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DIÁRIO DE BITITA E A HISTÓRIA DAS DESCONTINUIDADES

O interesse pela análise da obra da escritora Carolina Maria de Jesus está no fato de presumir que sua enunciação tenta burlar esse poder que a oprime e que a denega para outras fronteiras de percepção. Para tanto, partindo do pressuposto de que, na obra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, oportunizou-se o ponto de vista do alpendre23, será observado, na obra Diário de Bitita (1986), o ponto de vista do negro, a fim de compor um novo imaginário da cultura brasileira, no qual se permita incluir essa existência como partícipe da história de formação nacional.

No que se refere a essa discussão, comungo com a ideia de Michel Foucault, apresentada em Arqueologia do saber (1995), quando questiona o fazer científico da História que, durante muito tempo, esteve preso à continuidade das narrativas tradicionais, cujos procedimentos eram observados e fixados a partir de:

[...] modelos de crescimento econômico, análise quantitativa de fluxos e trocas, perfis dos desenvolvimentos e das regressões demográficas, estudos de clima e de suas oscilações, identificações de suas constantes sociológicas [...]. (FOUCAULT, 1995, p. 3).

A perspectiva desse autor passa pela tentativa de avançar para onde os níveis de análise multiplicam-se, a fim de obter escavações mais profundas. Segundo Foucault (1995, p.

22 Aqui, o uso do termo refere-se à designação de Pierre Bourdieu: ―[...] O poder simbólico é um poder de

construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) [...]‖ (BOURDIEU, 2011, p. 9, grifo do autor).

23 A expressão é de Roberto Ventura, referindo-se à perspectiva de Gilberto Freyre sobre o canavial: ―Com um pé

na cozinha e um olhar anguloso sobre os prazeres afro-brasileiros, Freyre via a senzala do ponto de vista da casa- grande, mirou o canavial da perspectiva do alpendre‖ (VENTURA, 2001).

3), ―por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar‖. Nesse ínterim, verifico ser plausível conceber o discurso de Carolina Maria de Jesus como um novo termo de visada, já que considero que instaura um novo ponto de vista, o que determino como ―o ponto de vista da senzala‖, lugar de onde se projeta a enunciação do negro. Pondero que seu discurso, pinçado a partir de escavações mais profundas, reflete sobre essas histórias ―quase imóveis ao olhar‖, como defende Foucault.

Além desse princípio, verifico que o uso dessa nova projeção, em termos de análise historiográfica, volta-se para a descontinuidade, para o recorte e o limite, para a ruptura, para a mutação e a transformação. Na história das continuidades, por muito tempo, possuía-se uma imagem de uma memória milenar e coletiva, que se servia de documentos e materiais, em que se reencontrava o frescor das lembranças em ―livros, textos, narrações, registros, atas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes, etc.‖ (FOUCAULT, 1995, p. 8).

A história das continuidades esteve embasada em uma perspectiva linear, ao passo que a noção da história das descontinuidades faz uso dos: [...] acontecimentos dispersos, decisões, acidentes, iniciativas, descobertas – o que deveria ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. (FOUCAULT, 1995, p. 9- 10).

Para este estudo, penso que caberia a perspectiva de uma história que não se utilizasse de um método de escansão, mas que percebesse a história como um devir, restituindo ao homem tudo o que lhe escapa.

A partir do princípio de uma história das descontinuidades, tento explorar, em Carolina Maria de Jesus, o resgate de seu discurso, que se expande em uma série de fatos dispersos e que, se fossem analisados pela perspectiva da história linear, correriam o risco de serem apagados. Cabe, portanto, verificar onde se articula esse deslocamento ao qual o discurso de Carolina Maria de Jesus tenha sido vítima, em que tento sondar esse espaço de dispersão.

Nesse sentido, pressinto que sua obra aponta para diversos níveis de análise, como é o caso da perspectiva da identidade racial, que é bastante explorada, pois se dá tendo como base a enunciação de uma mulher negra, que se mantinha completamente afastada dos centros legitimadores de produção literária da época.

Acredito que, em Diário de Bitita (1986), pode-se verificar, por outras vias de acesso, o lugar que o negro alcança em uma sociedade que se anunciava como devota dos princípios da democracia racial, mas que estava condicionada, unicamente, pela ótica da ideologia do

branco como civilizador. A obra irrompe-se como uma fissura, uma brecha, uma ruptura por onde presumo que se instaure a perspectiva de um ―existir do negro‖, considerando-o como sujeito de sua enunciação.

Em Bitita, examino que a narradora faz várias digressões que remetem ao tempo da escravidão no Brasil, denunciando marcas de uma visão estamental do mundo, em que os espaços oportunizados ao povo negro são, fortemente, influenciados por um modelo escravocrata, o qual imprimia suas marcas desde um longo tempo. Afirmo que, na obra, esse discurso concentra-se no período da infância da escritora, mas também remete à reminiscências, mais ancestrais, em que se evidenciam relações de parentesco, de convívio em regime de gleba e de relações que se estendem aos níveis social, político, econômico e ideológico.

Iniciando dessa fronteira, entendo a enunciação concretizada em Diário de Bitita (1986) como uma possibilidade de conhecer o contexto de transição que abrange o período entre a Abolição e a Proclamação da República e as implicações decorridas desse contexto. Assim, apuro que a abordagem pretendida surge a partir de um horizonte em que os papéis sociais assumirão novas dimensões, pois serão ressignificados e notabilizados por se manterem longe de uma aparência linear.

Nesse processo, compreendo que, das relações amparadas nesse contexto, fixa-se um mapeamento arqueológico das representações sociais entre brancos e negros. Considerando que o tempo da narrativa seja o tempo da infância de Carolina Maria de Jesus, tendo ela, supostamente24, nascido por volta de 1914, verifico que suas descrições dão conta da atmosfera excludente do povo negro25, tanto na esfera política quanto nas esferas econômica e social, demarcadas nos primórdios do século passado, período em que o Estado nacional buscava alinhar-se a um pensamento republicano.

Acredito que, em Diário de Bitita (1986), a enunciação da escritora denuncia registros que encampam a vida e os costumes dessa comunidade negra, alocada em uma cidade no

24 Há diversas contendas no que se refere à data específica do nascimento de Carolina Maria de Jesus. Há quem

afirme que ela tenha nascido entre os anos de 1913 e 1921, como citam Robert Levine e José Carlos Meihy, em

Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus (1994). No entanto, Raffaella Fernandez (2015) aponta

que a história de seu nascimento é um tanto fragmentada e desconexa, assim como sua escritura. Ela relata que a data que mais se aproxima de seu nascimento fica por volta de 1914, o que pode ser lido por meio de folhas manuscritas que compõem uma versão reduzida de seu Diário de Bitita (FERNANDEZ, 2015, p. 193).

25 Nesse caso, acredito que a atmosfera de exclusão do povo negro pode ser lida como uma manifestação do

poder simbólico, assim como conjecturou Pierre Bourdieu: ―O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for ―reconhecido‖, quer dizer, ignorado como arbítrio‖ (BOURDIEU, 2011, p. 14, grifo do autor).

interior do Brasil, de onde Carolina Maria de Jesus emerge. Avalio que, por meio desse discurso, pode-se vislumbrar a concepção que o negro possui de si e das relações possíveis que ele pode exercer nesse local circunscrito ao pequeno universo de Sacramento, em Minas Gerais, bem como essas relações podem estender-se a essa existência, dinamizada pela enunciação do negro, projetando uma reconfiguração dessas existências.

Nessa abordagem, em que se evidencia a enunciação do negro, pode-se vislumbrar a perspectiva de um existir específico, bem como é possível rascunhar como se organiza um ideário do pensamento negro no Brasil, negligenciado por tanto tempo nas esferas críticas e ideológicas que constituíram nossa ideia de cultura. Avalio que é a partir dessa descontinuidade que emerge uma brecha de onde tento promover a perspectiva de um ―existir do negro‖, evidenciado na obra de Carolina Maria de Jesus:

A maioria dos negros eram analfabetos. Já haviam perdido a fé em seus predominadores e em si próprios. O tráfico de negros iniciou-se no ano de 1515. Terminou no ano de 1888. Os negros foram escravizados durante 400 anos. Quando um negro envelhecia ia pedir esmola. Pedia esmola no campo. Os que pediam esmola na cidade eram só os mendigos oficilizados (JESUS, 1986, p. 27).

No trecho transcrito acima, a situação de um existir negro é dimensionada pelas diversas relações que se sobressaem: ―O tráfico de negros iniciou-se no ano de 1515. Terminou no ano de 1888‖ (JESUS, 1986, p. 27). Penso que, aqui, manifesta-se ―esse poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)‖ (BOURDIEU, 2011, p. 14).

O discurso de Carolina Maria de Jesus reconhece o quanto ela está afastada da legitimidade de sua cidadania, pois permanecem, tanto ela como o grupo a que pertence em uma situação de escravismo, não podendo ser incluídos em uma perspectiva mais abrangente, como prenuncia a democracia racial.

O fato de a maioria dos negros ser analfabeta, em confluência com a situação de pedirem esmolas, revela que há uma perspectiva desses indivíduos em relação ao mundo que pertencem, bem como há a ideia do ―existir negro‖, quando o sujeito da enunciação revela um novo posicionamento, em que se pode observar o ―outro lado da moeda‖, de um governo que financiou o fim da Abolição, porém abandonou uma grande parte dessa população e a deixou aos cuidados da própria sorte. No trecho em análise, cabe ressaltar que o poder exercido pelo Estado estende-se para além do poder simbólico, pois se manifesta de fato, impossibilitando o acesso dos negros ao projeto democrático que se pretendia instalar no país, como bem

denuncia o discurso de Carolina Maria de Jesus: ―Os negros foram escravizados durante 400 anos‖ (JESUS, 1986, p. 27).

A perspectiva de um ―existir negro‖ somente torna-se possível, neste estudo, visto que se fez referência à história das descontinuidades, defendida por Michel Foucault (1995). Nesse sentido, cabe uma discussão sobre o modo como Carolina Maria de Jesus é apreendida, em uma sociedade que negligenciava a sua existência.