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DISCUTINDO O UNIVERSO DA MARISCAGEM 107 3.1 O processo da catação de mariscos: entre “sacrifício” e

4. GÊNERO, TRABALHO E ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA

4.3 Trabalho e emprego

Na atualidade é comum associar o trabalho ao emprego e vice- versa. Isto, em virtude da compreensão de trabalho como uma relação formal assalariada. Uma pessoa que realiza seu trabalho de forma autônoma, como biscateiro, vendedor ambulante, dona de casa, mesmo que o faça de forma regular, ainda assim, em alguns casos, considera-se desempregado. O que podemos perceber nas palavras de algumas marisqueiras que se consideram sem trabalho, apontando essa condição para o membro da família que possui algum tipo de vínculo trabalhista.

Muitas vezes as pessoas que realizam atividade de forma autônoma podem até trabalhar mais e obter salários ainda maiores que outras que possuem emprego fixo. Na verdade o que elas não possuem é um emprego assalariado formalizado através de documento específico que lhes garanta os direitos trabalhistas e previdenciários.

De acordo com Barros (2011, p. 173), “a relação de emprego tem natureza contratual exatamente porque é gerada pelo contrato de trabalho”, cujos principais elementos são:

a) a pessoalidade, ou seja, um dos sujeitos (o empregado) tem o dever jurídico de prestar os serviços em favor de outrem pessoalmente; b) a natureza não eventual do serviço, isto é, ele

deverá ser necessário à atividade normal o empregador; c) a remuneração do trabalho a ser executado pelo empregador; d) finalmente, a subordinação jurídica da prestação de serviços ao empregador. (BARROS, 2011, p. 173)

Segundo a autora, nem toda relação de trabalho se constitui em uma relação de emprego, isso só ocorre quando essa apresenta em sua configuração os elementos que caracterizam vínculo empregatício (elementos citados no parágrafo anterior). Como relação de trabalho temos, além da relação de emprego, outras formas de prestação de serviços que são realizadas em forma de trabalho voluntário, trabalho autônomo, eventual, avulso, entre outros. Desta forma, podemos dizer que toda relação de emprego é uma relação de trabalho, mas nem toda relação de trabalho é uma relação de emprego.

De acordo com Woleck (2008), na língua inglesa, até o início do século VIII a palavra emprego era utilizada relacionando-se a alguma tarefa, só a partir do século seguinte, com o processo de industrialização é que ela vai fazer referência ao trabalho realizado nas fábricas ou nas burocracias das nações.

Antes do século XIX as pessoas realizavam serviços de forma autônoma ou para um empregador para suprirem suas necessidades básicas, elas não eram vinculadas a uma organização e nem tão pouco possuíam uma relação formal de trabalho através do que chamamos usualmente de emprego fixo. Nesse contexto, elas eram detentoras de ocupações, mas não necessariamente de empregos. Como diz o autor citado, “o emprego é um fenômeno da modernidade” (WOLECK, 2008, p. 8) impulsionado pela industrialização que pressupõe uma relação entre o indivíduo e a organização mediada pelo mercado. Nessa relação, o indivíduo realiza uma atividade produtiva em troca de rendimentos que serão utilizados para aquisição de bens e serviços necessários a sua sobrevivência e de sua família. É, portanto, uma relação de troca que se estabelece nesse tipo de sociedade.

Na sociedade do século XX, em que o mercado ocupa um lugar central, o emprego se constitui no critério que define a significação do indivíduo na sociedade. Um indivíduo que não obtém um emprego é considerado um desocupado e, portanto, um excluído desta mesma sociedade, de acordo com Woleck (2008). Nesse contexto, o emprego torna-se categoria central que vai declinando no decorrer da segunda

metade desse século e tomando uma nova configuração em virtude do desenvolvimento tecnológico que se acentuará no século XXI.

Com as transformações ocorridas no mundo o trabalho nas últimas décadas do século XX, mudam-se as formas de contratação do emprego, difundindo o emprego por tempo determinado e de meio período, ao mesmo passo em que se acentua o grau de informalidade no mercado de trabalho brasileiro. Entende-se por formal o emprego de carteira assinada e informal o trabalho cujo vínculo está isento das obrigações trabalhistas contratuais, são os trabalhadores por conta própria e sem carteira assinada.

No contexto das marisqueiras, o trabalho se traduz em emprego para algumas mulheres, quando se entende que esse ato expressa um vínculo entre empregado e empregador, através de uma relação de troca representada pelo registro na carteira de trabalho ou não, mas que se configura em uma relação de emprego na medida em que se verifica a existência do(a) empregado(a), do(a) empregador(a), do salário e da regularidade na prestação dos serviços.

De acordo com essa perspectiva, o trabalho autônomo da catação de mariscos que as marisqueiras exercem, por não apresentar subordinação a um(a) empregador(a), obrigatoriedade de horário regular e renda fixa, perdem a identificação de trabalho na perspectiva de seis mulheres entrevistadas.

No caso particular de Sheila, o trabalho eventual e autônomo realizado pelo marido como eletricista é reconhecido como tal, em virtude de, na sua visão, o trabalho significar uma outra atividade que é exercida fora do âmbito da pesca. Desta forma, posso inferir que a pesca não é considerada trabalho sob o seu ponto de vista.

Já nas falas de Janiele e Janete, percebo a dimensão do sexo como um elemento que interfere na concepção de trabalho. Nesse caso, não é o fator da autonomia que vai incidir no seu entendimento. Além do aspecto relacionado ao provimento das despesas do lar que se apresenta sob o comando dos maridos, vejo que o direcionamento da pesca como atividade masculina histórica e socialmente construída se reproduz no pensamento dessas mulheres, quando reconhecem como trabalho aquele que é executado pelo homem. Nos seus depoimentos, elas mencionam que seus maridos trabalham fazendo alternativo marítimo e também como pescadores, ambas as atividades realizadas de forma autônoma assim como elas. Quando pergunto a Janete se ela cata mariscos, ela responde: “cato, ele [omarido] também cata. [...] quando

eu vou, eu vou com os vizinhos ou com ele mesmo”. Vemos aqui que o seu marido compartilha com ela da mesma atividade, em alguns momentos. Da mesma forma, Janiele diz que seu marido “faz alternativo e de vez em quando vai na maré também”. Nesse momento, questiono sobre a frequência na atividade buscando entender quem trabalha com mais assiduidade na catação e ela explica: “é tudo do mesmo jeito”.

Percebo que a exclusão do sexo na noção de trabalho tem reflexos também no âmbito da pesca artesanal que ainda não foram superados em sua totalidade. Vejo isso a partir dos depoimentos mencionados nesse estudo. Embora já se fale em uma nova conceituação dessa categoria com a inserção sexuada, as raízes da concepção de