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Análise do Discurso, segundo a escola francesa

2. Uma proposta de método

2.3. Análise do Discurso, segundo a escola francesa

Trato agora da escola francesa de análise do discurso (AD), representada por Dominique Maingueneau (1989105; 2000106). Ocupando um lugar liberado pela antiga filologia,

a AD tende a trazer uma contribuição às hermenêuticas contemporâneas, aproximando-se de conceitos e métodos da lingüística, mas configurando-se como um campo próprio por levar em conta outras dimensões. O autor faz alusões às delimitações dessa disciplina do conhecimento às inscrições que faz no limite com as outras áreas afins – incluindo aí a Psicologia e a Psicanálise –, diferenciando-se inclusive da análise do discurso anglo-saxã (MAINGUENEAU, 1989, p.7-23). A partir dessas delimitações do domínio da AD, aliado à dispersão do conceito de discurso, é que Maingueneau faz um recorte teórico-metodológico próprio à AD.

Nessa “restrição” de campo é que o autor coloca que os objetos que interessam à AD correspondem ao que se chama de formações discursivas – o discurso –, de Michel Foucault, das quais a AD faz ascendência direta de suas idéias. Por esse conceito se entende: “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram numa época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1969, p. 153 in idem, p. 14). E a isso Maingueneau (idem, ibidem, grifo do autor) complementa “nesta perspectiva, não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio- histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis”. Colocado de outra forma, para o autor a AD “é uma disciplina que procura pensar a relação entre um lugar social107 e uma certa

organização textual (...) seu objetivo é precisamente essa articulação” (MAINGUENEAU, 2000, p.23), complementando adiante que o estudo dessa articulação se dá “por meio de um modo de enunciação” (idem, p. 26). Ou seja, pelo discurso.

Para pensar essa articulação é que Maingueneau se remete ao conceito de Gênero de Discurso, a qual se refere à relação de interioridade que o discurso tem com suas condições de produção, que delimitam mas que possibilitam sua produção. O autor define o gênero de discurso como “um dispositivo social de produção e de recepção de discurso (...) é uma realidade empírica que é, ao mesmo tempo, uma organização verbal e um fenômeno social”

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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes Editoras, 1989.

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In GUIRADO, 2000.

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“digo ‘lugar social’, num sentido mais amplo: a política, um jornal, uma doutrina, a literatura, um hospital, uma aula, a entrevista num consultório entre um psicólogo e um cliente são ‘lugares sociais’”(MAINGUENEAU, 2000, p.23)

(idem, p. 24). Com isso, o autor enfatiza tanto o enunciado quanto os modos de enunciar, isto é, tanto o discurso quanto suas condições de produção. O recurso ao gênero de discurso ajuda a pensar sobre a articulação entre lugar e texto (por não serem realidade independentes uma da outra) justamente pelo fato de lançar luz sobre os dispositivos intrínsecos destes, que regulam a produção do discurso.

Complementando o conceito, Maingueneau coloca que o discurso pode ser entendido como instituição discursiva. Com isso, o gênero de discurso também é uma instituição. Ou seja, o autor enfatiza que se pode pensar em uma instituição concreta, mas que esta não existe sem o discurso (as instituições discursivas). Como exemplo, uma instituição verbal “dentro” de uma instituição escolar, mas que esta, de certo modo, está também dentro da “aula” (idem, ibidem). Mais adiante o autor complementa que além de ser instituição, o discurso também institui as condições de sua própria possibilidade. Resumindo, “o gênero de discurso é preestabelecido, mas também o quadro preestabelecido tem de ser legitimado a cada enunciação” (idem, p.93). Ou seja, há uma inseparabilidade entre o conteúdo de um discurso e o seu gênero do discurso (como um quadro que está dentro da mensagem). Por isso mesmo que se pensa o discurso como uma atividade, como ato, pois há inseparabilidade entre o conteúdo de uma mensagem e suas condições de enunciação. Vale repetir: o discurso não é o reflexo de uma realidade institucional.

Maingueneau elenca três níveis dentro do gênero de discurso, que mantêm relação entre si: 1) nível tipológico (ou cena emglobante), na qual cada tipo de discurso implica em uma certa definição de parceiros (ex.: um candidato político procura identificar sua eleição à política, ao mesmo tempo em que interpela o ouvinte como cidadão). 2) Cena genérica, na qual papéis são desempenhados como que inspirados em um enunciador-modelo, um objeto ideal por uma rede de normas (ex.: uma pessoa faz uma confidência; a outra desempenha o papel de confidente, seguindo uma série de condições para tal). Porém, o autor alerta para os conflitos existentes entre os papéis implicados pelo gênero de discurso e os sujeitos reais (ex.: mulher vendendo carro; a dimensão da diferença sexual pode interferir nos papéis de vendedor-comprador). 3) Cenografia, que se trata do tipo da relação que cada discurso estabelece. Seria a tentativa de legitimar o nível tipológico (cena englobante), na qual o discurso tenta definir uma certa imagem da relação. Por exemplo, um professor que desempenha um papel de amigo com o aluno está constituindo uma relação na qual ele e o aluno estão implicados. Implícita à definição dos parceiros (professor/aluno) e ao desempenho desses papéis deles na relação pedagógica (cena genérica), o professor transmite uma determinada forma de relação pedagógica. Essa relação estabelecida seria como que uma

legitimação constante do quadro, por isso mesmo que o discurso é uma construção e reconstrução constante desse quadro. Portanto, “os conteúdos vão validar esse quadro, e o quadro vai validar também os conteúdos” (idem, p. 98). Por isso mesmo que o discurso não é a simples transmissão de idéias, mas é ao mesmo tempo o reconhecimento dos lugares a partir da qual um está falando e o outro está recebendo o discurso. Em suma, pelo recurso teórico do gênero do discurso é que se afirma que “não se pode separar as idéias e o dispositivo comunicativo, o que subverte a oposição texto/contexto: o texto participa da construção do contexto” (idem, p. 100).

Por outro lado, Maingueneau traz à tona o fato dos discursos não seguirem linearidade. Ele coloca que “o discurso é sempre uma maneira de construir uma relação com outros discursos” (idem, p. 47). Com isso, ele nos fala da heterogeneidade do discurso, com a característica da polifonia (várias vozes), que em outras palavras revela a opacidade do discurso, a não transparência, indicando para a divisão dos sentidos, para a duplicação dos sentidos em uma mesma fala. É como uma relação de exterioridade dentro da interioridade.

Não parece necessário me alongar nas especificidades dessa Análise do Discurso e nos métodos de análise desse campo. Volto aos pontos de enlace da AD com a proposta de Marlene Guirado. Pela compreensão da AD, tem-se um sujeito pensado a partir do lugar social em que está falando e que se inscreve nele e por ele. Nota-se que falar em sujeito, na AD, é remeter-se a um termo que evoca uma falta de substância, uma materialidade imaterial, ou seja, não se refere à expressão individual de uma pessoa que está enunciando um discurso. O que está em questão é o discurso, nas suas condições de produção, ou seja, o discurso enquanto uma cena enunciativa. Na sua aproximação, Guirado aponta para as possibilidades de se falar em uma singularidade e em sujeito psíquico.

Faço uma segunda sumarização: trato de um sujeito-suporte do discurso que não se confunde com as competências individuais do interlocutor, mas tampouco se confundirá com o sujeito-discurso da AD. Evidencia-se a singularidade discursiva do interlocutor ao mesmo tempo em que se evidencia o regime discursivo na qual ele produz seu discurso. Ou seja, coloca-se em evidência o autor da cena enunciativa com suas condições de enunciação. Guirado chama essa operação de “conceito dobradiça” do sujeito, pois é a partir deste que se pensa a singularidade discursiva de um sujeito que enuncia um discurso por conta de uma condição de enunciação.

Retomando: tem-se um sujeito constituído nas e constitutivos das relações institucionais concretas (matriz institucional do sujeito psíquico) – um sujeito de representações e afetos (o sujeito-suporte). Por sua vez, é pelo seu discurso (que mantém

relação intrínseca com seu modo de produção), que se pensa o modo singular como esse sujeito profere seu discurso. Singularidade discursiva produzida no aqui e agora da instituição concreta.

Antes de entrar no procedimento propriamente dito, explicito a fonte inspiradora de Guirado de um certo modo de pensar tanto o discurso quanto sua análise: o pensamento de Michel Foucault. Nota-se que os outros autores utilizados por Guirado em suas aproximações também têm pontos convergentes com Foucault. Os pontos de estofo estão destrinchados adiante.