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2 NARRAR, VERBO TRANSITIVO

2.3 MATERIALIDADE DAS OBRAS CIBERNÉTICAS

A resposta a esse dilema tende a reforçar que a narrativa existe e se manifesta em um meio, o que envolve pensar a leitura da narrativa sem ignorar seus suportes. Para Chartier (1988, p.12),

A inscrição do texto na tela cria uma distribuição, uma organização, uma estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se defrontava o leitor do livro em rolo da Antiguidade ou o leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou impresso, onde o texto é organizado a partir de sua estrutura em cadernos, folhas e páginas.

As narrativas em novos suportes digitais contemplam o plano da materialidade das produções simbólicas, plasmada pelos meios digitais de produção, caracterizada principalmente pelo hipertexto e pela transmidialidade. Isso faz com que o fluxo sequencial, a continuidade do texto, não seja tão clara e visível, dando a oportunidade de o leitor operar outros protocolos de leitura, como embaralhar, entrecruzar, escolher, operando uma ―revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler‖ (CHARTIER, 1988, p.13).

A mudança nos protocolos de leitura tende a criar novas expectativas de fruição textual da parte do leitor. Os signos dispostos na tela de computador envolvem a representação ficcional numa dinâmica em que suas várias ferramentas, textuais e paratextuais, podem, em seu processo comunicativo, dispor de outros elementos que não apenas os do sistema verbal, mas também som, imagem, gráficos, mapas, reunidos segundo uma configuração de textualidade algorítmica. Conduzem, esses sistemas semióticos, a considerar uma compreensão sobre

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narrativas que ultrapasse a simples postulação hermenêutica — aliás já relativizada nos estudos literários — da decifração, e nos faça pensar em uma abordagem ligada também à recifração do texto, tanto com relação aos possíveis significados da recepção textual impressa quanto mediante a manipulação do leitor a partir das possibilidades da interação do texto cibernético.

Esses novos parâmetros de leitura ampliam o conceito de leitor, o qual Bootz (2014) denomina sugestivamente de écrilecteur, ou w-reader. Comenta Nesteriuk (2009) que o destinatário das narrativas impressas está sentado confortavelmente em uma cadeira e não pode interferir no enredo da narrativa, fechada em sua materialidade de livro, enquanto na narrativa digital — e nela as narrativas dos

games —, o jogador pode alterar o estado da arte do jogo, construir caminhos

narrativos próprios, obviamente dentro das possiblidades que o jogo oferece. Essas denominações fazem alusão à clara manipulação do texto por parte desse ciberleitor, que não mais atua no sentido de apenas recodificar a mensagem, mas mesmo de manipulá-la no sentido de reconstruir materialmente suas partes.

Esse esforço é abrangido por Aarseth (1997) quando sugere o conceito de texto ergódigo [do grego ergon (trabalho) e hodos (caminho)], ao observar as textualidades cibernéticas, em especial as textualidades constituintes dos jogos digitais. Nestes, a narrativa se alia à estrutura mecânica do jogo, construindo um mundo ficcional no qual o avanço na leitura se condiciona à performance do interator, performance essa ligada a estratégia e competência na resolução dos problemas propostos pelo game. É assim que os processos narrativos dos games assumem significados distintos: a narrativa como story, envolvendo os conceitos clássicos da narratologia, como personagens, espaço, tempo, narrador etc., e narrativa como engendramento mecânico, que envolve as regras do jogo, as estratégias do jogador, os gráficos e todos os componentes que lhe conferem a jogabilidade. A combinação desses dois eixos permite que jogadores possam experenciar a narrativa como um elemento entre outros no jogo, fazendo com que sempre — e é próprio da narrativa eletrônica — os jogadores tenham experiências narrativas diferentes.

A discussão sobre os significados possíveis em uma obra já é presente na tradição nos estudos semióticos. É importante a crítica e a teoria da narrativa pensarem a obra como um universo plural, aberto (ECO, 1991), e que se tenham em

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mente, a teoria e a crítica, que toda obra opera uma busca pelo significado por parte de um autor — ou de uma autoria — e de um leitor. Isso significa dizer que à leitura crítica não cabe descobrir uma verdade na obra, e sim aspectos de seu discurso, enquanto a leitura de uma obra, seja ela impressa ou digital, assume o caráter de coautoria do leitor, a primeira identificada com o esforço da recifração, a segunda, com os aspectos da interatividade, do ergódigo, da manipulação das textualidades.

Importante também, no campo dos estudos semióticos, o trabalho recente de Araújo (2018), ao se debruçar sobre o jogo Journey à luz da semiótica peirceana. Observa a autora a quebra da trinca referente do signo-objeto-interpretante como constructo narrativo, abdicando da significação no plano do concepto para buscar erigir uma percepção narrativa embasada no fluxo percepto-concepto, em que se opera um engajamento emocional como base de sua leitura narrativa. Nesse fluxo,

o sistema do videojogo, descendente direto do vídeo, semiose objetiva de nosso tempo [...], representa uma prática semiótica singular que transparece a dominância do ―significado‖, nos lançando, devido a isto, diante de uma reflexão sobre os modos de ―fazer ser‖. (ARAÚJO, 2018, p.39)

Dessa forma, o debate sobre as materialidades em que se realizam as narrativas ciberliterárias abre caminho para uma reflexão voltada sobre como os sistemas semióticos se articulam para criar seus sentidos intrínsecos. Quer-se dizer com isso que a narrativa dos jogos, na medida em que trazem elementos referenciais das narrativas tradicionais, remodelam-se em sua esfera semiótica para compor-se como sistema híbrido.

Em Gone home, seus sentidos, construídos a partir dos elementos originários da poiêsis e do âgon (narrativa e desafio), se materializam numa espacialidade imersiva, tridimensional, própria da semiótica dos games; no percurso narrativo ―aberto‖, sem a presença explícita do narrador; na interface interativa, que permite ao interator diferentes níveis de experenciar a obra; na linha do tempo narrativa extremamente fragmentada.

Todos esses elementos convocam para a reflexão sobre uma nova hermenêutica da leitura, que não se confronta com a Teoria das Materialidades, tal como entende Felinto (2005, p.8). ―A teoria das materialidades da comunicação não

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se impõe como um substitutivo ao paradigma hermenêutico, mas como uma perspectiva alternativa [...].‖

Não se pretende negar os significados suscitados pela obra Gone home, mas fazer dialogar essa percepção com as estratégias específicas de construção de sentido do suporte digital. Essa afirmação permeia a noção de que as narrativas, enquanto processos de sentido, podem remodelar-se em um suporte, nas várias perspectivas dos estudos intersemióticos, como os da remidiatização/remidiação, da adaptação, da transescritura e da midiática narrativa.

Passemos a observar esses fenômenos e suas implicações para o fazer narrativo no capítulo seguinte.

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