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A SAGA DE CAROLINA MARIA DE JESUS – UMA EXISTÊNCIA CLARÃO

Neste trabalho, tenho como ponto de partida a busca dos rastros de uma existência que sofreu o risco de ser dissipada, visto que o simples fato de fazer-se presente em determinado meio ofuscava o seu real delineamento, pois a sua imagem e o que se poderia depreender dela, no mínimo, questionava, polemizava e subvertia certa lógica estabelecida.

Menciono a escritora Carolina Maria de Jesus como esses indivíduos, possivelmente sujeitos, a serem dragados pelas incontingências das teorias, dos emaranhados epistêmicos que, por via das dúvidas, tratariam de extingui-la pelo simples fato de pretender-se como escritora.

Permito-me pinçá-la desse universo de conjecturas para que se tome nota de sua experiência, que foi motivada por uma trajetória errante, pelo anseio pleno de agenciamento, vivendo em uma sociedade que não pretendia incorporá-la como indivíduo agente de seu processo enunciativo.

Para essa análise, considero como horizonte de expectativa o pensamento utilizado por Michel Foucault (1995), quando ele pretendeu dar maior ênfase às escavações que fizera nos registros encontrados na Biblioteca Nacional francesa, onde, vasculhando documentos datados entre os séculos XVII e XVIII, recolhidos de arquivos de internamento da polícia, os quais incluíam petições ao rei e cartas régias com ordem de prisão, apurou haver a incidência de um discurso que deveria ser apagado.

Em relação à condição da escritora Carolina Maria de Jesus, sabe-se que ela teve seu discurso recolhido a partir de folhas de papéis avulsos, acomodados, muitas vezes, junto a materiais que recolhia do lixo, cadernos com apontamentos que testemunhavam o relato de uma vida modesta e itinerante. Dessa compilação, nasceu Quarto de Despejo, publicado no ano de 1960, considerado um grande episódio de vendas, visto que havia muita inquietação e entusiasmo em torno do nome da escritora desconhecida.

Entretanto, para Raffaella Fernandez (2015), a obra de Carolina Maria de Jesus não se restringe somente a essa publicação específica. Fernandez pontua que a produção da escritora agrupa uma diversidade de gêneros, como romances, diários, poesias, provérbios, contos, textos autobiográficos. A respeito da localização desse material, a pesquisadora ainda sinaliza que:

Todo material está dividido entre o Museu Afro Brasil (MAB), em São Paulo, a Biblioteca nacional (BN) e o Instituto Moreira Salles (IMS), no estado do Rio de Janeiro, o Arquivo Público Municipal cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswick (APMS), em Sacramento, e o acervo de escritores mineiros (AEM), em Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais. (FERNANDEZ, 2015, p. 18).

A título de não perder as pistas dessa formulação discursiva, tento trazer à discussão não um estudo que pretenda uma abordagem genética. Parto da análise de dois livros de cunho memorialístico e autobiográfico da escritora: Diário de Bitita (1986) e Quarto de Despejo (1960), a fim de compreender a formulação de um discurso produzido por um corpo negro, feminino e marginalizado, que, em minha apreciação, sofre de um sentimento análogo aos indivíduos que tiveram suas vidas atravessadas por circunstâncias, em que se pretendiam fazer desaparecer determinados rastros e/ou indícios de suas existências.

No caso dos documentos recolhidos por Michel Foucault, seu interesse objetivava entender sobre: ―vidas singulares, tornadas, não sei por que acasos, estranhos poemas, eis o que quis juntar em uma espécie de herbário‖ (FOUCAULT, 2003, p. 203). Acerca dessa exumação, faço a amostragem de uma delas:

Mathurin Milan. Posto no hospital de Cherenton no dia 31 de agosto de 1707: ―Sua loucura sempre foi a de se esconder de sua família, de levar uma vida obscura no campo, de ter processos, de emprestar com usura e afundo perdido, de vaguear seu pobre espírito por estradas desconhecidas, e de se acreditar capaz das maiores ocupações‖. (FOUCAULT, 2003, p. 203-204).

O procedimento metodológico introduzido por Michel Foucault pretende trazer à tona uma existência no momento específico em que ela se choca com as relações de poder. Esse interesse pronuncia-se na investigação do exato momento em que essa força (poder) marca com suas garras e faz com que as palavras, então ditas e/ou escritas, organizem-se em um discurso que se encontra em vias de desaparecer. Essas palavras recolhidas são tidas pelo autor como rastros, murmúrios contundentes e até enigmáticos, pois são promovidas exatamente no momento de seu contato instantâneo com o poder.

O interesse do autor reside em fazer um resgate de fragmentos de discursos proferidos por essas figuras obscuras, ou melhor, em tentar auscultar ―essas milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro‖ (FOUCAULT, 2003, p. 207). Assim, Foucault orienta seu trabalho com o intuito de iluminar essas figuras, como se fossem arrancadas de seu momento de extrema noite, a fim de que um feixe de luz, ao menos por um instante, fizesse com que elas fossem conhecidas, justamente quando se digladiavam com as instâncias de um poder instituído. Na concepção do autor, cabe fazer o resgate dessas existências breves,

resgatadas por falas que atravessaram o tempo, fazendo chegar, até hoje, o seu mais imperceptível ruído; tenta, portanto, resgatar ―o breve clarão que as traz até nós‖ (FOUCAULT, 2003, p. 208).

Nesse mapeamento, o autor sugere um estatuto referente a essas manifestações ditas e/ou escritas, concebendo o nascimento de uma ―imensa possibilidade de discurso‖ (FOUCAULT, 2003, p. 219), em que verifica, primeiramente, que ―o banal não podia ser dito, descrito, observado, enquadrado e qualificado senão em uma relação de poder que era assombrada pela figura do rei‖ (FOUCAULT, 2003, p. 209).

Desse ponto, o autor parte para uma ressignificação dos saberes instituídos, articulando uma nova dimensão para refletir, inclusive, sobre a arte literária. Em sua análise, denuncia que, a partir do século XVII, a intromissão da fábula incumbir-se-ia como uma narrativa que deveria ocupar a vida do cotidiano, visto que se predispunha a fascinar ou a persuadir, portanto, ―era preciso que a vida fosse marcada com um toque de impossível‖ (FOUCAULT, 2003, p. 209).

Já em fins desse mesmo século, o autor aponta o surgimento de uma tendência: ―uma espécie de imposição para desalojar a parte mais noturna e mais cotidiana da existência‖ (FOUCAULT, 2003, p. 221), em que a ficção viria a substituir o fabuloso, e, em seguida, o romance assumiria o seu lugar nesse constructo. Segundo o autor, seria, então, a predisposição da literatura:

A literatura, portanto, faz parte desse grande sistema de coação através do qual o Ocidente obrigou o cotidiano a se pôr em discurso; mas ela ocupa um lugar particular: obstinada a procurar o cotidiano por baixo dele mesmo, em ultrapassar os limites, em levantar brutal e insidiosamente os segredos, em deslocar as regras e os códigos, em fazer dizer o inconfessável, ela tenderá, então, a se pôr fora da lei, ou ao menos, a ocupar-se do escândalo, da transgressão ou da revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, ela permanece o discurso da ―infâmia‖: cabe a ela dizer o indizível – o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o mais descarado. (FOUCAULT, 2003, p. 219).

A título de comparação, penso que as escavações realizadas por Michel Foucault, em textos de séculos passados, em que buscou desvelar os discursos obliterados pelas demarcações epistemológicas de seus referidos tempos, faz com que se possibilite a compreensão da existência de Carolina Maria de Jesus como escritora.

Conjecturo que, se a literatura obrigou o cotidiano a fazer-se presente, impondo uma nova concepção do discurso, e, consequentemente, promoveu o aparecimento de novos modelos narrativos, Carolina Maria de Jesus instaura-se nesse interstício. Nesse sentido, pressinto que sua existência possa ser notabilizada pela energia e pela potência de sua

formulação discursiva, que promovem esse ―deslocar das regras e dos códigos‖, visto que vasculha um cotidiano por baixo dele mesmo, como menciona Michel Foucault (1995).

Verifico que, na tentativa de fazer-se escritora, Carolina Maria de Jesus fixa-se como um discurso da infâmia, pois, mesmo tendo apenas dois anos de formação escolar, sua escritura subverte a não aceitação dos círculos artísticos que a repeliam ou negligenciavam- na. Desse ponto, considero-a como uma ―existência clarão‖, cujo discurso será averiguado neste trabalho, justamente quando de seus embates com o poder. Sobre as condições da autora, sabe-se que:

Carolina Maria de Jesus foi uma figura ímpar. Viveu sozinha, com três filhos – um de cada pai – em uma favela da cidade de São Paulo, desde 1947. Sua trajetória, até sua morte na década de 70, foi incomum e perturbadora (LEVINE, 1994, p. 17).

A trajetória de Carolina Maria de Jesus configura-se nesses trâmites, já que, considerando o inventário de suas realizações, muito de sua existência foi forjada no embate com as inúmeras relações de poder que a circundava. Uma dessas relações é a que se constitui na questão de sua formação escolar, como é possível verificar na forma como se deu o seu processo de alfabetização, de acordo com exemplo a seguir:

Ela (a professora) percebendo que eu não me interessava pelos estudos desenhou no quadro negro um homem com um tridente nas mãos que transpassava uma criança e disse-me: — Dona Carolina, este homem é o inspetor. A criança que não aprende a ler até o fim do ano ele espeta com um garfo. [...] Aquele desenho impressionou-me profundamente. Eu olhava o desenho, e olhava o livro. (JESUS, 1986, p. 125).

O argumento que remete à sua formação escolar – ―estes dois anos mal cumpridos constituíram toda a sua escolaridade formal‖ (FERNANDEZ, 2015, p. 155) –, ou seja, apenas dois anos, não impossibilitou que Carolina Maria de Jesus despertasse para assuntos de seu interesse, que se encontravam nos livros e que, em muitos episódios, abrandavam sua existência peregrina:

2 de maio de 1958

Eu não sou indolente. Há tempo que eu pretendia fazer um diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perda de tempo. [...] Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas com mais atenção. Quero enviar um sorriso amável às crianças e aos operários. (JESUS, 1960, p. 23).

Os relatos de Carolina estão balizados pela condição de como ela se percebe na qualidade de escritora. Tomando como referência a figura de si e vivendo sob o estigma de ser

catadora e moradora de favela, a relação que exerce com a escritura de seus textos reflete a situação de miserabilidade em que vive, expressando, também, uma profunda incompreensão do mundo que a cerca:

28 de maio

A vida é igual um livro. Só depois de termos lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como nossa vida transcorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (JESUS, 1960, p. 155).

Nessa passagem, a extensão do ato de escrever dialoga com a própria condição existencial da escritora, pois (vida = livro). A construção de seu universo narrado é condicionada pela decorrência dos dias vivenciados na favela, juntamente com as páginas lidas de um livro. Nessa trajetória, seu discurso ainda revela a condição social ligada à questão da cor da pele e do seu estereótipo, como no caso de (pele = preta), (lugar onde moro = habitat = preto). O fato de ser negra e pobre inviabiliza os acessos a uma vida digna e à obtenção de um convívio social que a abrigue e que a absorva.

Nesse caso, penso que sua narrativa expõe uma parte mais noturna e mais cotidiana da existência, pois seus relatos revelam que os percursos por onde trafega e as relações que se estabelecem entre ela e o sistema (poder) são sempre voltados para a inviabilização de sua existência, como se pode observar nos exemplos a seguir: ―Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer‖ (JESUS, 1960, p. 33); ―De quatro em quatro anos se muda os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários‖ (JESUS, 1960, p. 35); ―Os favelados aos poucos estão se convencendo que para viver precisam imitar os corvos‖ (JESUS, 1960, p. 36); ―Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado‖ (JESUS, 1960, p. 36).

Acredito que o discurso de Carolina Maria de Jesus, de acordo com os exemplos citados acima, revela o instante em que sua existência impacta-se com as instâncias de poder. O fato de alimentar-se de lixo e de perder a credibilidade nos representantes políticos, a condição dos favelados sendo comparados a corvos e o clamor que ressoa a partir da sua compreensão de vida esbarram na força que os poderes públicos projetam sobre ela e sobre os seus. Pressinto que é nesse momento que o seu discurso sinaliza a marca indelével deixada pelo poder. Assim, verifico essa formulação como um rastro, como um murmúrio contundente de um tempo específico, mas que se insurge para que não perca a sua importância.

Cabe, portanto, buscar entender a irradiação desse discurso que se sobressai do âmago das relações sociais e que se apresenta prestes a ser apagado a qualquer momento, pois se revela, em um breve instante, em que um ―clarão‖ possa torná-lo possível. Fora as conjecturas, que giram em torno das relações de poder, acredito que esse discurso aponta para uma existência nômade, que não deprecia a beleza de quem pronuncia essa enunciação, como se pode observar no exemplo: ―A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido‖ (JESUS, 1960, p. 27).

Trazer o ruído que Carolina Maria de Jesus ressoa permite que sua breve existência sirva de anteparo para que novas formulações, nos campos da ideologia e da cultura nacional, sejam compreendidas, tomando-se novas categorias de apreciação que não tenham o intuito de apagá-la ou negligenciar a sua relevância, nem como escritora, nem como ser humano transeunte que efetua diversas trocas com o intuito de ser minimamente percebida.

O ―clarão‖ do discurso de Carolina cintila a ponto de buscarem-se justificativas para se agarrar essa existência reveladora, que não se cansa de persistir frente aos poderes instituídos, buscando superar tantas adversidades como as que envolvem os impasses sociais e políticos. Além disso, essa chama discursiva anima uma reflexão de como se dão os procedimentos de validação de um discurso que se encontra fora dos desígnios de um poder oficial que despreza outras enunciações.