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Um escritor não é um homem escritor, é um homem político, um homem máquina, e também é um homem experimental (que, deste modo, deixa de ser homem para devir macaco, ou coleóptero, cão, rato, devir animal, devir inumano, porque, na verdade, é pela voz, é pelo som, é através de um estilo que se devém animal, e seguramente, à força de sobriedade). (Gilles Deleuze e Félix Guattari)

No início do século passado, os impasses filosóficos de um mundo que se encontrava à beira de uma guerra mundial, prestes a eclodir, reverberaram-se, irremediavelmente, para o mundo das artes. Muitos desses embaraços podem ser lidos e/ou representados em forma de produções literárias: é o caso da obra de Franz Kafka, que ganhou notoriedade por registrar um afastamento das produções reverenciadas no primeiro quartel do século passado, na Europa.

O aspecto sui generis da literatura produzida por Kafka pode ser entendido à luz das discussões filosóficas, quando Gilles Deleuze e Félix Guattari (2003) debruçaram-se sobre a obra do autor. Os filósofos, ao perceberem a heterogeneidade que a produção de Kafka suscitou naquele determinado contexto, instituíram a categorização de literatura menor, assim como fizeram para outros autores, como no caso de James Joyce e de Samuel Beckett.

Gilles Deleuze e Félix Guattari (2003), especificamente no capítulo ―O que é uma literatura menor?‖, consideram que a heterogeneidade de Kafka tinha como principal problemática a questão da língua em que se manifesta a obra desse autor. Kafka nasceu em Praga, cidade que pertencia, na época, à monarquia austro-húngara, mas apresentava-se como um escritor tcheco em língua alemã.

A partir dessa tríplice formação cultural de Kafka, os filósofos julgam que narrativas como as do autor assumem a caracterização da literatura dita menor, pois são afetadas por um forte coeficiente de desterritorialização, já que não era possível que judeus de Praga escrevessem de outra maneira, senão seguindo os preceitos da língua alemã. Segundo Deleuze e Guattari (2003): ―Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38). Desse impasse, os autores afirmam que a questão da língua seria a primeira característica para a existência de uma literatura menor. A seguir, como segunda característica, eles pontuam que, nesse tipo de literatura, ―[...] tudo se faz político‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38). Segundo eles, nas grandes literaturas, a questão individual (familiar, conjugal etc.) tende a juntar-se a outras questões em que o meio social serve de ambiente e de fundo.

A literatura menor diferencia-se das grandes literaturas pelo foco dado à questão individual. Nela, todas as questões individuais estão ligadas à política. ―A questão individual, ampliada ao microscópio, torna-se muito necessária, indispensável, porque outra história se agita no seu interior‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38).

Como terceira característica da literatura menor, os autores postulam que tudo assume um valor coletivo. Eles observam que ―[...] as condições não são dadas numa enunciação individuada pertencente a este ou aquele ‗mestre‘, separável da enunciação coletiva‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 40). Portanto, o que o escritor diz ou faz sozinho já constitui uma ação comum, mesmo se os outros não estiverem de acordo. Essa ação é, portanto, necessariamente política.

Assim, a literatura encontrar-se-ia carregada do papel e da função de enunciação coletiva, posicionando-se como um procedimento revolucionário. De acordo com Deleuze e

Guattari (2003), ―[...] se o escritor está à margem ou à distância da sua frágil comunidade, a situação coloca-o mais à medida de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 40).

No caso da literatura expressa por Kafka, eles reconhecem que o autor teria renunciado ao princípio do narrador, fazendo com que ele, na condição de escritor, desejasse a enunciação coletiva. Os enunciados, portanto, tenderiam à expressão de uma coletividade. Dessa forma, em Kafka:

Não há sujeito, só há agenciamentos coletivos de enunciação – e a literatura exprime esses agenciamentos, nas condições em que não são considerados exteriormente, e onde eles existem apenas como forças diabólicas por vir ou como forças revolucionárias por construir. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 41).

Nessa esteira de análise da obra kafkaniana, sugerida por Deleuze e Guattari (2003), as três categorias, que classificam a literatura como menor, são, resumidamente: a desterritorialização da língua, a ligação do individual com o imediato político e o agenciamento coletivo de enunciação. Portanto, a literatura menor é a que se expressa em condições revolucionárias, pois se insere no ―seio daquela que se chama grande (ou estabelecida)‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 42).

A condição menor da escrita de Kafka projeta-se como uma possibilidade de análise, já que carrega um instigante modelo de expressão literária, em que há a manifestação de determinada comunidade linguística dentro de outra maior instituída, e, de certa forma, uma procura retroalimentar-se da outra. A situação de Kafka, em seu contexto de produção, é designada da seguinte forma:

É um dos raros escritores judeus de Praga a compreender e a falar checo [...]. O alemão tem precisamente o duplo papel de língua veicular e cultural com Goethe no horizonte. (Kafka também sabe francês, italiano e, com certeza, um pouco de inglês). O hebreu aprendê-lo-á mais tarde. O que é complicado é a relação de Kafka com o iídiche: considera-o mais um movimento de desterritorialização nômade que trabalha o alemão do que uma espécie de territorialidade linguística para os judeus. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 53).

De acordo com Deleuze e Guattari (2003), Kafka é um autor que utiliza um polilinguismo, mas empreende uma busca por encontrar ―pontos de não-cultura e de subdesenvolvimento, zonas linguísticas de terceiro mundo por onde uma língua escapa, por onde um animal se enxerta, ou um agenciamento se conecta‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 56).