• Nenhum resultado encontrado

DISCUTINDO O UNIVERSO DA MARISCAGEM 107 3.1 O processo da catação de mariscos: entre “sacrifício” e

4. GÊNERO, TRABALHO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA

4.4 A inserção da dimensão sexuada na nova conceituação do trabalho

e Zarifian (2003), são profundas. Contudo, os avanços obtidos a partir da perspectiva que visualiza o homem e também a mulher no contexto não apenas da produção, mas também da reprodução, têm contribuído para a construção de um novo olhar sobre o que se denomina de trabalho.

4.4 A inserção da dimensão sexuada na nova conceituação do trabalho

Até a década de 1970, segundo Fassarela (2008), os estudos que tratavam da questão do trabalho faziam referência à classe trabalhadora como se ela fosse homogênea, como se a força de trabalho presente no processo produtivo não tivesse sexo. Essa visão generalista que englobava todos numa só categoria, não levando em consideração as variáveis como: sexo, nacionalidade, idade, qualificação profissional, etc., não permitia visualizar o lugar da mulher no processo produtivo, o que, segundo a autora, contribuiu para a invisibilidade do trabalho feminino e para o aumento das desigualdades de gênero nesse âmbito.

Nos anos de 1970, com a inserção da dimensão sexuada nas análises do trabalho, o conceito deste foi sendo questionado. É a partir da discussão sobre a divisão sexual do trabalho que se desenvolve em torno da categoria trabalho uma proposta de reconceituação, introduzindo a perspectiva do trabalho doméstico e a esfera da reprodução. Algumas pesquisadoras do Grupo de Estudos da Divisão Internacional Social e Sexual do Trabalho propõem uma reconceituação incluindo o sexo social e o trabalho doméstico. Também foi incluído nessa reconceituação, trabalho não-assalariado, não-remunerado, não-

mercantil e informal. Para essas pesquisadoras, trabalho profissional e trabalho doméstico, produção e reprodução, assalariamento e família, classe social e sexo social são categorias que não podem ser tratadas isoladamente, uma vez que são indissociáveis.

Bruschini (2006) nos diz que os primeiros estudos realizados no Brasil sobre o trabalho feminino apresentava como foco privilegiado o espaço da produção, não levando em consideração o importante papel da mulher no âmbito da reprodução social. Só tempos depois é que esse papel teve grande relevância nas produções sobre o tema, permitindo assim a inserção do trabalho doméstico nessas discussões. Segundo a autora,

as pesquisas sobre o trabalho feminino tomaram realmente um novo rumo quando passaram a focalizar a articulação entre o espaço produtivo e o reprodutivo, ou a família, pois, para as mulheres, a vivência do trabalho implica sempre a combinação dessas duas esferas, seja pelo entrosamento, seja pela superposição (BRUSCHINI, 2006, p. 332).

É muito comum na realidade das mulheres que trabalham na catação de mariscos o entrosamento das atividades do âmbito produtivo e do reprodutivo. Essas atividades são organizadas de tal forma, ao longo do dia, que se misturam e acabam sendo percebidas como integrantes de uma rotina diária habitual que não demonstram diferença na sua natureza para algumas mulheres.

Marta conta como se organiza durante o dia: “eu faço almoço cedo e deixo pronto, e vou pra maré, quando eu chego, almoço e faço a janta e vou balançar o marisco”. Marta balança o marisco no quintal de sua própria casa, o que facilita a alternância das atividades. Essa forma de conduzir as ações diárias é muito semelhante entre as marisqueiras, apresentando alterações quando possuem filhos pequenos pelos cuidados que têm que dispensar-lhes. Todas as atividades, portanto, são absorvidas na esfera da reprodução social.

Muitas críticas foram feitas às pesquisas estatísticas realizadas nos anos de 1970 e 1980 sobre a atividade econômica feminina. Segundo Bruschini (2006), as pesquisas até então desenvolvidas utilizavam referenciais que pouco se adequavam a realidade dos países latino-americanos, nos quais se verifica uma diversidade de atividade

econômica. Por isso, diz a autora, nos censos, o contexto doméstico, a pequena produção mercantil ou o trabalho familiar não-remunerado, que são, geralmente, próprios das mulheres, não apareciam. Nesses censos, o trabalho feito em casa como a confecção de roupas e de alimentos era naturalmente absorvido pelo trabalho doméstico e consequentemente omitido.

O aspecto da omissão contido nos censos citados pela autora ainda se encontra presente no cotidiano das marisqueiras da Ribeira que, pelo entrosamento das atividades acabam omitindo o trabalho na maré, mesmo que não seja de forma consciente. Vejo nisso o reflexo, ainda hoje, da construção social do que representava o trabalho feminino reproduzido nas pesquisas censitárias.

Bruschini (2006) destaca o Recenseamento de 1980 como uma importante contribuição para a reflexão do trabalho feminino quando no resultado, a categoria inativo abriga os “[...] indivíduos que não trabalham, seja porque vivem de renda, seja porque são aposentados, pensionistas, doentes ou inválidos, estudantes e os/as que realizam afazeres domésticos” (BRUSCHINI, 2006, p. 333). Ela diz que

[...] apesar do considerável volume de atividades que se escondem sob a rubrica afazeres domésticos e que mantêm ocupadas mulheres de todas as camadas sociais, o trabalho doméstico não é contabilizado como atividade econômica nesse tipo de levantamento (BRUSCHINI, 2006, p. 333).

A razão disso se pauta na noção de trabalho associada ao emprego capitalista utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que não reconhece outras formas de organização do trabalho. Neste contexto, a declaração de dona de casa como a principal ocupação da informante, tende a classificá-la como inativa.

Diante das críticas, nos anos de 1990, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE, passou por significativas reformulações, trazendo novo conceito para o trabalho. Nesse processo, a orientação seguida advinha da 13º Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Conferência Internacional de Nairobi sobre a Mulher, de 1985, nas quais a recomendação era de que fossem elaboradas estatísticas mais precisas sobre a participação econômica das mulheres, bem como sua

contribuição não-econômica. A recomendação, portanto, era investigar “[...] através do domicílio, a produção da empresa familiar, as fontes de renda e os gastos, além do tempo despendido por cada membro da família em diferentes atividades” (BRUSCHINI, 2006, p. 334). Assim, no que diz respeito ao trabalho feminino, essa metodologia permitiria o estudo da atividade, da inatividade econômica e do trabalho doméstico.

Segundo a autora, a partir dessa revisão, no novo conceito trabalho “[...] caracterizam-se as condições de trabalho remunerado, sem remuneração e a produção para o próprio consumo e o da família” (BRUSCHINI, 2006, p. 335), o que contribuiu, segundo sua visão, para uma análise mais adequada das atividades econômicas das mulheres.

Ainda em virtude das reivindicações de grupos e dos movimentos sociais, foi introduzida na PNAD de 1992, a categoria trabalhador doméstico se referindo ao serviço doméstico remunerado e não ao trabalho doméstico de reprodução social, que continua inserido na categoria de afazeres domésticos.

Na PNAD consideram-se afazeres

a realização, no domicílio de residência, de tarefas (que não se enquadravam no conceito de trabalho) de: arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; cozinhar ou preparar alimentos, passar roupa, lavar roupa ou louça, utilizando, ou não, aparelhos eletrodomésticos para executar estas tarefas para si ou para outro(s) morador(es); orientar ou dirigir trabalhadores domésticos na execução das tarefas domésticas; cuidar de filhos ou menores moradores; limpar o quintal ou terreno que circunda a residência (BRUSCHINI, 2006, p. 338).

Sobre esse tema, a partir de 2001, um novo quesito foi inserido pela PNAD, desta vez levando em consideração o tempo gasto na execução dos afazeres domésticos. O objetivo foi obter resultados que justificassem a sugestão de uma nova reformulação sobre o conceito de trabalho doméstico. Esse, a partir de então, sairia do grupo considerado de inatividade econômica para o de trabalho não-remunerado.

A reivindicação era, portanto, que o trabalho doméstico fosse incluído na categoria de trabalho não-remunerado e não como

inatividade econômica, tendo em vista a grande quantidade de horas dedicadas às atividades de reprodução social, sobretudo, pelas mulheres. Os estudos apresentados por Bruschini (2006) mostraram que o tempo de trabalho das mulheres nos afazeres domésticos é tão extenso que acaba invadindo outros espaços temporais. Marileide destaca na sua fala esse aspecto quando menciona a diferença da realidade das mulheres em relação aos homens, ela diz: “[...] o homem tem muita facilidade de andar, de brincar e a gente nada. [...] o homem pode ir andar, pode ir brincar, pode sair e a gente em casa com os filhos e cuidando da casa”. Nessa fala vemos que o tempo gasto com os afazeres domésticos não permite que a mulher usufrua de outros espaços, uma vez que a responsabilidade está, na maioria das vezes, sobre a mulher e nada mais justo que esse tempo seja computado e os afazeres domésticos reconhecidos como trabalho. A desigualdade, no aspecto destacado por Marileide, manifesta nela um sentimento de inconformismo por ver que o homem dispõe de tempo pra tudo e a mulher não.

Ainda com base nos seus estudos Bruschini (2006) conclui que a maior quantidade de tempo gasto nos afazeres domésticos são de mulheres que são esposas e mães de filhos pequenos, e que estão inseridas também em trabalhos produtivos, enfrentando enorme dificuldade de conciliação de tarefas que envolvem responsabilidade familiar e profissional, o que reforça a noção de trabalho não- remunerado para os afazeres domésticos, reconhecendo a atividade no âmbito do trabalho reprodutivo.

De acordo com Dedecca et al (2009), nas pesquisas realizadas no ano 2006, a composição da jornada de trabalha apresenta diferenciação significativa de acordo com o sexo. Os resultados mostraram que

[...] os homens tinham uma jornada de trabalho média equivalente à jornada constitucional de 44 horas e destinavam cinco para a reprodução social. As mulheres exerciam jornadas de 37 horas no mercado de trabalho e 19 horas para a reprodução social, resultando em uma jornada de trabalho total em média 15% superior à dos homens. (DEDECCA et al, 2009, p.75)

Entretanto, dizem os autores que em famílias unipessoais a diferença na jornada de trabalho destinado a reprodução social dos

homens em relação às mulheres é mínima, sendo a dos homens um pouco inferior a das mulheres. O contrário do que acontece quando a família é composta do casal mais os filhos, em que a diferença mostra-se substancial. Neste caso, a jornada do homem reduz e a da mulher se intensifica de maneira significativa. Motivo pelo qual a inserção da mulher no mercado de trabalho requer um grande esforço na conciliação das jornadas, dificultando muitas vezes o seu ingresso e a sua permanência no mercado de trabalho.

Na realidade das marisqueiras, os afazeres domésticos, aos que se incluem, os cuidados com os filhos, justificam algumas vezes a sua inserção na mariscagem porque, além de ajudar na renda familiar, é uma ação em que elas podem conciliar as atividades sem maiores dificuldades. Isso é justificado tanto pela proximidade do local em que trabalham com relação a sua casa, como pela possibilidade de executar algumas etapas do processo no próprio domicílio, e pela flexibilidade que a autonomia do trabalho permite, como podemos ver claramente na experiência de Ana Darc que se inseriu na mariscagem depois que seu primeiro filho nasceu e não tinha com quem deixá-lo.

Para as marisqueiras, principalmente, aquelas cujos filhos ainda são pequenos e requerem mais atenção, os motivos se assemelham. Nesse contexto, seguem desenvolvendo seu trabalho na maré, sem associá-lo, em alguns casos, de forma consciente, à esfera da produção do ramo da pesca artesanal. No entanto, isso não pode ser generalizado porque já é possível perceber importantes avanços nesse sentido e um deles está na concretização do registro de pescadoras junto às colônias, que representa o reconhecimento da sua atividade profissional.