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CAPÍTULO 2 – PATRIMÔNIO CULTURAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

2.1 PATRIMÔNIO CULTURAL

2.1.2 A institucionalização do processo de tombamento

O pensamento de preservação estruturado no Brasil mesclou-se e muitas vezes confundiu-se com os ideais de uma parte da intelectualidade, predominante nos anos

9 Nesse documento, aborda aspectos ainda hoje pertinentes, como a questão do uso dos

monumentos (“...me lastimo muito que se haja de entregar ao uso violento e pouco cuidadoso dos soldados[...] ), da carga documental adquirida pelo edifício (“[...] se arruinará também uma memória que mudamente estava recordando à posteridade as ilustres e famosas ações que obraram os Portugueses na Restauração dessa Capitânia[...] ), da importância didática da preservação ([...] são livros que falam, sem que seja necessário lê-los[...] ), a relação custo-benefício ([...] mas por nós pouparmos a despesa de dez ou doze mil cruzados é cousa indigna que se saiba que, por um preço tão vil nos exponhamos a que se sepulte, na ruína dessas quatro paredes, a glória de toda uma Nação.”). E finalmente, evoca o problema da descaracterização dos monumentos (“[...] será mais útil fabricar-se quartéis novos do que bulir no Palácio das Duas Torres, porque tenho por certo que, por mais que se trabalhe em atalhar despesas, em polir a obra, sempre ficará uma colcha de retalhos”). Segundo documento elaborado por José La Pastina Filho. Arquiteto responsável pelo Escritório Técnico do SPHAN no Paraná.

10 Schwarcz (1993, p.137).

11 Em torno deles estava o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional (originada da Real Biblioteca). 12 O IHGB, nas mãos de uma forte oligarquia local, se autorepresentará enquanto uma fala oficial.

Período Histórico Denominação ou Fase Cenário e Ações Meados do Século XVIII Manutenção de monumentos

como troféus de Conquista

Tentativa de não deixar transformar as edificações civis em quartéis militares. Carta de 1742.9

Século XIX Construção da Memória Nacional oficial, por meio da guarda de documentos

“Coletar para bem guardar e guardar para bem servir”10

Criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e Arquivo Nacional (NA) em 183811

˗ Negação dos valores culturais do passado.

˗ Cultura oficial: padrões europeus

˗ Na configuração urbana a

presença o Neo Clássico, seja na

arquitetura civil, como na

religiosa.

˗ Reforma modernizadora em

edifícios coloniais

˗ Recolhimento dos documentos do Brasil Colônia e organizados pelo poder imperial.12

Século XX – de 1920 a 1937

Ideia de construção e preservaç ão da Memória Nacional

˗ Ante projetos de lei em defesa bens arqueológicos e de criação

Inspetoria dos Monumentos

Históricos. Sem sucesso. ˗ Criação Inspetorias Estaduais

˗ Ouro Preto – Monumento

Nacional (1933)

˗ Criação do Museu Histórico

Nacional e a Inspetoria de

Monumentos Nacionais.

Antecedentes do Serviço do

Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional (SPHAN) em 1934.

1920 e 1930, apresentando como um dos objetivos do movimento modernista a definição de uma identidade para a Nação. Entretanto, este movimento iniciado em 1922,

[...] ainda que marcado por nossa tradicional visão esteticista da cultura, foi um grito de alerta para a necessidade de afirmação de nossa identidade nacional. O negro real passou a substituir o negro idealizado, o índio real, o silvícola criado pelos indigenistas. O interesse pelos problemas reais da região e do País passa ao primeiro plano das preocupações dos intelectuais de prestígio. E se fez mais lúcida a consciência de que havíamos vivido de costas para nossa herança cultural (FURTADO, 1987, p.57).

Na origem do pensamento de preservação encontram-se as ideias modernistas13, principalmente representadas por Mário de Andrade, que localizava nas

manifestações culturais do período barroco e nas manifestações folclóricas as forças que seriam capazes de manter um Brasil autêntico, enfrentando o universo moderno.

Valorizar tais tradições era como revelar a cultura brasileira e 'conscientizar' o povo de sua 'civilização' específica, sua distinção étnica, sua arte, sua história. Tratava-se de moldar a cultura brasileira a partir de olhares particulares, seletivos, de objetos portadores da capacidade simbólic a de promover a representação nacional e, ao mesmo tempo, de servir de referência para o desenvolvimento de uma estética na qual se refletisse aquilo que uma elite intelectual entendia como retrato síntese do 'verdadeiro' Brasil (RODRIGUE S , 1996, p.195).

A pedido de Gustavo Capanema, responsável pelo Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1936 Mário de Andrade14 elaborou o anteprojeto de criação de um

Serviço Nacional de Patrimônio que tinha por base a ideia de patrimônio, no qual estavam englobados objetos da arte pura e aplicada15, arte popular e erudita, paisagens

13 A vontade de concretizar e fortalecer no Brasil uma arte moderna, que eliminasse os costumes, gostos e cópias europeias e assim valorizando o local, o nacional caracterizou os ideais modernistas. Em suas três fases, agregou diversos intelectuais e artistas, onde no campo do patrimônio se destacam Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

14 A criação do Ministério da Educação em 1930, marca a entrada em cena do modernista paulista Mário Raul de Moraes Andrade, nos negócios do Estado. A convite de Francisco Campos, primeiro titular daquela pasta, é convidado a integrar uma comissão que se responsabilizaria pela reforma do ensino de música. É dele a famosa frase, contida no livro História da Música “Se você não tiver talento, faça música brasileira; se você tiver algum talento, faça música brasileira; se você for um gênio, faça música brasileira”. Em 1935, Mário de Andrade se envolve intensamente na organizaç ão do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Suas aventuras no Departamento ficaram conhecidas: cria parques infantis e a discoteca municipal. Envia ao Nordeste a primeira missão de pesquisa folclórica, contrata o casal Lévi-Strauss para ministrar curso de etnologia em São Paulo, cria a Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo e em 1937, a convite do ministro Capanema, projeta a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, SPAN, depois SPHAN (BOMENY,1995).

15 Arte pura é uma denominação popular para as manifestações regionais de cada povo. Sem influência do estudo acadêmico ou técnico, que faz do belo um fim em si próprio. Arte aplicada é aplicada em coisas específicas, possui um fim utilitário, como arquitetura, culinária, arte terapêutica.

arqueológicas, dança, música e etnografia, além de acrescentar, aquilo que chamou de ‘arte histórica’, ou seja, objetos que de alguma forma refletiam, contavam e comemoravam o Brasil e sua evolução nacional, ou seja, todo o documento histórico (papéis, artefatos, monumentos) que registrasse o passado nacional, deveriam ser conservados.

Dessa forma, monumentos que tivessem sido criados para um fim que se tornou histórico, que tivessem sido palco de fatos significativos, ou porque neles tivessem vivido figuras ilustres da nacionalidade, deveriam ser conservados ao lado de exemplares típicos das diversas escolas e estilos arquitetônicos que se refletiram no Brasil, uma vez que estes também eram portadores de qualidade histórica (RODRIGUES, 1996, p. 195).

A preocupação com os monumentos arquitetônicos seria completada com a valorização de outros objetos que poderiam ser tombados – “monumentos da arte popular” (RODRIGUES, 1996, p.195), como arquitetura funcional de casas (construções populares, caboclas, etc.), como cruzeiros, cruzes mortuárias e capelas.

O documento elaborado por Mário de Andrade (o anteprojeto de criação de um Serviço Nacional de Patrimônio), foi usado em discussões preliminares sobre a estrutura e os objetivos da instituição a ser criada.

No mesmo ano da elaboração do anteprojeto (abril 1936), o Presidente Getúlio Vargas autorizou o funcionamento, em caráter experimental, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional  SPHAN. Em outubro, o Presidente da República enviou ao Congresso projeto de lei objetivando fixar “os princípios fundamentais da proteção das coisas de valor histórico ou artístico” e traçar“ o plano de ação dos poderes públicos” na matéria do anteprojeto (SPHAN, 1987), que sinalizaria os procedimentos da preservação.

Em janeiro de 1937, a Lei nº 378 reorganizava o Ministério da Educação e Saúde Pública e oficializava a criação do SPHAN. Em novembro, ocorreu o golpe de Estado, dissolvendo o Congresso e interrompendo a tramitação do projeto de lei sobre a proteção do patrimônio. Dessa forma, Gustavo Capanema justificava junto ao governo que, apesar de a Lei no 378 ter dado estrutura definitiva, verificou-se que a ação do

Serviço Histórico e Artístico Nacional não teria a necessária eficácia se não fossem determinados os princípios fundamentais da proteção dos bens.

Esse princípio, além de traçar o plano de ação dos poderes públicos, deveria assegurar, mediante penalidades, a cooperação de todos. Para isso, seria necessário transformar o projeto que organiza a proteção do patrimônio em lei, e em 30 de

novembro foi expedido o Decreto Lei nº 25, que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. O SPHAN, agora respaldado pelo Decreto Lei nº 25/37, era uma instituição subordinada ao então Ministério da Educação e Saúde Pública, tendo à frente Gustavo Capanema, o qual convidou Rodrigo Melo Franco de Andrade, um intelectual mineiro associado aos modernistas, para dirigir o órgão recém-criado.

Efetivava-se, assim, a política pública de proteção do patrimônio, mas as ideias modernistas de valorização da cultura em suas diversidades locais, a ação dos estados e municípios foi prejudicada ou então esquecida. Passa-se a valorizar obras isoladas completamente fora da dinâmica da memória e do patrimônio.