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NARRATIVA, JOGOS E MÍDIA: UM ENCONTRO EM GONE HOME

4 NARRATIVA E JOGOS

4.5 NARRATIVA, JOGOS E MÍDIA: UM ENCONTRO EM GONE HOME

Não seria exagerado dizer que uma semente de observação sobre os encontros entre narrativa e mídia do ponto de vista dos estudos literários está presente já num dos textos fundadores da narratologia ocidental: a Poética de Aristóteles. Nele, o autor, ao diferenciar as espécies de imitação, admite uma classificação embasada em três aspectos: imitam por meios diversos, imitam objetos diversos e imitam por modos diversos (ARISTÓTELES, 1993, p.21). Obviamente, a ideia de mídia como a concebemos hoje não está presente nos textos do estagirita, mas há uma possível inferência quando o filósofo admite que

como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim acontece nas sobreditas artes [Epopeia, Tragédia, poesia ditirâmbica, aulética e citarística]: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. (ARISTÓTELES, 1993, p.17)

O conceito de meios de expressão se modificou bastante e hoje sua concepção abrange a própria ideia de escrituras, segundo a percepção do teórico canadense MacLughan. Para ele, os meios — ou mídias — são determinantes para que o homem articule suas escrituras no sentido de comunicar-se. A comunicação é um processo básico na constituição das sociedades, e os meios de comunicação, que envolvem tudo aquilo que permite a ligação entre os homens, envolve desde a fala comum até a TV, o rádio e, mais contemporaneamente, os computadores (MACLUGHAN, 1972). Entendendo as mídias como extensões do homem, afirma o teórico que são elas que dimensionam sua existência, ampliando o alcance dos sentidos — visão, audição, tato, olfato —, propiciando padrões de percepção do mundo e de si próprio (MACLUGHAN, 1972) Assim, o telefone seria uma extensão do ouvido; o livro, da visão; e assim por diante.

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Não desprezando que as ideias de MacLughan encontram resistência e críticas, o fundamento de sua ideia é produto de uma vasta reflexão sobre a percepção das mídias como elemento determinante nas comunicações humanas, compreendo também a arte — e nela a narrativa — como resultado de um processo comunicacional. Pensar a arte como um processo comunicacional, como comunicação e interação de espíritos, é também pensar no meio como essa comunicação se dá, evidenciando a problemática das mídias no contexto da produção estética. Nessa interação, torna-se inegável enxergar, contextualizado na assertiva de Schollhammer, o papel da tecnologia, que se reverte numa cultura tecnológica e prende cada vez mais o olhar humano à tela: ora a do cinema, ora a do computador, ora, ainda, a do smartphone. (SCHOLLHAMMER, 2007)

Pensar as mídias como componentes centrais da mensagem estética nos leva a outros problemas, que dificilmente poderiam ser abordados neste trabalho pela abrangência de sua fortuna crítica. Entretanto, é necessário dizer que a evidência dos estudos nessa área ganhou nova dimensão com as chamadas novas mídias, caracterizadas principalmente pela interatividade e pela hibridização, que, embora não seja novidade do campo dos estudos midiáticos, redimensionou a compreensão do estético que as obras podem apresentar. Segundo Rajewsky (2012, p.16), o estudo da intermidialidade, ao se debruçar sobre as novas mídias, descortina não novos tipos de problemas potenciais, mas novas formas de pensar as interligações semióticas que as caracterizam. Propõe o autor também uma diferença entre uma intermidialidade que seria geral, como pano teórico mais abrangente, e uma intermidialidade específica, que se opera no âmbito das obras e configura-se um retalho no imenso tecido da teoria. Disso, propõe o autor:

Em termos gerais, o debate atual revela duas compreensões básicas sobre a intermidialidade, que não são em si homogêneas. A primeira concentra-se na intermidialidade como uma condição ou categoria fundamental, enquanto a segunda trata da intermidialidade como uma categoria crítica para a análise concreta de produtos ou configurações de mídias individuais e específicas — uma categoria que certamente é útil apenas na medida em que essas configurações manifestam alguma forma de estratégia intermidiática e de elemento ou condição constitutiva. (RAJEWSKY, 2012, p.20)

A afirmação do autor é importante ao estabelecer o pressuposto de uma macro e micro análise, fundamentadas na ideia de características gerais,

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importantes para a formulação de um gênero, e nas particularidades das obras, tecendo uma aproximação crítica. Disso, nasce uma terceira possibilidade fundamental, ligada a essas duas e admitida pelo próprio autor: a de uma abordagem no nível dos fenômenos analisados. Pensando concretamente com relação à obra objeto deste estudo, Gone home, é interessante perceber desde já sua intermidialidade embasada nos aspectos formais constituintes de sua materialidade: no campo dos códigos das linguagens, como veremos a seguir, Gone

home é algoritmo, é imagem, é texto, é áudio, todos esses elementos culminando na

mídia game. Nesse momento, é interessante observar as características dessa mídia, no sentido de observarmos suas inter-relações.

Os games podem ser compreendidos como um encontro de mídias já consagradas pelas tradições culturais que se engendram nas mídias digitais. Os

games são uma reformulação dos jogos, atividade humana ancestral exercida no

campo lúdico, apropriados pelas mídias contemporâneas e desenvolvidos em consonância com o incremento das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Esse encontro se manifesta de várias formas, ramificando-se em tantas quantas formulações criativas possíveis do campo das produções culturais. Nesse sentido, a influência mútua entre cinema, games e literatura pode ser facilmente atestada nas inúmeras remediações de obras ou de gêneros, como: Assasin’s

Creed, World of Warcraft, o sucesso editorial Harry Potter, que nasceu livro-filme- game, além dos clássicos inspirados em obras da literatura e já aqui abordados,

como Space Invaders, que se inspirou em Guerra dos mundos, de H. G. Wells, ou do mais recente Spec Ops: The Line, inspirado na narrativa de Joseph Conrad, O

coração das trevas.

Embora não seja objeto central deste estudo, a ideia transmitida no termo

remidiação (ou remidiatização) remete a Bootz. Essa ideia fortalece a importância de

se pensar os sistemas semióticos dos games como uma confluência dos três pilares narrativa-jogos-mídia.

Infere-se, nesse sentido, que os games já nasceram no contexto dessa tríade. Pensar nas dinâmicas narrativas inscritas em si nos leva a considerar o diálogo com certas caraterísticas narrativas de outros gêneros e meios. É o caso de obras como

Dear Esther, Gone home e Her story (2016), que apresentam traços das narrativas

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do hipertexto, essas obras trazem à luz sistemas de representação que se pretendem inaugurais, interativos e híbridos, ora preservando a centralidade do enredo no código escrito, ora relativizando essa centralidade em sistemas semióticos diversos, ora abolindo o signo verbal, recorrendo a outros sistemas semióticos para compor a narrativa, com destaque para o recurso audiovisual.

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