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3.8 DOS ESPAÇOS DIGRESSIVOS

3.8.1 Dos espaços da escritura de si

Foucault, no texto A escrita de si (1992), deteve-se na análise de textos anteriores ao cristianismo, em que autores como Sêneca, Plutarco e Marco Aurélio focalizam a importância do papel da escrita quando esta aponta para si. Nesse exame, o autor situa que, para o bem viver na vida ascética64, essa escrita funcionaria como um ato de purificação da própria alma:

Que cada um de nós note e escreva as ações e os movimentos da nossa alma, como para no-los dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso. (FOUCAULT, 1992, p. 129).

63 Até hoje, o fio de Ariadne é constantemente citado nos âmbitos da filosofia, da ciência, dos mitos e da

espiritualidade, entre outras esferas que reivindicam seu significado metafórico. Vinculado ao símbolo do labirinto, ele é constantemente visto como a imagem com a qual se tece a teia que guia o Homem na sua jornada interior e ajuda-o a desenredar-se do caminho labiríntico que percorre em sua busca do autoconhecimento (VECCHIA, 2009).

64 Exercício prático que leva à efetiva realização da virtude. Esforço heroico de vontade que impomos a nós

Para Foucault (1992), a vida harmoniosa dos indivíduos, dentro desse contexto, passava pelo fato de que, ao escrever-se sobre si, toda a comunidade comungaria do conhecimento dos atos da pessoa que escreve. Assim, o constrangimento de quem escreve regularia o ser de um possível pecado. Já o contraponto dessa escrita, sugerindo um efeito de complementaridade, seria o da anacorese65. Ele declara que ―o fato de se obrigar a escrever desempenha papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e a vergonha‖ (FOUCAULT, 1992, p. 129). Assim, faz a seguinte analogia: ―Aquilo que os outros são para o asceta (indivíduo que revela sua escrita na busca do bem em uma comunidade), sê-lo-á o caderno de notas para o solitário‖ (FOUCAULT, 1992, p. 129).

Nesse sentido, observo que a ênfase dada a esses procedimentos que Foucault (1992) utiliza, na avaliação de textos dessa determinada época, serve para valorar a escrita de si mesmo. Acredita-se que ela desempenharia um princípio de purificação experimentada pelo indivíduo que escreve sobre si, mesmo que, por trás desse intuito, perceba-se o papel regulador da sociedade em que o texto esteja veiculado. Já em seu contraponto, quando o indivíduo prefere escrever para si, sem demonstrar a outrem, exercerá a escrita na ordem dos movimentos internos da alma:

[...] a escrita aparece regularmente associada à ―meditação‖, a esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reativa o que ele sabe, se faz presente um princípio, uma regra, ou um exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se prepara para enfrentar o real. (FOUCAULT, 1992, p. 130).

A partir do campo de análise de Foucault (1992) sobre a escrita de si, termo no qual recupera a intenção de caracterizar os discursos que possuem um traço de expiação, como no caso de Vita Antonii, de Atanásio (296-373 d.C.), o autor avalia a conotação desses discursos no contexto social a que se referem.

Acredito que esses pressupostos relativizados por ele permitem observar ―o papel da escrita na cultura filosófica de si na época imediatamente anterior ao cristianismo‖ (FOUCAULT, 1992, p. 130). Nessa esteira de compreensão, julgo que a escritura sobre si revela formulações discursivas altamente relevantes para o entendimento de determinados contextos.

Neste trabalho de investigação, acredito que muito da escritura de Carolina Maria de Jesus passa pela escrita de si, pois, em seu caso específico, parte-se da compilação de sua narrativa em forma de cadernos, de um conjunto de textos recolhidos, datados, organizados

em forma de diário – designado como Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960. Nessas formulações discursivas, há muito da escrita de si, considerando a análise prevista Foucault (1992).

Em Quarto de Despejo (1960), por exemplo, há uma relação singular que Carolina executa com a escrita. Ao mesmo tempo em que revela sobre si, expõe um universo que não possibilita a interação do indivíduo com o meio em que vive, negando, em princípio, o intuito da vida ascética apontada por Foucault (1992). Vista a partir de sua escritura, Carolina impõe- se em um discurso que pretende uma interação, mesmo que esta lhe pareça negada.

A partir dos conceitos de Foucault (1992) a respeito de como a escrita de si exerce uma função de purificação, de meditação, como revelou na análise de textos da cultura greco- romana, busco relacionar esses postulados à obra de Carolina, Quarto de Despejo (1960):

2 de maio de 1958

Eu não sou indolente. Há tempo que eu pretendia fazer um diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perda de tempo. [...] Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas com mais atenção. Quero enviar um sorriso amável às crianças e aos operários. (JESUS, 1960, p. 23).

Nesse caso, o discurso observado pode ser entendido como uma tentativa de firmar a sua individualidade, sua questão existencial na dimensão da aceitabilidade. Assim, verifico a partir de suas escrituras reveladoras sobre si que dialoga com a escrita desenvolvida na vida ―ascética‖ e a escrita desenvolvida na anacorese, demarcadas por Foucault (1992). Carolina trafega por esses dois caminhos, ora buscando purificar-se, aproximando-se do modelo ―ascético‖, ora buscando resguardar-se, quando trata de sua escritura de maneira mais intimista, preparando-a para ser revelada a posteriori.

No momento em que Carolina quer enviar um sorriso amável para as crianças e os operários, constato que é exercida a prática máxima da vida ―ascética‖, na qual o indivíduo deve compartilhar de suas escrituras com o intuito de democratizar aquilo que escreve. No caso de Carolina e de seu contexto, os escritos querem ser ouvidos, tanto pelos poderes públicos quanto pelos próprios moradores da favela do Canindé, embrutecidos pelo trabalho ou pela falta dele.

O seu discurso, da mesma forma, volta-se para o intimismo: ―Há tempos eu pretendia escrever um diário […]. Eu fiz uma reforma em mim‖ (JESUS, 1960, p. 23). Aqui, examino a prática da ―anacorese‖, quando o indivíduo volta-se para si, guardando os seus escritos, transformando-os em apaziguamento da solidão, elevando a escritura ao plano do companheirismo, do que vai ser dito após ampla reflexão.

Portanto, a escrita de si, em Quarto de Despejo (1960), passa pela descrição do contexto em que Carolina vive, ora escrevendo com o intuito de ser lida, ora escrevendo como forma de encontrar alento. Esse exercício explorado por ela remete àquilo que Foucault delimita como ―poder de reflexão sobre os fatos, de forma que ao escrever-se sobre eles se obtenha maior aptidão para lidar com o real‖ (FOUCAULT, 1992, p. 130).