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1 DÁDIVA E CUIDADO

1.4 PRÁTICAS DE CUIDADO NÃO-MÉDICAS: TENSÃO, OPOSIÇÃO OU

1.4.4 A Integralidade e as Práticas Integrativas

Pensar a integralidade em Saúde demanda, conforme Pinheiro (2010), o desenvolvimento de algumas questões fundamentais, entre as quais, destacamos:

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 Concepção do Cuidado como um valor;

 Defesa do Direito à Saúde (com atenção para o equilíbrio entre demanda, necessidade e oferta);

 Centralidade no usuário;

 Participação do usuário na escolha do tratamento;

Reconhecimento do ethos cultural de quem é cuidado e de quem cuida;

 Redes sociofamiliares como vetores de ação e transformações.

Trad identifica algumas dificuldades em colocar em prática um modelo de atenção centrada no usuário tais como o predomínio de políticas generalistas33, o etnocentrismo e universalismo moral da biomedicina e, consequentemente, o foco na doença tanto na forma de pensar a prevenção como na terapêutica. Para a autora, o intuito de reconhecimento das demandas e necessidades dos usuários só pode ser alcançado com uma abordagem compreensiva, lançando mão de “dispositivos hermenêuticos” que possam “operar na alteridade”, via através da qual se pode assegurar maior autonomia para as populações atendidas, garantindo o seu poder em fazer escolhas (TRAD, 2010, p. 32).

Ceccim defende uma noção de integralidade mais direcionada à “ampliação e desenvolvimento da dimensão cuidadora” (2010, p. 138), como forma de os profissionais de saúde compreenderem o usuário de uma maneira menos burocrática. Para o autor:

A integralidade da atenção à saúde supõe, entre outros aspectos, a ampliação e o desenvolvimento da dimensão cuidadora no trabalho dos profissionais, propondo estratégias para operacionalizar o conceito ampliado de saúde. O que se torna especialmente desejável – quanto à integralidade da atenção à saúde – é que os profissionais se tornem mais responsáveis pelos resultados das práticas de atenção, mais capazes de acolhimento aos usuários das ações e serviços de saúde, mais sensíveis àquelas dimensões do processo saúde-doença não inscritas nos âmbitos tradicionais da epidemiologia ou da terapêutica e mais implicados com projetos de vida que contribuam pela autodeterminação dos usuários em seu andar de vida (seu pertencimento às redes de invenção de vida) (CECCIM, 2010, p. 138-139).

33 Conforme Trad (2010), isto também seria decorrente de um predomínio, no Brasil, de

concepções funcionalistas e marxistas no sentido de atendimento às necessidades da Saúde, gerando problemas para abordar o sujeito em sua individualidade.

69 Também Ayres ressalta a necessidade de uma ação profissional comprometida com a vida dos indivíduos e centrada na dimensão dos cuidados e enfatiza a importância de entender que o saber se constrói através de “encontros sábios” (2009, p. 20) entre sujeitos, algo que propicie o diálogo, que favoreça o compartilhamento das decisões não sendo, portanto, possível pensar na dimensão dos cuidados sem a participação ativa dos usuários implicados no processo.

Oliveira, Koifman e Fernandez defendem que a formação comprometida com a construção do cuidado deve ser entendida como um “entre-relações das pessoas” e deve ser o resultado de “interações positivas entre usuários, profissionais e instituições”. Resumindo, para o autor, a atenção integral e a construção do cuidado devem ser traduzidos em atitudes como: “tratamento digno, respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo” (2010, p. 195).

A necessidade de assegurar o direito à saúde de acordo com o princípio da integralidade esbarra, com frequência, nas limitações do controle social e dos mecanismos jurídicos, no sentido de assegurar componentes subjetivos tais como o acolhimento, o estabelecimento de vínculo, a afetividade, a humanização no atendimento ao usuário, etc. (ASENSI; PINHEIRO, 2010). Como forma de compreender melhor a distância do modelo médico dominante de um ideal de integralidade, muitos autores utilizaram como recurso a já anunciada análise de Madel Luz acerca das racionalidades médicas.

Seguindo o pensamento de Luz, as racionalidades médicas vitalistas viabilizam uma abordagem integradora que propicia o centramento “na unidade individual do doente e suas relações com o meio” (LUZ, 1996), de forma que as intervenções se dirigem ao fortalecimento dos potenciais de cura de cada indivíduo, no sentido do seu reequilíbrio. Já a Biomedicina, dadas as suas afinidades com o processo de medicalização progressiva da sociedade e de mercantilização da medicina, apresentaria muito baixo teor de integralidade, na medida em que o foco se dirige às “técnicas, recursos, exames, fármacos que buscam prevenir, controlar e curar doenças, comportamentos, sintomas ou fatores de risco” (TESSER, 2010, p. 80). Nota-se, aí, que a participação do usuário se restringe à cessão de um corpo que será diagnosticado e medicado, não restando muito espaço para que possa compreender melhor quais as implicações de seu quadro e da terapêutica utilizada nem mesmo, sequer, tomar conhecimento de que existiriam outras formas de tratar os seus sintomas visto que esta racionalidade se coloca de tal forma dominante,

70 quase como se não fosse possível algum tipo de prática além dos limites que definem o que é científico.

Para Tesser, o baixo teor de integralidade compromete bastante o trabalho realizado na atenção ao usuário sendo mais que premente a necessidade da construção de parcerias intersetoriais, interinstitucionais, interdisciplinares e entre curadores de culturas diversas, o que significa reconhecer, valorizar e estimular a autonomia dos usuários no contexto dos cuidados que lhes são prestados (TESSER, 2010, p. 86). Assim, as terapias integrativas baseadas em uma racionalidade vitalista seriam originalmente mais voltadas para atender aos princípios da integralidade. Como resume Nogueira, esta perspectiva:

É essencialmente uma perspectiva integradora, por estar centrada tanto numa experiência de vida do paciente como na sensibilidade do terapeuta em detectar sinais de desequilíbrio nessa experiência. Caracteriza-se por estar assentada no primado da energia sobre a matéria e do doente sobre a doença. (NOGUEIRA, 2010, p. 104).

Queiroz lista algumas das mais importantes características das terapias integrativas, que justificam a sua maior adequação aos princípios da integralidade defendidos por estes autores, especialmente no que diz respeito ao centramento no sujeito (foco no doente e não na doença). São elas:

 A crença de que a doença provém principalmente de um desequilíbrio interno, ao invés de uma invasão por um agente patogênico externo;

 O caráter não intervencionista (certas manifestações sintomáticas podem ser percebidas como necessárias, por serem provenientes de causas mais profundas, que abrangem o indivíduo e seu modo de vida);

 Os períodos de saúde precários são, muitas vezes, considerados estágios naturais na interação contínua entre o indivíduo, seu meio ambiente e sua experiência de vida;

 Estar em equilíbrio dinâmico significa passar por fases temporárias de doença, nas quais se pode aprender e crescer. (apud NOGUEIRA, 2010, p. 104).

Pode-se afirmar, apoiado em Nogueira, que, para estas racionalidades vitalistas, a integralidade não é somente uma “idéia reguladora” ou um princípio ético, como se quer defender em um projeto em prol de ações integralizadoras para as práticas em Saúde. No universo das práticas integrativas, a integralidade é um pouco mais que isto: é um “alicerce fundador e organizador do saber, presente na

71 construção da diagnose e da terapêutica”; e é trabalhada, portanto, conforme Tesser, “tanto na perspectiva ética quanto na epistemológica” (2010, p. 106).

A abertura para a contribuição de outras racionalidades médicas é também consoante com a defesa da liberdade do usuário de escolher a forma como quer ser tratado. Para a implementação da PNPIC, existem ainda muitos desafios a serem enfrentados, problemas que envolvem desde os recursos destinados, passa pelas dificuldades de assegurar os espaços e materiais adequados, pelo entendimento, entre os profissionais de saúde, de uma outra racionalidade (a formação médica tradicional está orientada para a categoria doença e privilegia a objetivação e os aspectos biológicos da enfermidade) até o interesse das unidades administrativas em promover estes atendimentos, dentre outras.

Por outro lado, há alguns riscos que precisam ser considerados no processo de assimilação destas outras racionalidades. Os mesmos autores advertem para a possibilidade da redução do teor de integralidade destas práticas na medida em que elas fiquem reduzidas a uma aplicação específica no universo da prática biomédica como, por exemplo, a acupuntura se reduzir à analgesia; a homeopatia ao tratamento de alergias, etc. Desta forma, se perderia uma importante contribuição que estas outras racionalidades prestam no sentido da integralidade: a ideia de um ser total que é tratado e não apenas de um sintoma, uma doença. Outra questão a ser enfrentada é o risco de estas práticas ficarem restritas ao mercado privado – como, aliás, predomina, atualmente –, em função dos fatores listados acima, que limitam e/ou dificultam a sua implementação no sistema público de saúde e, consequentemente, a sua democratização.

Situar as terapias integrativas a partir dos acontecimentos que imprimiram diversas mudanças nas dinâmicas e contextos sociais em que se inseriram e se inserem estas práticas cumpre aqui a função de explicar a partir de quais movimentos tais práticas se firmam, na atualidade, não necessariamente como fenômenos externos ou agenciamentos isolados, mas, progressivamente, reconhecidos em suas potencialidades e presença na vida cotidiana. Embora tenhamos ressaltado o prestígio do reconhecimento institucional logrado – e isto se dá apenas para definir de que lugar se enunciam as práticas integrativas na atualidade –, o nosso estudo não está focado nas interações e/ou comparações com a medicina oficial. A importância de perceber as características essenciais das terapias integrativas nos auxilia a compreender como esta linhagem interpretativa

72 dos fenômenos saúde-doença facilitam os acontecimentos registrados em campo e como auxiliam na construção destas experiências comunitárias do cuidado.

Pautando as nossas discussões a partir destas revisões conceituais em que entrelaçamos Dádiva, Cuidado e Terapias Integrativas, buscamos responder aos questionamentos elaborados acerca das implicações entre dádiva e cuidado, bem como das características favorecedoras ou não na prática das terapias integrativas na construção do cuidado a partir de relações de reciprocidade.

Contudo, é preciso ressaltar que o relato a seguir, produzido a partir de uma intensa imersão em campo, nos colocou mais frontalmente diante de uma necessidade de coletivização ou, mais precisamente, do “fazer-com” apresentada pelos interlocutores desta pesquisa, algo que parece reacender a questão das bases comunitárias do cuidado, seja como observada em Loyola (1984), no sentido do cuidado baseado em relações familiares e de vizinhança, seja pelo aspecto emancipador já anunciado nas bases de um movimento crítico e refratário aos caminhos tomados pela ciência médica (LAPLANTINE; RABEYRON, 1991; MARTINS, 2003).

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