e grau de discricionariedade na prática desses actos, conforme o disposto no art. 611º do Cód. MVM.

208 No processo 234/11.2TVPRT.P1, relator JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA, disponível em www.dgsi.pt.

209 À luz da mais recente terminologia adoptada pelo Cód. VM, deverá ler-se ‘investidor não profissional’, em virtude da alteração

73 posição que aqui se defende. Em relação à remuneração, apesar de o mais comum ser o pagamento pelo serviço prestado, é a própria lei que não a prevê como elemento essencial do tipo contratual. Nesse sentido, a sua ausência não tem qualquer interferência na qualificação do contrato por estar na disponibilidade das partes a onerosidade ou gratuitidade do serviço. Quanto à forma do contrato, a redução a escrito seria obrigatória por se tratar de investidores não profissionais, considerando que à data dos factos o Cód. VM impunha o requisito formal somente para este tipo de investidores. Embora, o contrato fosse nulo, em termos de qualificação jurídica, não deixa de se entender que o TRP deveria ter considerado que se tratava de um contrato de gestão de carteiras.

Em primeiro lugar, é facto assente nos autos em análise que o banco encontrava-se registado na CMVM estando habilitado ao exercício das actividades de intermediação, nomeadamente a gestão de carteiras. Depois, não há controvérsia quanto aos seguintes factos: os clientes, investidores não profissionais, celebraram um contrato de abertura de conta; efectuaram depósitos no valor global aproximado de €43.000,00, quantias que foram aplicadas pelo gestor da conta num fundo imobiliário e posteriormente resgatadas; por fim, o gestor realizou em nome dos clientes investimentos em papel comercial.

Ora, parece que o retrato factual descrito corresponde em termos jurídicos ao cenário desenhado pelo legislador quando consagrou o contrato de gestão de carteiras. A situação concreta desenvolve-se no âmbito de uma relação bancária, através da qual os clientes, titulares de uma quantia significativa, a depositam numa conta bancária e o gestor rentabiliza esses valores monetários realizando operações de investimento. Acresce que, como consta da matéria de facto provada, os clientes pretendiam aplicar as suas poupanças, embora apenas em produtos seguros, pelo que o funcionário do banco, agindo na qualidade de intermediário, propôs, aconselhou e recomendou o investimento (e garantiu que o mesmo era adequado) e realizou as operações informando que agiu no interesse dos clientes.

Não obstante as questões de cumprimento dos deveres de informação e de adequação das operações, dos factos parece extrair-se, diversamente da interpretação do tribunal, a relação típica de gestão de carteiras que indiciava ser totalmente discricionária já que o gestor tomava decisões sem o prévio consentimento dos clientes.

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Num outro Acórdão do TRP de 21 de Março de 2013210, discutiu-se a qualificação do

contrato entre contrato de gestão de carteiras ou contrato de transmissão e execução de ordens. Quanto a este acórdão, concorda-se com a interpretação dos factos seguida pelo TRP porque consta da matéria factual dada como provada que os clientes procederam à abertura de contas na instituição financeira e que, mais tarde, no seguimento do investimento sugerido pela instituição financeira, solicitaram a compra de obrigações e aquela limitou-se a transmitir a ordem de compra. Com base nestes dados é de concluir que o vínculo contratual não emergia de um contrato de gestão de carteiras, desde logo, porque existia um documento a solicitar a compra dos valores mobiliários e, por outro lado, os factos carreados para o processo levam a crer que este foi um acto isolado.

Portanto, não se encontram elementos demonstrativos de um duradouro exercício gestório pela instituição financeira das quantias depositadas pelos clientes no sentido de, por conta deles, tomar decisões de investimento e desinvestimento realizando operações financeiras. Comparativamente com o quadro factual do acórdão anterior, denota-se que não há autonomia e discricionariedade na actuação do intermediário, simplesmente foi apresentada uma proposta de investimento que os clientes deram ordem de execução.

Do mesmo modo, se analise o caso vertido no Acórdão do TRL de 06 de Abril de

2017211 partilhando-se da conclusão apresentada pelo tribunal. De facto, verifica-se a

realização de um investimento na aquisição de acções, investimento esse que foi financiado pela cedência de um crédito. Porém, este único acto não será suficiente para afirmar a existência de uma relação de gestão de carteiras por a mesma pressupor a definição de uma política de investimento a ser realizada pela execução do programa gestório traçado, o que implica uma certa perdurabilidade no tempo de forma a realizar uma série de operações.

Como última nota, não se concorda em parte com a argumentação que fundamenta a decisão do TRL quando se invoca que o produto financeiro foi apresentado aos clientes do banco “com um objectivo meramente informativo”. Parece que este facto não tem qualquer relevância para determinar se o contrato celebrado era ou não um contrato de gestão de carteiras e, para além disso, mesmo que a divulgação do produto não vinculasse o banco, o cliente acabou por celebrar um específico acordo que tinha por objecto o investimento no dito produto.

210 No processo 2050/11.2TBVFR.P1, relator LEONEL SERÔDIO, disponível em www.dgsi.pt. 211 No processo 519/10.5TYLSB-H.L1-2, relator ONDINA CARMO ALVES, disponível em www.dgsi.pt.

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Por sua vez, no Acórdão do TRL de 09 de Julho de 2014212 uma das questões a

conhecer é precisamente o tipo de contrato celebrado entre as partes. No entanto, o TRL não se pronuncia, nem em sentido afirmativo, nem em sentido negativo, quanto ao enquadramento na gestão de carteiras, pese embora a matéria factual dada como provada se refira sistematicamente a este tipo contratual. O mencionado acórdão limita-se a qualificar juridicamente o negócio como contrato de depósito, apenas fazendo uma ténue alusão à prestação pelo banco de serviços financeiros.

É certo que os clientes depositaram no banco quantias monetárias e celebraram um contrato de abertura de conta, mas também concluíram diversos contratos de gestão de carteiras. Como decorre dos factos provados, o banco vinculou-se à administração e gestão das carteiras compostas por instrumentos financeiros. Mais, era da sua competência a definição dos critérios de selecção e composição das carteiras e detinha poderes para em execução do mandato praticar os actos que considerasse convenientes.

Da breve explanação retira-se no essencial que a questão da qualificação do tipo contratual não é tratada com profundidade, muitas vezes, remetendo para as actividades de intermediação sem chegar a esmiuçar o contrato celebrado pelas partes. Em correlação, a Jurisprudência portuguesa não se mostra inteiramente confortável com as matérias do foro mobiliário, em especial com o enquadramento jurídico das operações financeiras realizadas no exercício das actividades e na prestação de serviços de intermediação, neste particular, o contrato de gestão de carteiras.

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CAPÍTULO III

OS ACTOS PRATICADOS PELO GESTOR, EM PARTICULAR

SUMÁRIO: 1. Confronto entre as Disposições Normativas da

Versão Original e da Versão Actual do Cód. VM atinentes ao Contrato de Gestão de Carteiras; 1.1 O Anterior Regime: Algumas Considerações; 1.2 A Versão Originária do Cód. VM; 1.2.1 A Actuação Preventiva do Legislador; 1.2.2 Razões que estiveram na sua Origem; 1.3 A Actual Redacção dos Preceitos Legais do Cód. VM; 1.3.1 Breves Apontamentos Gerais; 1.3.2 O Recuo do Legislador; 1.3.3 Análise da Opção Legislativa e suas Eventuais Implicações Práticas; 2. A Existência de uma Relação Fiduciária versus A Consagração da Liberdade Contratual de Conformação da Actuação do Gestor; 2.1 A Relação de Confiança na base do Tipo Contratual; 2.1.1 O Impacto da Confiança na Conformação do Conteúdo Contratual; 2.2 A Inerente Autonomia do Gestor e os Interesses do Cliente; 2.2.1 Dos Limites da Liberdade de Actuação do Gestor; 2.2.1.1 Os Princípios e Deveres de Fonte Legal; 2.2.1.2 As Ordens Vinculativas; 2.2.1.3 As Cláusulas Contratuais; 3. Os Actos Tendentes à Valorização da Carteira; 3.1 Conceito: Algumas Considerações; 3.2 O Exercício dos Direitos Inerentes; 3.3 As Operações de Negociação de Direitos Inerentes; 3.4 Outros Actos que o Gestor pode praticar ao abrigo Gestão: Análise Crítica; 3.4.1 A Diversificação da Carteira; 3.4.2 A Minimização ou a Exposição ao Risco; 3.4.3 A Eficácia e a Eficiência na Prática dos Actos de Gestão; 3.4.4 A Menor Desvalorização Possível da Carteira; 3.4.5 A Administração Estática exercida pelo Gestor.

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1. Confronto entre as Disposições Normativas da Versão Original e da Versão