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A instituição escolar e sua relação com a sociedade

Tendo como pressuposto que a instituição escolar está estreitamente vinculada com a sociedade a qual pertence, é preciso ter claro como esta relação acontece.

São várias as teorias que procuram explicitar como se dá esta relação, compreendendo a instituição escolar como instrumento de socialização e de integração, como instrumento a serviço da classe dominante para a reprodução do status quo, ou mesmo como instrumento de libertação e de transformação social.

Pretendo, entre diferentes propostas teóricas, destacar como referêncial para esta pesquisa as contribuições de Pierre Bourdieu e de André Petitat. São duas teorias distintas que não serão assumidas integral e concomitantemente. Meu objetivo é de apresentar ambas e, com isto, evitar o fechamento em uma única perspectiva buscando, assim, uma compreensão (a mais ampla possível) da relação escola e sociedade.

Na compreensão da relação entre escola e sociedade, não há como negar uma grande influência do Materialismo Histórico. Isto reforça a tendência em compreender a realidade sempre a partir da estrutura econômica.

A reflexão de Pierre Bourdieu, mesmo sem assumir o Materialismo Histórico, dá ênfase à força que a sociedade exerce sobre a escola. Para ele, a educação tem como função precípua a reprodução da sociedade.

Analisando a relação entre o sistema de ensino e a organização social, Bourdieu afirma que a carreira escolar do aluno é determinada por sua origem social. Diz ele:

[...] Ora, vê-se nas oportunidades de acesso ao ensino superior o resultado de uma seleção direta ou indireta que, ao longo da escolaridade, pesa com rigor desigual sobre os sujeitos das diferentes classes sociais. Um jovem da camada superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na Universidade que o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que um filho de operário, e suas chances são, ainda, duas vezes superiores àqueles de um jovem de classe média. É digno de nota o fato que as instituições de ensino mais elevadas tenham também o recrutamento mais aristocrático (BOURDIEU, 1998, p. 41).

A origem social do aluno praticamente impossibilita sua ascensão ao ensino superior, determinando, conseqüentemente, sua carreira profissional.

Contudo, a origem social não pode ser entendida como a única responsável pelo sucesso ou pelo fracasso escolar e profissional do aluno. Outro fator que deve ser considerado é o cultural.

Buscando superar a chamada “ideologia dos dons” cuja explicação corresponde a diferenciação gerada pela escola como sendo fruto dos dons naturais de cada aluno, Bourdieu mostra que a escola corporifica a cultura da classe dominante e se organiza de modo a favorecer aqueles que provêm desta classe. Assumindo como cultura socialmente reconhecida e legítima a cultura da classe dominante, a escola favorece os alunos que já a receberam em sua socialização familiar. Ignorando as diferenças culturais dos alunos a escola favorece os mais favorecidos e desfavorece os mais desfavorecidos. Segundo Bourdieu:

Com efeito, para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura.

A igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida, ou, melhor dizendo, exigida (BOURDIEU, op. cit., p. 53).

Para explicar esta relação entre a cultura transmitida e a cultura exigida, Bourdieu estabelece a noção de habitus, isto é, um sistema de disposições duráveis socialmente constituído que é resultado de antecipações práticas que repousam sobre experiências anteriormente adquiridas. Este sistema de disposições duráveis é apropriado pelos indivíduos por meio do processo de socialização por eles vivenciado, em um primeiro momento no meio familiar e adquirido pelas experiências reproduzidas neste contexto. O habitus aí formado passará a constituir a base para experiências posteriores, como as experiências escolares.

A escola exige do aluno proveniente da classe dominante uma cultura que seu habitus já produziu, enquanto que o aluno vindo da classe dominada terá que esforçar-se para alcançar esta cultura como, por exemplo, a utilização da língua, o gosto pela arte, o conhecimento da história. Assim:

A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crianças originárias de um meio pequeno burguês (ou, a fortioti, camponês e operário) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto, o talento, em síntese, essas atitudes e

aptidões que só parecem naturais e naturalmente exigíveis dos membros da classe cultivada, porque constituem a “cultura” (no sentido empregado pelos etnólogos) dessa classe. Não recebendo de suas famílias nada que lhes possa servir em sua atividade escolar, a não ser uma espécie de boa vontade cultural vazia, os filhos das classes médias são forçados a tudo esperar e a tudo receber da escola por suas condutas por demais “escolares”.

É uma cultura aristocrática e sobretudo uma relação aristocrática com essa cultura, que o sistema de ensino transmite e exige (BOURDIEU, op. cit., p. 55).

Alguns conceitos de Bourdieu alargam a compreensão desta relação entre escola e educação. São eles, principalmente, os de capital cultural e de capital social. O capital cultural, em seus três estados, incorporado, objetivado e institucionalizado6, ajuda a compreender que as diferenças sociais não são causadas pela escola, mas reproduzida por ela, na medida em que ela assume como conteúdo um capital cultural que somente a classe dominante possui. Outro conceito relevante de Bourdieu é o de capital social7, mostrando que a escola não é a única responsável pelo êxito social do aluno, devendo-se considerar todo círculo de relações em que ele está envolvido e que possibilita-lhe, juntamente com o capital cultural que possui, conquistar o prestígio social.

Contudo, tenho claro que esta posição teórica de Bourdieu, embora elucidativa e crítica, confere pêso menor ao aspecto criativo e produtivo da escola. Para perceber a força que a escola possui na construção de novas realidades é preciso analisar a relação entre a escola e a sociedade por outro ângulo.

Desta forma, encontrei outra compreensão desta relação na teoria de André Petitat. Em seu texto “Entre História e Sociologia: uma perspectiva construtivista aplicada à emergência

6 No estado incorporado a acumulação de capital cultural pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação

que demanda um certo tempo e deve ser investido pessoalmente pelo investidor. Este capital adquirido passa a fazer parte da pessoa e, para ocorrer sua incorporação, é necessário que na família existam práticas culturais. Ou seja, a família deve possuir disposições para consumir bens culturais e incitar seus descendentes a essas práticas. Estes bens culturais são representados pela leitura, freqüência a teatros, museus, cinemas etc. No estado objetivado encontra-se uma relação com bens culturais tais como: livros, pinturas, computadores, internet etc. Esta forma de capital é transmitida, em sua materialidade, tanto quanto o capital econômico. Sua apropriação dependerá do capital econômico e do capital cultural do agente e da família, além de que, para sua utilização será necessário a apropriação do capital cultural no estado incorporado. No estado institucionalizado confere a seu portador certos privilégios, isto é, busca garantir propriedades originais. Observa-se esta forma de capital nos títulos e certificados escolares, o que busca assegurar uma certa autonomia e independência ao portador do título.

7 O conceito de capital social surgiu como único meio de designar o fundamento de efeitos sociais sobre os

agentes. Estes efeitos também são conhecidos como “relações” nas quais os agentes se reconhecem como pares e são vinculados a determinados grupos como: família, amigos, clube, festas etc., ligados a uma rede durável de relações. Estas relações são irredutíveis às relações objetivas de proximidade quer no espaço geográfico, quer no espaço econômico e social, pois são fundadas em trocas materiais e simbólicas que favorecem o re- conhecimento desta proximidade. O volume de capital social que um agente possui dependerá da extensão das relações que pode mobilizar e do volume do capital econômico e cultural que é de posse única. Assim, o capital social torna-se dependente do capital econômico e cultural pelo inter-relacionamento necessário em suas trocas.

dos colégios e da burguesia”, Petitat define-se como: “[...] um sócio-historiador cansado de estar ‘com um pé cá e outro lá’ e que procura uma solução adequada para ‘adensar’ o tempo dos sociólogos e para temperar o particularismo dos historiadores” (PETITAT, 1992, p. 135), propondo, para isto, uma metodologia que ele chama de “perspectivismo construtivista”.

Petitat procura dar ênfase ao papel dos atores sociais para não cair em esquemas predeterminados. A objetividade que propõe é uma objetividade feita de construções parciais abertas ao fluxo da história. A partir deste fundamento, resgata as abordagens da relação entre escola e sociedade.

Constata, Petitat, que diferentes teorias fundamentam-se sobre uma mesma compreensão: a escola enquanto reprodutora. Seja Bourdieu e Passeron, vendo a escola como local de imposição cultural; seja a visão marxista, segundo a qual a escola é um instrumento da burguesia que impede a libertação; ou a compreensão de que a escola reforça uma burocracia que arruína a criatividade e a autonomia do indivíduo ...

Todas elas, sejam de inspiração funcionalista, marxista ou weberiana, apóiam-se sobre hipóteses de reprodução, seja dos valores dominantes, da exploração e do poder. Não há dúvida de que estas teorias explicam realidades muito importantes, mas elas têm um defeito, intransponível dentro de sua própria lógica: são incapazes de incluir o dinamismo histórico. Nelas, o ensino é invariavelmente apresentado como um freio, uma força de conservação, um obstáculo à mudança (PETITAT, 1994, p. 6).

Para Petitat, as teorias de reprodução em educação são mudas diante do movimento da história. A compreensão da escola, enquanto capaz de produzir realidades sociais, é pouco defendida.

Por um lado, a escola reproduz; por outro, alimenta o movimento que abole o estado de coisas existente. A escola não serviu somente para manter a monarquia no lugar: também tornou a burguesia mais forte, ao dar-lhe um conjunto de referências culturais e científicas e de seus méritos próprios, independentes de origem e nascimento. Terão as escolas elementares de primeiras letras servido apenas para cristalizar as condições sociais? Não terão também participado de uma verdadeira mutação da civilização – a generalização da cultura escrita – que torna possível uma dissociação mais freqüente entre a cultura de origem e as culturas de destino? (PETITAT, id., ib., p. 6).

Neste sentido, como destaca Tomaz Tadeu da Silva em sua obra O que produz e o que

reproduz em educação: ensaios de sociologia da educação (1992), “[...] a escola não serve

apenas como instrumento de corpos pré-estabelecidos; historicamente, ela serviu também para construir e legitimar certos grupos sociais antes relegados”(1992, p. 68).

A perspectiva adotada por Petitat, integrando elementos históricos e sociológicos, compreende, assim, a escola em sua contribuição para a emergência das estruturas e grupos sociais.

Segundo ele:

[...] a escola deixa de ser aqui o instrumento de uma “sociedade”, de uma classe, de um “sistema”, até mesmo de uma tendência histórica para tornar-se ela mesma um agente, uma mídia necessária trazendo sua contribuição insubstituível para a gênese de certas categorias sociais (PETITAT, op. cit., p. 143).

Nesta perspectiva, a escola é compreendida como um cruzamento de atores vivos, de professores, alunos, dirigentes, políticos, enfim, de “sujeitos engajados numa autoconstrução que eles não dominam inteiramente” (PETITAT, 1992, p. 143), mas que, apesar disto, não se reduz a uma ação meramente reprodutora, e, sim, capaz de modificar seus utilizadores e influenciar a estrutura social.

Afinal, “sem dúvida a escola contribui para a reprodução da ordem social, mas ela também participa de suas transformações, às vezes intencionalmente, às vezes contra a vontade; e, às vezes, as mudanças se dão apesar da escola” (PETITAT, 1994, p. 11).

Ao apresentar estas duas teorias, tenho consciência de que são antagônicas: uma compreendendo a escola como reprodutora e outra compreendendo-a como produtora. Assim, como já destaquei, não pretendo assumir as duas teorias concomitantemente, o que seria contraditório.