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2. Uma proposta de método

2.4. A inspiração foucaultiana

Em sua aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970, Michel Foucault (1970)108 vai expondo seu modo de pensar: vai mostrando os princípios na

qual se sedimenta sua noção de discurso, sua forma de análise e o embasamento filosófico que lhe dá sustento, esquivando-se das categorizações de “estruturalista”. Também vai nos falando sobre sua idéia de um sujeito, que não se confunde com o interlocutor (a pessoa), e de como os discursos proferidos estão regrados segundo condições de produção do discurso.

Quase que de início, Foucault lança sua hipótese, apresentando o lugar do trabalho realizado: “suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes de perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (idem, p.9). A partir disso, Foucault elenca três tipos de procedimentos de controle e delimitação do discurso. Limito-me a mera exposição, deixando ao leitor a indicação da leitura de Foucault para maiores esclarecimentos.

O primeiro, que concerne à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo, é um procedimento externo de controle: interdição (palavra proibida); separação e rejeição (segregação da loucura); oposição entre verdadeiro e falso (vontade de verdade). O autor também discorre sobre o fato de “o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (idem, p. 10). Disso deriva uma vontade de verdade, que se transmutou ao longo da história.

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Deste três procedimentos, o autor dá os indícios de que as interdições que atingem o discurso revelam sua ligação com o desejo e com o poder e que, por sua vez, tais procedimentos estão apoiados sobre um suporte institucional, que os reforçam e os reconduzem por um pacto conjunto de práticas, mas que também são reconduzidos pelos modos como o saber (vontade de verdade) é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e atribuído. Por isso mesmo que essa vontade de verdade, suportada institucionalmente, é ocasião de exercer uma “espécie de pressão e como que um poder de coerção” sobre outros discursos. Em suma, um discurso de verdade que impera sobre todos os outros discursos, cerceando quaisquer outras possibilidades de verdade.

O segundo seria os procedimentos internos de controle do discurso, submetidos à dimensão do discurso do acontecimento e do acaso: comentário, autoria, disciplina. Essas são limitações que aparecem no discurso como formas que cerceiam o seu acaso e, conseqüentemente, seu acontecimento fora dos padrões de produção discursiva. Foucault coloca que é levando-se em consideração a função restritiva e coercitiva desses modos de produção do discurso que se pode pensar seu papel positivo e multiplicador, invertendo a compreensão que se tem quando de fala do acaso e do acontecimento como obra da fecundidade de um autor, multiplicidade dos comentários ou até mesmo os recursos infinitos para uma nova disciplina (idem, p. 36).

O terceiro grupo de controle do discurso trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, impondo aos indivíduos uma série de regras, não permitindo o acesso de todos ao discurso. Ou seja, para entrar na ordem do discurso é preciso uma série de exigências. Tais procedimentos são: os rituais; as sociedades de discurso; a doutrina; a educação. É através dos procedimentos utilizados por esses modos de produção do discurso que o próprio se sujeita.

Foucault argumenta, em seguida, sobre “o campo da verdade que autoriza formulações (no âmbito da filosofia)”, como coloca Guirado (1995, p.42). Seriam eles: o sujeito fundador (discurso como jogo de escritura); a experiência originária (discurso como jogo de leitura), a mediação universal (discurso como jogo de troca). Porém, partindo desses procedimentos de coerção/produção do discurso e de dentro dessa ordem, é que Foucault propõe seu método analítico. O autor elenca uma série de princípios (inversão; descontinuidade; especificidade; exterioridade) a partir dos quais pensa o discurso na sua produção, e num princípio regulador da análise: noção de acontecimento, de série, de regularidade, de condição de possibilidade. Respectivamente em oposição à: criação, unidade, originalidade, significação. E desses pontos (os primeiros, não os segundos) estão seus princípios fundamentais da teoria: o

discurso entendido como acontecimento discursivo; este acontecimento não é da ordem da materialidade dos corpos, mas sim imaterialidade que se efetiva e é efeito no âmbito material, não da propriedade dos corpos, mas que “possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais” (FOUCAULT, 2002, p. 57); o acontecimento discursivo entendido não como séries homogêneas, mas descontinuas uma em relação às outras. A partir desses horizontes, o autor propõe a análise segundo dois conjuntos: conjunto crítico e conjunto genealógico. Eles seriam duas perspectivas de análise, utilizando-se de princípios diferentes, porém que não são nunca separáveis (idem, p.66). Em suma,

(...) a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante (idem, p.70).

Sumarizo uma terceira vez: a análise proposta por Foucault produz-se sobre a materialidade do discurso (acontecimento discursivo, formação discursiva) e dispensa outras explicações que não a das próprias condições da produção do discurso. Não é preciso nem buscar explicações na estrutura social, nem no indivíduo e em sua subjetividade (Guirado, 1995, p. 46). Porém, alguns enlaces são possíveis de serem feitos. O primeiro é o de considerar o discurso enquanto um acontecimento discursivo. Desta compreensão é que Guirado pensa o conceito de discurso: considerá-lo como ato, entendendo que os processos de produção do discurso estão presentes no próprio discurso. O segundo é considerar o plano de análise como o plano de produção de sentido. A atribuição de sentidos é feita no pensamento, e não pelo desvelamento de sentidos ocultos ao discurso.

Chegou o momento de enredar todos esses pontos de enlace para entender como proceder a análise de discurso segundo a proposta de Marlene Guirado.