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A INTERFACE COMO ELEMENTO DA NARRATIVA MECÂNICA

6 ASPECTOS NARRATOLÓGICOS DE GONE HOME

6.5 A INTERFACE COMO ELEMENTO DA NARRATIVA MECÂNICA

As possibilidades de interação em GH são mediadas pela interface, que entendemos ser elemento retórico da narrativa mecânica.

A interface é o conjunto de signos dispostos em uma tela (cores, ícones, objetos, textos, sons etc.), formulada para a interação sistema-sistema ou sistema- usuário. Esses signos ganham sentido na dinâmica de interação com o usuário, na medida em que estabelece um processo de representação de uma ação, estabelecendo uma relação entre objeto e interpretante (PEIRCE, 1972). Caracteriza-se essa relação interface-usuário como sendo abdutiva, que, segundo a semiótica peirceana, leva o usuário a formular hipóteses sobre como interagir com essa interface, levando-o ao processo de tentativa e erro, processo no qual aprimora a interação (PAULINO, PERASSI e FIALHO, 2010). Corrobora essa visão Oregon, Vanzin e Ulbricht (2010, p.23), para quem

Em interfaces gráfico-digitais para a relação homem-computador, os elementos da linguagem servem como mediadores entre as intenções do sujeito humano e as reações do computador. Essa relação é plenamente significante, porque não há comandos diretos.

Por mediar as interações homem-máquina, as interfaces web e a dos aplicativos em geral são guiadas pelo sentido da clareza, da objetividade, devendo outorgar uma coerência maior possível entre os signos e as ações que representam. Para Fadeyev (2009), uma boa interface se caracteriza por oito elementos: clareza, concisão, familiaridade, responsividade, consistência, atratividade, eficiência e capacidade de desfazer. Nesse sentido, a ―gramática‖ de uma interface web deve

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afastar-se do dúbio, evitando a inventividade e a autorreferencialidade da linguagem poética.

Unificar a pragmática do uso impondo um deleite estético quase sempre é o desafio da interface das narrativas cibernéticas. A interface em uma narrativa digital é tão importante quanto a interface de qualquer site ou aplicativo digital. Pode-se afirmar que ―um dos aspectos mais importantes da cultura digital é precisamente seu apelo estético, expresso com clareza na problemática do design dos diversos aparatos e das interfaces tecnológicas‖ (FELINTO apud TEIXEIRA, 2014, p.10). Nas narrativas dos games, a interface opera como intermédio para a ação do jogador.

A interface atua como uma espécie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensível para a outra. Em outras palavras, a relação governada pela interface é uma relação semântica, caracterizada por significado e expressão (...). (JOHNSON, 2001, p.24)

A função ergódiga do interator, sua interação com a obra, é parte estabelecida pela percepção dos signos disponibilizados pela obra na sua interface. Por exemplo: a obra Dois Palitos, de Samir Mesquita, possui uma interface bem simples: um caixa de fósforo saltando de uma tela branca, como se víssemos essa caixa em cima de uma mesa com uma toalha acentuadamente branca. Ao se defrontar com a obra, é comum o primeiro estranhamento com relação ao desdobrar da obra, aos procedimentos da leitura. A reação natural é clicar em qualquer coisa, para ver se ocorre algo.

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Figura 8 - Interface de Dois Palitos, de Samir Mesquita.

Fonte: captura de tela pelo autor

O exemplo de Samir sugere algo que pode parecer óbvia e trivial, mas desvela uma importante condição em GH: a imbricação da narrativa do enigma com a interface.

As textualidades literárias e cinematográficas costumam guardar as soluções do enigma em si mesmas, o que constitui a base da compreensão da unidade narrativa. Assim, é comum ouvir ―quer saber o que aconteceu, leia ou assista até o fim‖. Sem a solução do enigma, temos a frustração do leitor, que espera para ser surpreendido ou ter suas suspeitas confirmadas. GH não subverte essas expectativas, mas opera-as na dinâmica da interação. Se, para desvendar o enigma, o leitor/espectador deve acompanhar a obra até o fim, em GH ele deve atuar, interagir, mover-se pela casa, procurar.

Cada detalhe da casa se converte em um signo, no sentido básico do significado de signo como algo que se põe no lugar de outra coisa. A disposição das cadeiras, se não desperta a atenção no ato do jogo, nesta análise ganha a dimensão da casualidade com que os móveis são dispostos em qualquer ambiente; um pato de borracha — que se tornou item comercial em sites de fã clube da obra — esconde embaixo de si a chave para entrar na casa — é preciso interagir com ele para encontrar a chave —; uma revista traz na capa uma referência à Stephen King, aludindo à semelhança temática entre O iluminado e GH, um ambiente vazio

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explorado ao som da tempestade; um quadro da família no salão principal, logo à entrada, personifica as ausências — no jogo, apenas Kathleen está na casa. Há também referências a outras obras de terror: fitas VHS de Arquivo X, série bastante famosa à época, e Resident Evil, um jogo de terror (a arquitetura da entrada da casa). .A pluralidade dos signos se expande: uma fita cassete pode ser ouvida colocando-a em um toca-fitas; um cartaz de um show de uma banda de garagem local; papéis amassados nas lixeiras; uma TV ligada com um aviso de tempestade pode ser desligada pelo interator; caixas de pizza; livros em estantes. A relação de significados estabelece que cada objeto traga em si um fragmento narrativo, que se expressa:

- na esfera verbal, quando a interação com o objeto dispara um journal, uma parte do diário que é narrada pela personagem Samantha como um evento da memória, ou quando o próprio objeto traz informações escritas — bilhetes, formulários, cartões-postais, relatórios etc.

- na esfera visual, direcionando a percepção do objeto como elemento espacial e temporal da narrativa.

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