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É a partir dos preceitos do antropólogo Pierre Clastres43 sobre as sociedades primitivas que, frequentemente, elas eram definidas como sociedades sem Estado, ou seja, sociedades em que não se apresentam órgãos de poder distintos. Gilles Deleuze e Félix Guattari, no volume 2 da obra Mil Platôs (2012), aprofundarão um estudo que se refere à institucionalização da máquina de guerra.

No esboço de Pierre Clastres, verifico que ele pretende abater a ideia etnocêntrica de que essas sociedades primitivas, por não possuírem escrita, também não possuiriam história, e, logo, não atingiriam um grau de desenvolvimento econômico ou um nível de diferenciação política, o que tornaria inviável uma possível formação de um aparelho de Estado. Segundo Clastres, ―[...] os primitivos, desde logo, ‗não entendem‘ um aparelho tão complexo‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 19).

A tese de Clastres revela que o senso comum parte do pressuposto de que uma sociedade primitiva sem Estado estaria privada de alguma coisa, tornando-se, assim, incompleta. O etnólogo defende, então, a ideia de que as sociedades primitivas ―não teriam a preocupação potencial de conjurar ou prevenir esse monstro que supostamente não compreendem‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 20).

Ainda seguindo esse raciocínio, Clastres aponta que as sociedades primitivas possuíam ―chefes‖. Entretanto, conclui que a formação de um Estado independe da existência de chefes e define-se ―pela perpetuação ou conservação de órgãos de poder‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 20). Nesse sentido, Clastres irá defender que, nas sociedades primitivas:

A guerra é o mecanismo mais seguro contra a formação do Estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos grupos, e o guerreiro é ele mesmo tomado num processo de acumulação de suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas, porém sem poder. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 20, grifo do autor).

43 La Société contre l’État, Paris, Minuit, 1974; Archéologie de La violence e Malheur du guerrier sauvage,

Nesse caso, o autor privilegia a situação de guerra, rechaçando a formação do aparelho de Estado. A partir dessa questão, Gilles Deleuze e Félix Guattari entendem que ―o Estado não se explica por um desenvolvimento das forças produtivas, nem por uma diferenciação de forças políticas. [...] É ele que torna possível a distinção entre governantes e governados‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 22).

Diante dessa estruturação de como o poder é organizado, instala-se a ideia de uma sociedade com Estado, denominada, ainda por Pierre Clastres, como sociedades monstruosas. Segundo ele, estas são as que se alicerçam e impõem-se a partir das grandes máquinas mundiais, gozando de ampla autonomia com relação aos Estados, como, por exemplo, as ―grandes organizações comerciais do tipo ‗grandes companhias‘, os complexos industriais, ou mesmo as formações religiosas como o cristianismo‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 24). De outro lado, organiza-se a ideia de uma sociedade contra o Estado, denominada por Clastres como primitiva, mas que se impõe por meio dos bandos, das margens, das minorias, que continuam a afirmar os direitos de sociedades segmentárias contra os órgãos de poder do Estado.

O autor pondera que os bandos, não menos que as organizações mundiais, implicam uma forma irredutível ao Estado, sendo que, nessa forma de exterioridade, apresenta-se a máquina de guerra. É nessa esteira de pensamento, partindo dos postulados de Pierre Clastres, que Gilles Deleuze e Félix Guattari defendem a institucionalização de uma máquina de guerra, cujo domínio:

Responde a outras regras, [...] que animam uma disciplina fundamental do guerreiro, um questionamento de hierarquia, uma chantagem perpétua de abandono e traição, um sentido de honra muito suscetível, e que contraria, ainda mais uma vez, a formação do Estado. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 22).

Para os autores, a noção de Estado sempre existiu, o que remonta aos tempos mais remotos da humanidade. Mas o que interessa para eles é entender o Estado a partir do momento em que ele estabelece uma relação com um ―fora‖, que pode manifestar-se tanto nas organizações comerciais do tipo ―grandes companhias‖, nas formações religiosas como o cristianismo, como também nos mecanismos locais dos bandos, das margens, das minorias.

Assim, os autores instituem que ―é no interior dos bandos que se apresenta a máquina de guerra. Ela se efetua nos agenciamentos ―bárbaros‖ dos nômades guerreiros‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 22), por exemplo. Nesses termos, pressinto que a ideia da imposição da máquina de guerra advém de um ímpeto revolucionário, que é insinuado no interior das

relações de poder existentes em uma determinada sociedade, opondo-se, prioritariamente, contra as institucionalizações da forma-Estado. Como horizonte dessas definições, os autores ainda pontuam que:

Se os nômades criaram a máquina de guerra, foi porque inventaram a velocidade absoluta, como ‗sinônimo‘ de velocidade. E cada vez que há uma operação contra o Estado, indisciplina, motim, guerrilha ou revolução enquanto ato, dir-se-ia que uma máquina de guerra ressuscita, que um novo potencial nomádico aparece [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 64).

É desse ponto de reflexão que pretendo entender a narrativa de Carolina Maria de Jesus. Busco como amparo, inevitavelmente, a perspectiva de que a escritora oportuniza-se de um discurso que se interpõe como uma máquina de guerra frente às obliterações que vão se somando a partir do embate com um Estado que a desterritorializa, quando ele a negligencia como ente político, por exemplo.

Acredito que seu discurso provém da organicidade do bando, lugar de onde tenta agenciar uma possibilidade de existência, que se aparelha por meio de um processo de acumulação de inúmeras façanhas que decorrem por conta de seu percurso insólito. Nesse agenciamento, percebo que o seu discurso procura, sempre, estabelecer uma relação com o ―fora‖, não encontrando guarita. Logo, verifico que, à medida que se interpõe contra a figura do Estado, o discurso de Carolina ressuscita a máquina de guerra, o motim, a revolução, como se pode observar no exemplo a seguir:

— É que tinha fé no Kubitschek.

— A senhora tinha fé e agora não tem mais?

— Não meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No país tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia. Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido. (JESUS, 1960, p. 33).

O posicionamento de Carolina, especificamente neste trecho, esclarece como ela se sente em relação ao Estado. Ela assumirá, portanto, a partir da classificação de Pierre Clastres, a ideia de pertencer a uma sociedade que se volta contra o Estado, justificando, assim, a existência de sua máquina de guerra, pelo fato de afirmar seus direitos frente às organizações de poder do Estado previamente instituído. Essa manifestação também se verifica em:

Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas não tinha nada para comer. [...] Eu quando estou com fome quero matar o Jânio44, quero enforcar o

Adhemar45 e queimar o Juscelino46. As dificuldades corta o afeto do povo pelos

políticos. (JESUS, 1960, p. 28).

Em sua trajetória nômade, avalio que sua existência só é possível quando trava esse embate que se manifesta por meio de um discurso que não cessa de lutar por certa adesão. Em um estudo sobre a saga de Carolina Maria de Jesus, denominado Cinderela Negra (1994), Levine e Meihy defendem que Carolina não se curvou a nenhum movimento político da época. Segundo eles, a trajetória da escritora implica uma visão, de um lado, pouco revelado da cultura brasileira. Esse fato pode ser esclarecido a partir do seguinte trecho:

Curiosamente, nem os militantes de esquerda, nem os membros da ciosa direita brasileira a apoiaram de maneira linear. Para os primeiros ela não parecia suficientemente estridente para provar as teses da luta de classes ou da vítima consciente da marginalização inconformada. [...] Para a direita, seus testemunhos

incomodavam o pressuposto da pobreza domesticada, [...]. (LEVINE; MEIHY,

1994. p. 19-20).

Nesse caso, se Carolina não se aloca nem à esquerda dos movimentos sociais que se propagavam na época de seu aparecimento, nem à direita dos desígnios de uma pretensa burguesia, logo ajuízo que seu discurso encontra-se deliberadamente à margem, ocupando um terceiro espaço de enunciação, elencado anteriormente por Bhabha, pois ―cria a instabilidade oculta que pressagia poderosas mudanças culturais‖ (BHABHA, 2013, p. 75).

Esse posicionamento reforça-se a partir de duas frentes: a primeira diz respeito ao entendimento de Carolina como pessoa física, cidadã, já que o aparelho de Estado instituído nega-a como ente possível; e a segunda é a que se reforça pela não adesão ao mundo literário, por exemplo. É nos dois casos verificados que pressinto a institucionalização da máquina de guerra, à moda de Deleuze e Guattari.

44 Jânio Quadros foi político mato-grossense eleito à presidência da República em outubro de 1960, sustentando-

se no poder em torno, apenas, de sete meses. Assumiria, então, o vice-presidente João Goulart, cujo mandato foi exercido até 31 de março de 1964, quando foi deposto pelo Golpe Militar. (DICIONÁRIO HISTÓRICO BIOGRÁFICO BRASILEIRO, 2001).

45 Ademar de Barros foi ex-governador de São Paulo e ex-prefeito da capital paulista. O político é identificado

pelo lema bastante recorrente na política brasileira: ―rouba, mas faz‖. Entre o início de sua carreira como deputado estadual, em 1934, e sua cassação pelo regime militar, 32 anos depois, ele colecionou feitos administrativos, suspeitas de desvio de dinheiro público e muita polêmica. (DICIONÁRIO HISTÓRICO BIOGRÁFICO BRASILEIRO, 2001).

46 Juscelino Kubitschek foi presidente da República do Brasil entre os anos de 1956 a 1961. Seu governo é

marcado pelo projeto desenvolvimentista, conhecido como Plano de Metas, cuja característica era fazer com que o país se desenvolvesse 50 anos em apenas 5 anos de seu governo. (SILVA, s. d.).

Acredito que o discurso de Carolina provém da força dessa máquina de guerra contra o Estado. Sobre o diferencial de sua narrativa, os autores de Cinderela Negra (1994), mais adiante, serão enfáticos em dizer que:

Carolina foi [...] uma guerreira valente contra as tropas da herança racista, antiinteriorana, preconceituosa em relação às mulheres e, sobretudo uma pessoa afrontadora da marginalidade e da negligência política. (LEVINE; MEIHY, 1994, p. 19).

Nesse sentido, reforço o seu discurso como a institucionalização de uma máquina de guerra, pois é nele que se anima a disciplina da catadora de papel em executar todas as tarefas cotidianas, como no caso de: ―Levantei. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar água‖ (JESUS, 1960, p. 7); é nele que se sobressai o questionamento de hierarquia que não cessa, como em: ―Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a me revoltar. E a minha revolta é justa‖ (JESUS, 1960, p. 29); ou é nele que sobrevém um sentido de honra, que a faz lutar contra as adversidades, como em: ―As intrigas delas (mulheres da favela) é igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervos. E não há nervos que suporte. Mas eu sou forte! Não deixo me impressionar profundamente‖ (JESUS, 1960, p. 15).

Em outro estudo de caráter historiográfico, Robert Levine (2001), ao tentar esclarecer sobre a figura de Getúlio Vargas na evolução do Estado moderno brasileiro, em um capítulo intitulado ―Os pobres‖, em que ressalta as histórias de brasileiros tidos por ele como ―comuns‖47 e que atingiram a maturidade durante os anos 30 e 40, faz referência à trajetória de Carolina Maria de Jesus:

Carolina Maria de Jesus, uma jovem negra indigente da zona rural de Minas Gerais, vivendo na mais aguda pobreza, menosprezada pelas ―boas famílias‖ da cidadezinha em que nascera e condenada à privação, descreve em suas memórias48 o que a

Revolução de 1930 significou para ela. (LEVINE, 2001, p. 147).

Nesse caso, descreve-se a trajetória de Carolina no período de sua infância vivida na cidade de Sacramento (MG). O tempo da narrativa volta-se para o período conhecido, no Brasil, como a Era Vargas. Vejo, aqui, como se comprova um status de plena miserabilidade da escritora e profundo descaso, mesmo que, posteriormente, o autor afirme que a Era Vargas proporcionasse certa mobilidade social e garantisse novas oportunidades. É o que Robert

47 Grifo do autor.

48 A título de esclarecimento, essas memórias foram compiladas para edição no Brasil a partir do texto traduzido

pela jornalista brasileira Clélia Pisa, intitulado Journal de Bitita, publicado, primeiramente, na França, em 1982, e, postumamente, no ano de 1986, no Brasil, como Diário de Bitita (FERNANDEZ, p. 86, 2015).

Levine pode assegurar por meio das lembranças da própria Bitita, ou Carolina Maria de Jesus, em seu diário:

Getúlio dera aos rapazes a oportunidade de servir no exército e, portanto, de sair da desolação do interior. Muitos arranjavam trabalho em São Paulo. [...] e nas cartas para casa, para os parentes, eles os convenciam que São Paulo era o paraíso dos pobres (LEVINE, 2001, p. 148).

Desses espaços instituídos pela trajetória da escritora, pressinto que o seu discurso concentra-se em uma fronteira delimitada por uma sociedade que possui um Estado e que se organiza como sistema de poder. Entretanto, ao verificar que esse mesmo Estado, cujo domínio prezaria por estabelecer uma diferença entre governantes e governados, não considera a existência de Carolina. Assim, afirmo que o seu discurso instala-se em uma dimensão que se afasta de uma perspectiva dicotômica. Logo, entendo que o seu discurso aloja-se em uma espécie de dobra, de fissura, em um ―entre-lugar‖, como já havia afirmado, previamente, a partir das considerações de Bhabha (2013). Nessa projeção, antevejo que Carolina move-se procurando acesso, mas sempre é refutada para outro limiar, aproximando- se do conceito de existência nômade, que não legitima sua manifestação como indivíduo dotado de qualquer relevância existencial.