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4. Transformação social, sociedade civil e Terceiro Setor

4.3. Inconsistência conceitual e críticas

Como já esboçado acima, nos anos 70 o termo “sociedade civil” ganhou visibilidade na América Latina por ser uma ferramenta fundamental à reunião dos atores em oposição aos regimes militares. No Brasil, não foi diferente. Já discutido no primeiro capítulo, assinalei como o termo ocupou mais uma função político-estratégica do que analítico-teórica. Ou seja, “não cabiam especulações sobre a existência de uma sociedade civil no Brasil, buscava-se um marco conceitual capaz de dar suporte à organização da resistência contra os militares” (COSTA, 1997, p.13), por isso que se falava no fortalecimento da sociedade civil. Porém, acompanhando o processo de re-democratização e das transformações sociais nos anos seguintes, também se buscou uma redefinição do conceito a partir da prática política que, por sua vez, foi seguida por um empenho acadêmico-teórico equivalente.

Nas contundentes críticas de Lavalle (1999; 2003175) o autor aponta que a busca pela redefinição do conceito seguiu o consenso de que há uma unidade no universo de práticas de ação coletiva dos atores da “nova sociedade civil”, assim como de seus atributos: diversa, plural, ubíqua e representante do interesse geral – todas colocadas sob o marco de democratização crescente. De modo geral, a “nova sociedade civil” “foi definida como uma trama diversificada de atores coletivos, autônomos e espontâneos a mobilizar seus recursos associativos mais ou menos escassos (...) para ventilar e problematizar questões de “interesse geral””(LAVALLE, 2003, p.97).

175 LAVALLE, Adrián Gurza. Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990. Novos

Lavalle (1999) argumenta que apesar das reformulações sobre o conceito de sociedade civil ter sido abordado por diferentes autores, produzindo diferentes interpretações176, o uso mais difundido e consensual corresponde ao modelo da “nova sociedade civil” pautado na obra de Cohen & Arato que, segundo o autor, não resguarda parentesco com as “famílias de argumentos” precedentes sobre a sociedade civil177. Em sua argumentação, Lavalle mostra que o estatuto da “nova sociedade civil” está caracterizado pelo “abandono da premissa fundamental sobre o caráter internamente constitutivo do vínculo entre a sociedade e o Estado” (idem, p. 130). A “nova sociedade civil” ganha um novo estatuto: 1) rompe a premissa de ser uma categoria analítica na compreensão da relação Estado/sociedade enquanto uma totalidade social para ser entendida enquanto unidade e momento oposto ao Estado; 2) perde a particularidade e os interesses divergentes dentro dessa totalidade para ter um caráter de unidade e universalidade e ser espaço de interesse geral, ou seja, perde seu caráter dialético e contraditório na tensa totalidade social. Como visto, é justamente essa aparente unidade que dá liga às ações das inúmeras organizações ditas da sociedade civil.

Dito de forma bem clara, a sociedade civil passou de uma categoria analítica para ter um caráter político-normativo, ou seja, tornou-se um eixo normativo de orientação política que ocupa o lugar do “ator moral da transformação social”. Como bem descrito por Lavalle (2003, p. 101), “fundamentalmente as ONGs, mas também os movimentos sociais e outras formas de associação voltadas para a intermediação e tematização pública de problemas, foram definidos (...) como novos atores da sociedade civil”. O que saliento é o papel que as organizações do Terceiro Setor exercem enquanto atores dessa nova sociedade civil: fica clara a inconsistência conceitual na qual estão pautadas, restando o apoio na bandeira da ação social de cunho normativo encabeçadas por elas.

Um outro aporte, elaborado por Nogueira (2003), resguarda certa similaridade com os pontos de vista até aqui expressos. O autor argumenta que vários interlocutores que utilizam o conceito de sociedade civil se referem a coisas distintas, mas empregam a mesma palavra, comentando os numerosos sentidos da utilização do termo e resumindo que o apelo para essa figura conceitual

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Lavalle (idem, p.128) indica autores como Gramsci, Arendt, Schmitt, Koselleck, Kolakowski, Bobbio, Lefort, Luhman, Habermas, Putnam, Cohen, Arato, Keane e Mouffe.

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Em minha exposição, abordei duas das “famílias de argumentos”: a primeira delas, da inspiração da doutrina jusnaturalista e, a segunda, que tem em Hegel a fonte de inspiração. Deixei de abordar a terceira família (que tem como representante Tocqueville), na qual se marca a diferença entre Estado e sociedade civil, não havendo mais relação de interioridade, ou seja, há separação entre a gênese do Estado e a organização da vida comunitária, restando à sociedade civil as redes e hábitos de associação, cujos atores são responsáveis por uma participação essencial ao regime democrático e ao bom governo. Uma última família é sugerida, mas não configurada enquanto tal, seria a proveniente da corrente marxista – também abordada por mim.

(...) serve tanto para que se defenda a autonomia dos cidadãos e a recomposição do comunitarismo perdido, como para que se justifiquem programas de ajuste e desestatização, nos quais a sociedade civil é chamada para compartilhar encargos até então eminentemente estatais (idem, p. 186).

Partindo do parâmetro gramsciano sobre o conceito de sociedade civil, Nogueira aponta como o termo sociedade civil transitou de um período em que o marxismo prevalecia até o momento em que a perspectiva liberal-democrática tornou-se ortodoxa. Nessa trajetória, o termo parece ter se convertido ou em um recurso gerencial (sendo um arranjo societal destinado a viabilizar tipos específicos de políticas públicas), ou em fator de reconstrução ética e dialógica da vida social. Segundo o autor, as novas idéias foram sendo incorporadas ao léxico e, mais do que isso, reformulando seus sentidos a partir das revisões radicais das formulações gramscianas, para em seguida despontar em duas vertentes teóricas distintas (mas não contrapostas) resultantes: de um lado, o que nomeia de sociedade civil liberista, e de outro, a sociedade civil social – ambas em referência à sociedade civil político-estatal, originária a Gramsci (idem, p.189-196).

Dessas duas linhas, o ponto central é a conclusão a que chega Nogueira: ambas se sustentam sobre uma auto-valorização enquanto esferas próprias, autônomas e opostas ao Estado, configurando-se como instância homogênea e integrada por intenções comuns que se compõem “espontaneamente”178. Justamente por ser um “lugar comum” que a sociedade civil é pensada como vazia de tensões, disputas e contradições, ou seja, está isolada da contraditória totalidade social – tornando-se, portanto, uma esfera apolítica.

Novamente se recai nas discussões sobre uma ontologia social, o papel dos diversos atores na totalidade social e as categorias analíticas para se pensar a relação Estado/sociedade. Retomo então o mote das críticas até aqui elaboradas: a fragmentação da sociedade contemporânea parece comportar diferentes concepções sobre a sociedade civil. Cada uma dessas teorizações, como aponta Nogueira (idem, p. 196), está direcionada segundo projetos políticos e sociais correspondentes. As teorizações acerca das organizações do Terceiro Setor também se apóiam nas diferentes correntes interpretativas acerca do papel transformador delegado à sociedade civil. Desta maneira, as ressonâncias interpretativas com o mundo contemporâneo parecem dar legitimidade a qualquer ação prática de tais organizações. Por outro lado, viu-se que tal legitimidade é conferida por um eixo normativo orientado por um

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projeto político dominante. No entanto, as análises feitas no capítulo anterior trazem à tona uma multiplicidade de ações que são omitidas nesse discurso dominante.

Em suma, por um lado tem-se uma gama de explicações e justificativas teóricas e práticas para as ações da sociedade civil e, mais especificamente, das organizações do Terceiro Setor, na qual se verifica a utilização dos mesmos termos em detrimento de um projeto político. Por outro, se tem uma noção de realidade contemporânea fragmentada, na qual inúmeros atores atuam na sociedade sob as bandeiras da “transformação social”, mas que carregam em seu germe um potencial transformador da realidade.

Numa última reconsideração, relembro o que chamei, no primeiro capítulo, de dissonância discursiva. Pelas discussões acima, nota-se uma cooptação semântica a favor do uso de léxicos que conduzam todos para a mesma direção. Compartilhando das idéias de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant (2000)179, vive-se sob um imperialismo cultural que se caracteriza como uma violência simbólica, na qual se universaliza particularismos vinculados a uma experiência histórica particular. Recapitulando as discussões sobre uma “agenda global”, Bourdieu e Wacquant apontam como as particularidades e particularismos de uma determinada sociedade (a saber, a norte-americana) são transmitidas como universais por organismos internacionais aparentemente de “pensamento” neutro, ocultando os significados originais. Ao longo deste trabalho, fui identificando que esse particularismo não é apenas proveniente da tradição norte-americana, mas da essência liberal que permeia todos esses âmbitos relatados.