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6. Metatextos e novas reflexões

6.2. Sobre a concepção de ciência

6.2.4. A influência das crenças docentes

De acordo com Nespor (1987) e com Pajares (1992), as crenças dos docentes podem influenciar o processo de ensino aprendizagem. Essas crenças são construtos pessoais que não se alteram facilmente, e fazem parte do entendimento que as pessoas possuem e constroem do mundo em que vivem (Pajares, 1992). Por conseguinte, as crenças estabelecidas pelos docentes serão capazes de influenciar o processo de aprendizado e compreensão de ciência pelos estudantes (Meglhioratti e et al., 2006, Oleques et al., 2011).

8.10 - “De um a catorze eu, sendo o um o religioso e o catorze o estritamente científico, acho que eu estaria no doze assim.”

com as explicações religiosas que fazem parte da formação do docente. Durante a entrevista, o professor ressalta que a sua própria caracterização, enquanto católico, pode influenciar sua maneira de ver e compreender o mundo, o que acaba por dialogar com sua maneira de expor alguns conteúdos nas aulas.

Ainda na entrevista G, há outras unidades que estabelecem a mesma caracterização:

9.8 - “Procuro expor, eu acredito em deus, mas eu acredito que por que deus na sua infinita sabedoria e poder não pode criar o Big Bang? E a partir daí, aí eles ficam achando que eu sou meia louca e eu desconverso e acaba aí. E eu falo qual que é a sua opinião.”

9.11 - “Eles têm a curiosidade, eu falo eu sou cristã, acredito, mas assim como cientista eu não posso ignorar as evidências. Mas nada me diz até hoje a ciência não explica como que o Big Bang surgiu.”

Assim, a evolução biológica acaba não sendo compreendida como fato e elemento unificador da biologia (Dobzhansky, 1973; Futuyma 1992; 2002; Mayr, 1977; 2009 Meyer e El-Hani, 2001, 2005), mas somente como uma possibilidade hipotética, dentre outras indistinguíveis do ponto de vista material (Selles et al., 2016). Problema que se repete inclusive dos tópicos precedentes, ou seja, mais uma vez retornamos na formação docente inicial e sua concepção acerca de natureza da ciência.

As unidades 9.8 e 9.11 valem-se da mesma abordagem, uma vez que, se a professora fosse ateia, por exemplo, dificilmente traria as questões destacadas aos seus alunos. Além disso, a professora ressalta que sua religiosidade se mantém irrefutada pela ciência, porém nada é dito de outras possíveis religiões, que, assim como a descrita, não são passíveis de teste pelo aparato científico (Chalmers, 1993; Popper, 1972).

De acordo com Cortina(1996, 2005), as confissões religiosas podem ser compreendidas como "máximos de felicidade", dada a subjetividade que perpassa sua escolha. Essa postura pode, portanto, ser ainda mais influente no universo dos discentes, pois a professora estabelece não só a sua religiosidade, mas o poder que ela detém perante o saber científico.

Ao buscar estabelecer pontes entre cada um dos pontos discutidos no texto 6.2, percebe- se que os principais problemas se encontram em professores que não separam categoricamente

o pensamento religioso do pensamento científico, ou seja, professores classificados em III. No caso do professor F, houve, durante a entrevista, uma necessidade grande de demonstrar que, em suas aulas, era uma questão democrática colocar elementos passíveis de diálogo entre a ciência e a crença, sempre justificando que eram levados materiais com os dois tipos de fontes para que os alunos compreendessem os pontos de cada lado do “debate”.

A resolução do problema não necessariamente está no abandono da religião, mas sim na compreensão da produção científica. É fato que os professores, assim como os educandos, não deixarão de seguir sua religião só porque se defrontam com o conhecimento científico. Porém, à medida em que os professores licenciados compreenderem como o conhecimento científico é efetivamente construído – e isso precisa ser feito e esclarecido principalmente durante a sua formação inicial – possivelmente as contradições e os conflitos se dissolverão ao mesmo tempo em que não atingirão a educação básica de maneira tão categórica.

6.3. A problemática presente na categoria III “Deus das lacunas”

Neste tópico, pretendemos discutir os tipos de questões decorrentes da abordagem que caracterizamos anteriormente como categoria III “Deus das lacunas”. Buscaremos ressaltar que tipos de problemas tal abordagem e tal compreensão podem trazer à utilização e ao ensino de ciências. A seguir, debateremos algumas unidades nas quais foi possível não somente concretizar a categorização do respectivo docente, mas também compreender um pouco da sua visão de mundo perante o conhecimento científico.

8.19 - P: “Pra eu entender e não ficar em dúvida, você falou assim, pra você dentro de uma escala você teria mais tendência pra ciência assim mas é num sentido de mudança de contexto ou é num sentido de dentro do possível do que a gente sabe e do que a gente não sabe, de juntar algumas ideias e

F: Sim.

P: De possíveis explicações de coisas que não são explicadas ainda. F: É, que podem ser explicadas e

P: E aí a gente vai vendo

F: E aí a gente desmonta aí nesse sentido. Mas no sentido de não ter ainda uma explicação plausível científica.”

de ter?

F: Ah fico em dúvida.”

8.20 - “É, então acaba talvez influenciando em algum sentido nisso. Mas é, eu vejo possibilidade de achar, se achar eu vou falar então beleza, tá tudo certo, a ciência conseguiu explicar.”

9.11 - “Eles têm a curiosidade, eu falo eu sou cristã, acredito, mas assim como cientista eu não posso ignorar as evidências. Mas nada me diz até hoje a ciência não explica como que o Big Bang surgiu.”

Nas unidades acima, verifica-se que, possivelmente, pelo fato, de a religiosidade ocupar um local mais às margens do conhecimento científico, pode ser que ela não cause danos ou distorções diante de uma nova evidência científica. Ambos docentes se colocam, inicialmente, à disposição de verificar novas evidências respectivas a um determinado fenômeno.

Porém, ainda que se deem neste sentido, não podemos ignorar as formas como a religiosidade pode aparecer no discurso do docente em sala de aula, além de não termos total dimensão de como essa combinação de concepções – a científica e a religiosa - será interpretada e considerada no processo de ensino aprendizagem por parte dos discentes. Inclusive, porque tal combinação acaba por evidenciar uma série de equívocos, no que diz respeito ao conhecimento científico, como foi discutido anteriormente.

8.11 - “Mas ainda, algumas coisas, o que a gente ainda não sabe ainda explicar, talvez ache até evidências assim, mas tem algumas coisas por exemplo essa questão de de de de por exemplo cascatas muito minuciosas que são formadas durante a evolução assim, ainda tenho o meu “quê” de descrença assim.”

Na unidade 8.11, a palavra “descrença” aparece para se referir à evolução biológica, ressaltando uma possível distorção do modo como a ciência constrói seu conhecimento de forma geral. Aparece, nesse sentido, por conta do contexto do “Deus das lacunas” como uma explicação apriorística na qual, por ausência de resposta trazidas a partir do ferramental científico, buscam-se respostas pelo uso de ideias religiosas (Dawkins, 2007).

O docente da escola 8 mostra-se em grande congruência com as propostas apresentadas por Behe (1997) - cujo livro tem partes utilizadas em suas aulas - dispondo-se do argumento da complexidade irredutível para alicerçar um pensamento fundamentalmente marcado por traços elementares de criacionismo. Desse modo, há um problema na abordagem descrita nessa categoria, uma vez que acaba por ignorar um fator fundamental à ciência, que é o da valorização da própria ignorância e seu poder de elaborar novas perguntas a partir dela.

A professora da escola 9 também delimitou problemas na caracterização do pensamento científico ao explanar sua abordagem (caracterizada como III).

9.17 - “Uma coisa que eu mostrei pra eles que selou bem isso foi; Stephen Hawking, Darwin, Watson e Crick, principalmente o Stephen Hawking vai e volta na religião. Chega uma hora que, ele estuda, estuda estuda o universo, estuda, estuda, estuda, estuda, chega uma hora que ele fala Deus não pode existir, mas chega uma hora que ele fala que existe, porque não tem como ele explicar o que ele ta vendo se não tiver uma coisa superior pra explicar aquilo.”

9.18 - “Se você pensar, gente, é impossível ter toda essa vida e não ter alguma coisa por traz. É impossível. Não tem como. Entendeu?”

9.19 - “E um negócio desse jeito, tudo que a gente estuda, vai do microelemento da árvore pra xilema e floema, estômago, DNA. Gente é impossível tudo isso ter surgido do nada do caos. Planetas, constelações [...] É impossível.”

Não podemos ignorar que a concepção docente influencia em demasia a concepção que o aluno irá estabelecer acerca do conhecimento científico e da sua percepção de mundo (Meglhioratti et. al., 2006, Oleques et al., 2011). Desse modo, a visão III pode acabar por privar os alunos de um entendimento do mundo no seu aspecto material e também da ciência em seu aspecto funcional (Selles et al., 2016), conforme debatemos no tópico 6.2.1..

A utilização da categoria III na abordagem docente não se mostra apropriada para levar em conta os saberes preliminares dos discentes e tampouco para utilizar ciência na sua concepção adequada. Ao evidenciarem sua posição religiosa, como é feito em III, os docentes acabam por abrir mão de um valor importante na educação científica que é exatamente a laicidade (Fischmann 2006, 2008a, 2012a).

Desse modo, torna-se evidente, mais uma vez, a necessidade de realizar a devida separação entre conhecimento científico e crença religiosa, pois a sua combinação, ainda que respeitando os limites da produção científica, pode resultar em incoerências e distorções. Não se tratam de conhecimentos complementares, pois, na religião, a fé é uma virtude, enquanto na ciência, é o maior desacerto.