• Nenhum resultado encontrado

Dos Limites da Liberdade de Actuação do Gestor

2. A Existência de uma Relação Fiduciária versus A Consagração da Liberdade

2.2 A Inerente Autonomia do Gestor e os Interesses do Cliente

2.2.1 Dos Limites da Liberdade de Actuação do Gestor

Pese embora decorra da própria natureza do contrato de gestão de carteiras a actuação do gestor com determinada margem de liberdade, em circunstância alguma deixará, mesmo que o cliente lhe confira absoluta autonomia, de ser orientada por um conjunto de critérios agrupados em três grandes grupos: princípios e deveres de fonte legal; ordens vinculativas; cláusulas contratuais.

Mediante uma gestão que obedeça a todos estes parâmetros inevitavelmente se concluirá que o gestor praticou os actos conducentes à valorização da carteira. Destarte, a realização da gestão encontra-se balizada, como se verá, não correndo o risco de se confundir ou até mesmo cair na malha da arbitrariedade.

2.2.1.1 Os Princípios e Deveres de Fonte Legal

Sem prejuízo da relevância de todos os princípios referenciados no começo da presente

investigação248, ao momento aqui chegados deverá analisar-se a imposição de uma conduta

de acordo com os ditames da boa-fé249. Naturalmente que a boa-fé, enquanto princípio

basilar do direito das obrigações e dos negócios jurídicos, não deixaria de ter a mesma

preponderância na relação de gestão de carteiras250.

O gestor no exercício da sua actividade deve agir segundo a boa-fé adoptando “uma

linha de correcção e probidade”251, o que significa que não basta o mero cumprimento da

247 Como constata FELIPE CANABARRO TEIXEIRA, “Os Deveres de Informação dos Intermediários Financeiros em Relação a seus

Clientes e sua Responsabilidade Civil” in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, Nº 31, Dez. 2008, p. 56, “há uma limitação, ou

melhor dizendo, é imposto um filtro na actividade do intermediário financeiro”.

248 Cfr. ponto 2.1.2 do Capítulo I.

249 Para um estudo mais aprofundado do instituto da boa-fé vide MENEZES CORDEIRO in “Da Boa-fé no Direito Civil”, 7ª Reimp.,

Almedina, 2017.

250 Como faz menção FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA in “Contratos Privados: Das Noções à Prática Judicial”, Vol. I, 2ª Ed. Revista

e Ampliada, Coimbra Editora, 2015, p. 199, o princípio da boa-fé “é de aplicação geral a todos os domínios do jurídico”.

251 ALMEIDA COSTA in “Direito das Obrigações”, cit., p. 122. Já FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA in “Contratos Privados: Das

99 prestação; exige-se mais, exige-se que realize a prestação de acordo com a boa-fé, ou seja, a

prestação principal – execução da gestão – é acompanhada de deveres acessórios de

protecção, esclarecimento e lealdade252. Acresce que a boa-fé não é um conceito pré-

determinado, pelo contrário, é dotado de flexibilidade permitindo ajustar-se a cada

situação253. O seu conteúdo maleável conduz a que em certas relações, como acontece com

a gestão de carteiras, a sua presença se faça sentir com mais veemência, assim como os deveres de conduta a ela associados.

Nesse sentido, esta regra de conduta, remetendo para os ensinamentos de MENEZES

CORDEIRO, “reduz a margem de discricionariedade da actuação privada, em função de

objectivos externos”254. Nessa medida, a boa-fé surge como um dos vectores que contribui

para o cumprimento efectivo e não apenas formal da prestação do gestor, de forma a

realizar o escopo contratual255, ou seja, o interesse visado com o contrato celebrado. No

caso do tipo contratual em estudo, a conduta do gestor estará em conformidade com os ditames da boa-fé quando à realização da prestação corresponda um exercício substancial da mesma, isto é, quando se constate a prática dos actos que conduzem à rentabilização da carteira produzindo-se, assim, os efeitos pretendidos pelas partes.

Por estas razões não se poderá acompanhar a posição assumida por FELIPE CANABARRO

TEIXEIRA ao defender que a boa-fé desempenha um papel secundário devido à consagração

do dever de protecção dos interesses dos clientes256. O Cód. VM prevê deveres que foram

redigidos a pensar nas particularidades das relações de intermediação financeira, mas tal circunstância em nada diminui a relevância da boa-fé como princípio geral do ordenamento jurídico.

252 Segundo MENEZES CORDEIRO in “Da Boa-fé no Direito Civil”, cit., p. 586, a consagração no art. 762º n.º 2 do C.C. da boa-fé

enquanto norma de conduta (boa-fé objectiva) faz com que não estejamos perante “um simples dever de prestar”. O autor adianta que as partes estão ainda sujeitas a evitar causar danos mútuos no decurso da relação, a prestar informações mútuas de tudo que seja relevante e a “absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado” – pp. 604-606.

253 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in “Código Civil Anotado”, Vol. II, cit., p. 5. Por sua vez, ALMEIDA COSTA in “Direito das

Obrigações”, cit., p. 118, realça que os deveres de conduta são “exigíveis em cada caso, de acordo com a natureza da relação jurídica e

com a finalidade visada pelas partes”.

254 In “Da Boa-fé no Direito Civil”, cit., p. 649.

255 Como salienta MENEZES CORDEIRO in “Tratado de Direito Civil”, Vol. I, 4ª Ed. Reformulada e Actualizada, Almedina, 2012, pp. 968

e 976, a boa-fé visa assegurar que os “interesses reais protegidos do credor” prevalecem e que, portanto, “no exercício de posições jurídicas, se realizem, com efectividade, os valores pretendidos pelo ordenamento”.

256 In “Os Deveres de Informação dos Intermediários Financeiros em Relação a seus Clientes e sua Responsabilidade Civil”, cit., p. 60.

Convém esclarecer que o autor tece a consideração exposta em relação à matéria específica que trata no artigo citado, que se prende com os deveres de informação do intermediário e a sua responsabilidade civil, pois refere que “possui um papel secundário para o presente estudo”. De qualquer forma, mantem-se a opinião de que a boa-fé não deixa de ser preponderante independentemente dos deveres previstos especialmente para as relações intermediário-investidor.

100

A par dos princípios surgem os deveres257 impostos pelo legislador como meio de

acautelar o correcto exercício da actividade gestória. Denota-se que é justamente pelo facto de a actividade de gestão de carteiras, por um lado, se caracterizar por esta autonomia, altamente potencializadora de situações de uso abusivo e, por outro, apresentar uma natureza fiduciária como se evidenciou anteriormente, que o legislador reforçou o dever de adequação das operações realizadas em execução da gestão de carteiras.

Desta feita, o uso da liberdade e discricionariedade concedida ao gestor não afasta a consideração e ponderação de um conjunto de elementos e informações como, entre outros, a complexidade do produto e da operação a realizar, os objectivos de investimento do cliente, o risco que se pretende assumir. Para além de que a actividade de gestão é exercida a título profissional, logo, o cuidado e diligência que se requer ao gestor ultrapassa o padrão do homem médio funcionando como parâmetro de comparação o profissional diligentíssimo, com formação técnica e especializada, competente para o exercício da actividade.

A liberdade de actuação do gestor tem de ser enquadrada na política de investimento e no projecto gestório que previamente foram traçados sendo exercida em moldes adequados ao cliente: o gestor tem liberdade para tomar decisões de investimento e desinvestimento, tem autonomia para optar por uma ou outra operação, mas sempre em função da sua adequação ao cliente. É certo que o gestor goza de autonomia e discricionariedade técnica, porém, não se deve esquecer que essas faculdades foram-lhe conferidas precisamente para possibilitar a boa execução da gestão, visto que é o gestor quem possui os conhecimentos e

aptidões na área dos instrumentos financeiros258. Ou seja, a liberdade que se tem vindo a

mencionar não significa o extrapolar dos interesses do cliente, muito embora sejam prosseguidos pelo gestor, pois o seu exercício será no âmbito da estratégia de investimento delineada.

257 Cfr. pontos 2.1.2, 2.2.1 e 2.2.2 do Capítulo I e o ponto 3.3 do Capítulo II.

258 Como dá conta PAULO CÂMARA in “O Dever de Adequação dos Intermediários Financeiros”, cit., pp. 1308 e 1309, o dever de

adequação tem origem no dever de tratamento equitativo do cliente da ordem jurídica norte-americana associado à confiança depositada pelo cliente no intermediário, seja por se assumir como profissional, seja por se firmar uma relação contratual.

101

2.2.1.2 As Ordens Vinculativas

Outra das limitações que o legislador teve o cuidado de assegurar, mesmo que contrato não o estipule, é a faculdade do cliente emitir ordens vinculativas exceptuando os casos em que se preveja uma rendibilidade mínima da carteira (cfr. art. 336º do Cód. VM).

Não se justificará o alongar das considerações quanto a este ponto, visto que já por diversas ocasiões se fez referência às ordens vinculativas e à sua razão de ser. Saliente-se unicamente que o cliente não deixa de ser o titular do conjunto de bens que formam a carteira e que estão sob a gestão do intermediário e, mesmo que seja conferida máxima discricionariedade, o cliente não ficará arredado de intervir na execução da gestão por via da emissão de ordens vinculativas.

2.2.1.3 As Cláusulas Contratuais

Por último caberá às partes, no uso da liberdade contratual que lhes é concedida, restringir ou não a autonomia do gestor. É especialmente neste âmbito que se poderá reforçar a posição do cliente ou, pelo contrário, colocá-lo numa situação eventualmente mais perigosa. Para além destes dois pontos extremos, o conteúdo contratual também poderá configurar-se mais equilibrado situando-se num ponto intermédio.

Pelo que está nas mãos das partes: a opção por uma conduta excessivamente rígida através de uma regulação contratual da gestão demasiado exaustiva, o que não será aconselhável, pois poderá comprometer a própria prestação do serviço de gestão; do outro extremo, a escolha por uma conformação contratual bastante abstracta não vertendo em cláusulas as condições essenciais da gestão, o que de igual modo não parece ser benéfico não só por abrir caminho ao exercício abusivo da discricionariedade, como também por não facultar linhas de orientação daquilo que poderá ser a boa gestão e a realização dos actos que visam o incremento da carteira; por fim, e o que se afigura mais sensato, a opção por uma atitude mais precavida regulando os principais aspectos e características da gestão, definindo os traços gerais e delimitando o âmbito da autonomia e discricionariedade do gestor.

102

Onde verdadeiramente se pretende chegar através da exposição destes cenários hipotéticos é ao facto de aquilo que ficar definido no contrato, o conteúdo que lhe for dado terá repercussões no tipo de relação estabelecida e, possivelmente, nos resultados da gestão. Por outro lado, as cláusulas contratuais que serão inseridas no contrato, bem como o seu teor irão depender em muito da tal relação de confiança criada entre o gestor e o cliente.