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6 ASPECTOS NARRATOLÓGICOS DE GONE HOME

6.4 A NARRATIVA MECÂNICA EM GONE HOME

A leitura de GH se opera nos termos da ergódiga e da recifração. Em outras palavras, a ação participativa do leitor é orientada para a busca do sentido narrativo. O leitor é desafiado — e inevitavelmente se desafia, a partir do momento em que há o pacto ficcional — a reconstruir a história. Operam, nessa jornada de leitura, duas ações concomitantes: a manipulação de alguns elementos da obra, realiza a partir da leitura das suas possibilidades interativas, e a leitura como processo de recifração, no sentido da estética da recepção (reconstruir o sentido do texto pelo ponto de vista do leitor).

A manipulação dos elementos interativos constitui o que Gabriel Santos, desenvolvedor de games pernambucano e autor de Stone Story, chama de narrativa

mecânica.

O conceito de mecânica nos jogos se relaciona aos significados comuns da palavra. Desses significados, um dos principais diz respeito a engrenagens que põem em funcionamento um sistema. ―A ideia central de ‗mecânica‘, portanto, é a de

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movimento considerado em si mesmo: ‗Como as coisas funcionam?‘‖ (REIS, 2016. s.pag.) A mecânica dos jogos é, assim, o conjunto das engrenagens que permitem — e limitam — a atuação do jogador na interação com a obra. Para Reis (2016), a mecânica responde às perguntas ―O que tem que fazer aí?‖; ―O que acontece então?‖, ―Que tipo de jogo é?‖ Notoriamente, a evolução tecnológica propiciou o redimensionamento da mecânica, que se tornou mais realista e mais elaborada.

Mecânica e narrativa, no sentido de elementos da jogabilidade e story, são diferentes. Jogos como Gone home, por exemplo, possuem narrativa bastante desenvolvida e mecânica extremamente simples. A jogabilidade de Gone home, no estilo point-and-click, se resume a andar e interagir com alguns objetos: abrir portas, inserir fitas cassete em aparelhos de som, analisar documentos. A partir das informações que se obtém dessa interação, é possível recifrar a narrativa.

A mecânica é parte tangível da experiência, na afirmação de Reis (2016, s. pag.). Para o autor, a mecânica

diz respeito aos desígnios do projetista: regras, restrições e objetivos que ele ―engenheirou‖ para afetar a experiência do jogador. Mas a experiência do jogador está além dos desígnios do projetista: emerge de forma orgânica da interação desse com o jogo (constituindo-o no tal fluxo vivo de sensações que, com sorte, resulta em diversão).

Não seria demasiado atribuir à engenharia do projetista uma retórica. Ao elaborar o conjunto de signos que delimita a ação do interator no sentido de seguir no jogo, o game designer acaba construindo um sistema de caminhos possíveis, labirintos que são parte da experiência maior do jogo. Como proclamou Reis, a mecânica deve se alinhar à temática maior do jogo, no sentido de constituir a unidade estética.

Em Stone story, o interator é inserido em um mundo mágico, vil e sombrio, no qual uma pedra mágica pode mudar o destino do mundo. O interator é um viajante nesse mundo, que se estrutura em etapas, nas quais o interator combate inimigos de espécies variadas: insetos assassinos, cogumelos malévolos e esqueletos brigões. À medida que progride, o interator tem que vencer desafios maiores, e para isso deve colher os elementos que lhe são oferecidos na forma de prêmio pela

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vitória nas etapas. Esses elementos propiciam ao interator melhorar suas armas. Os desafios posteriores só podem ser vencidos com armas melhoradas.

Essa é uma sequência padrão em praticamente todos os jogos. Desafios e armas para enfrentá-los seguem uma paridade lógica: os desafios são postos de acordo com a possibilidade de vencê-los. Armas e instrumentos devem se sobrepor aos desafios de maneira a exigir do interator a ação, mas não devem frustrá-lo com relação à perspectiva do êxito, mesmo que este exija grande habilidade do jogador. A narrativa mecânica do jogo é toda pensada para que este cumpra determinadas etapas para prosseguir no jogo. Ou seja, mesmo que não haja narrativa explícita, há uma lógica na organização desse mundo que leva a sequenciar a evolução do jogo.

Em Stone Story, a narrativa mecânica propõe um percurso evolutivo que se manifesta na evolução das armas e dos antagonistas, os quais ganham ambos em força ou resistência. Ao interator cabe escolher com que armas lutar — em outros termos, cabe-lhe definir a estratégia. O interator não age diretamente nos confrontos, apenas escolhe as armas.

Em GH, a narrativa mecânica não apresenta incremento de personagem ou de habilidades, e sua evolução dentro da narrativa se opera pelo acúmulo de informações, colocando o desenvolvimento do jogo em função do récit. Não há uma vitória no sentido comum do termo, no sentido de derrotar adversários, e mesmo a sensação de vencer obstáculos se direciona ao desvendar o enigma. Ao fim de GH, não se tem a sensação de ter vencido, mas sim a de ter conhecido a história.

Todorov (2011) já demonstrou que o romance de enigma guarda as expectativas para a revelação final, conduzindo o leitor por caminhos que o levam a suspeitar, a adivinhar, a ressignificar fatos que puderam passar desprevenidos. Nos filmes de mistério, é comum que, em meio a uma fuga, uma tomada rápida de câmera mostre um objeto que, naquela hora, não possui qualquer ligação com os fatos apresentados naquele instante, porém, ao desfecho do mistério, o objeto adquira importância como arma do crime ou uma pista importante. Gone home não tem a ênfase narrativa que a montagem de um filme traz em si. Durante toda a experiência, GH guarda para si a visão do avatar, a personagem Kathleen Greenbriar, recém-chegada à nova casa. A história e o enigma se constroem a partir dela, condição que se instala logo no primeiro momento do jogo. A narrativa

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mecânica, nesse caso, se posiciona na primeira pessoa, formulando o que a crítica não acadêmica chama de ―jogo em primeira pessoa‖.

A partir disso, outros elementos da mecânica narrativa vão se instaurando: os movimentos da personagem são simulações de um movimento humano real. Ela não pode voar, não possui nenhuma mágica e seus movimentos são andar, correr e segurar objetos. É partir dessa ―retórica‖ mecânica da personagem e de seu ponto de vista, que se mistura ao ponto de vista do interator, que se buscam as respostas.

A mecânica da personagem Kathleen é constante. Suas conquistas na história, como já dito, não apresentam evolução de movimento, de arma ou de magia, de modo que cada elemento conquistado representa uma evolução na narrativa e na narrativa mecânica. No início do jogo, alguns lugares da casa estão inacessíveis, o que força o interator a acessar alguns pontos primeiro. Esses pontos acessíveis, tomados como espaços iniciais da narrativa são: terraço, salão de entrada, banheiro e closet (o primeiro à esquerda quando se entra, o segundo a direita), corredor esquerdo e escada, que leva ao primeiro andar. No corredor esquerdo, encontram-se a sala de TV, escritório e biblioteca. Ao final, uma porta trancada delimita o espaço a ser explorado neste ponto da casa.

A delimitação é também um artifício retórico: instiga a curiosidade e parece dizer ―Você precisa explorar mais antes de entrar aqui‖. Isso acontece também na porta à direita da escada, caso o interator tenha a sede de alcançá-la primeiro.

Ao subir a escada, tem-se acesso a um novo corredor, onde se encontram o quarto de Samantha, do casal, uma sala de música, banheiro e uma escada para o sótão, que está trancado nos primeiros momentos do jogo, como se novamente instigasse o interator a explorar mais. Alguns locais, como o armário no quarto de Kathleen, também estão inacessíveis, devendo o interator encontrar as chaves, combinações ou cumprir etapas antes de abri-los.

Percebe-se a estrutura do duplo narrativo dos romances de enigma, no sentido todoroviano de história do crime e história da investigação, na simulação do avatar: ao explorar a casa, a narrativa se desdobra na história do jogo, o que se passou no universo ficcional de GH, e uma história sendo construída no momento da interação, a partir das escolhas do interator. Interferem, ao final, essas escolhas:

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quanto menos informação o interator recolher, menor será seu conhecimento do universo ficcional de GH.

Uma outra parte importante da narrativa mecânica de GH diz respeito à interação com os objetos. Entramos aqui no campo da interface.