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A INTERNET DAS COISAS E A DEMANDA DE ESPECTRO

A IoT já é realidade no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países do mundo. Alguns órgãos reguladores e legisladores no Brasil e nos Estados Unidos estão avaliando como assegurar a disponibilidade das faixas eletromagnéticas necessárias para criar um ecossistema mais diversificado. Os dois países possuem diretrizes políticas e regulatórias sólidas relativas ao espectro, assim, o desafio que emerge é superar o estado atual da economia política das comunicações e garantir que novos modelos de negócios possam prosperar (especialmente aqueles que impulsionam maior adoção da IoT e que afetam diferentes setores e partes da população, inclusive, componentes marginalizadas e carentes). Em seu cerne, os sistemas de acesso ao espectro ditam a funcionalidade de tecnologias IoT, assim como os modelos de negócios que podem ser usados como motores da adoção da IoT; e a atual dependência excessiva em uma única opção de alocação e destinação (uma só entidade, acesso licenciado) está conduzindo a uma conectividade muito mais cara e bem menos equitativa.

Em 2016, o US National Telecommunications and Information Administration (NTIA), órgão que administra as telecomunicações e a informação nos Estados Unidos, publicou um green paper intitulado “Solicitação de comentários sobre os benefícios, desafios e o possível papel do governo para promover o avanço da Internet das Coisas” (NTIA, 2016). Muitas entidades corporativas, organizações de interesse público e pessoas físicas responderam ao chamado.

O setor privado – especialmente as empresas maiores – demonstrou entusiasmo quase universal no tocante às prospectivas da IoT e focalizou nas necessidades de infraestrutura e regulatórias para que ela possa se tornar realidade (recomendações que praticamente se resumem a leilões de faixas de frequência em que o vencedor leva tudo e nos quais somente empresas de porte muito grande conseguem pagar para participar). Empresas menores, grupos de interesse público e alguns indivíduos expressaram preocupações não apenas com os vieses explícitos inerentes à equiparação entre “maximizar a receita arrecadada em leilão” e “considerar os melhores interesses do público geral”, mas, também, quanto aos resultados lógicos dos modelos de negócios usados quase universalmente: coleta de dados que invade a privacidade, extração intrusiva de dados pessoais, armazenamento de dados, muitas vezes, sem a segurança devida e feudos de propriedades tecnológicas.7

7 DuckDuckGo afirma que a FCC teve a chance de consertar o “velho oeste da tecnologia antes dos consumidores terem que enfrentar os futuros gigantes da IoT” (DuckDuckGo, 2016). Outras questões, como a transição para o IPv6 e a neutralidade da Internet, igualmente, fazem parte de debates relativos à IoT, porém a demanda de espectro não estava exatamente no cerne dessa discussão.

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Em 2017, o Government Accountability Office (GAO), órgão responsável pela auditoria e pelas investigações do Congresso dos Estados Unidos, publicou um estudo com preocupações sobre a possível escassez de espectro, alegando que as faixas disponíveis são “particularmente vulneráveis ao congestionamento e a possíveis interferências devido ao crescimento esperado de dispositivos IoT” (GAO, 2017). De fato, a Comissão Federal de Comunicações (FCC) dos Estados Unidos não monitora o uso atual do espectro e tem se recusado obstinadamente a conduzir uma auditoria nacional do espectro para determinar seu uso real (versus o uso alegado). Devido a essa ignorância autoimposta, a FCC, talvez, não tenha tempo suficiente para tomar medidas no sentido de prevenir essa escassez, podendo prejudicar o crescimento da IoT e qualquer crescimento econômico associado (GAO, 2017).

As próximas grandes batalhas das políticas de telecomunicações serão focalizadas em duas questões: acesso ao espectro – assegurar que haja disponibilidade suficiente de espectro não licenciado (assim como um leque de novos sistemas de licenciamento inovadores viabilizados por computadores e tecnologias digitais sem fio) – e diminuir a dependência excessiva do espectro licenciado que é alocado por meio das mesmas metodologias e premissas das realidades tecnológicas dos anos 1930. Ironicamente, as preocupações sobre a “crise do espectro,” que sugerem que a demanda por serviços sem fio é maior do que as melhorias na eficiência tecnológica (Wallsten, 2014), não são novidade. Na verdade, essa figura de linguagem tem sido usada repetidas vezes para embasar a posição dos atuais detentores do espectro de que é preciso fornecer mais recursos de espectro às grandes operadoras por meio de leilões. Como mencionado claramente por uma comissária da FCC envolvida em várias edições desse estratagema, o gabinete de orçamento do Congresso dos Estados Unidos, historicamente, atribui menos valor ao espectro não licenciado e, por esse motivo, o processo legislativo, historicamente, ignora-o (Rosenworcel, 2015). Ademais, esse processo de pontuação privilegia o dinheiro arrecadado por meio de leilões acima de qualquer outra coisa (incluindo benefícios claros para o interesse público). Essas exigências de leilões são inerentemente políticas, e a neutralidade, por sua vez, é orquestrada para enriquecer as empresas de telecomunicações que atualmente dominam o setor e que repassam seus custos para os clientes na forma de pass-through taxes (Cowhey, Aronson, & Richards, 2008; Lennet & Meinrath, 2010; Werbach

& Mehta, 2013; Hazlett, 2017).

Enquanto tudo isso ocorre, novas tecnologias que incorporam uma eficiência espectral bem maior (por exemplo, que causam menos congestionamento, sendo capazes de transmitir mais informações por meio de uma faixa específica) e investimentos continuados na implementação da infraestrutura da próxima geração sem fio fazem esse discurso sobre a escassez cair por terra. Eles também apontam o caminho para o uso mais eficiente do espectro se os reguladores simplesmente adotassem um sistema de licenciamento do século 21, em vez de sempre se apoiarem nos modelos do século passado (Lessig, 2002; Frischmann, 2009; Benkler, 2012).

O debate sobre o espectro licenciado e não licenciado existe há décadas. Como explica Benkler (2017), as frequências eletromagnéticas que, nos anos de 1990, eram consideradas

“faixas lixo”, são as mesmas faixas que possibilitaram o WiFi. Como pode ser constatado até com uma rápida observação das bolsas de valores mais proeminentes, e como já é amplamente reconhecido, “o espectro sem fio não licenciado baseia-se na inovação gerada por uma gama cada vez mais ampla de empresas e amadores do que os atores envolvidos no espectro proprietário” (Benkler, 2017).

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O surgimento de tecnologias sem fio – como a IoT – requer que os governos revisem e atualizem suas diretrizes de gestão do espectro para o século 21. Infelizmente, o maior empecilho para essa atualização societária tão necessária continua a ser os velhos problemas da economia política que, há décadas, refletem impactos negativos para o público em geral. Talvez, o interesse público sempre exija trocas entre as metas sociais e econômicas (Goodman, 2009), mas, nas últimas décadas, essas trocas têm sido cada vez menos equilibradas. Especialmente desde 2004, com o surgimento do protocolo de acesso oportunista ao espectro nos Estados Unidos (FCC docket 04-186), tem-se detectado um descaso sem precedentes e intencional com a realidade tecnológica por parte da FCC, a favor de uma nova convocação pela ampliação da privatização do espectro (Lennet & Meinrath, 2010).

Enquanto muitos atores do setor alegam que a comunicação móvel será o verdadeiro viabilizador da IoT devido à sua cobertura ampla (Mekki et al., 2018), ignoram-se vários outros tipos de tecnologias que já são usados em faixas não licenciadas. Ademais, apesar da coexistência de faixas licenciadas, não licenciadas, e das formas inovadoras de licenciamento serem de fácil alcance, resta saber se outros países irão demonstrar liderança suficiente para atualizar seus sistemas de alocação e destinação do espectro de forma a apoiar a inovação sem fio e os serviços, as aplicações e a conectividade de próxima geração.

Os últimos anos, no Brasil, também têm visto políticas de espectro e debates regulatórios. Um exemplo importante foi a criação da Câmara de IoT, em 2014, um fórum multissetorial para discutir diferentes aspectos da governança de sistemas de comunicação máquina a máquina (M2M)8. Em 2017, uma consulta pública foi lançada, pelo governo federal do Brasil, para coletar dados de diferentes partes interessadas sobre as medidas a serem tomadas9. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), também, encomendou um estudo para servir de base para a estratégia de IoT do país e publicou os resultados no final de 2017.

Apesar de essa análise tocar em questões importantes de espectro, ela não aborda demandas futuras relativas ao uso da IoT (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [BNDES], 2017), bem como mantém um silêncio chocante sobre a necessidade de maiores reformas relativas ao licenciamento do espectro. Mais recentemente, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital, lançada em março de 2018, incluiu um plano de IoT como um de seus pilares fundamentais (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação [MCTIC], 2018). No entanto, mais uma vez, a demanda futura de espectro em termos da IoT não foi abordada completamente, muito menos a demanda específica de espectro não licenciado. De fato, ambos os documentos abordam o assunto apenas tangencialmente.

O Brasil é um grande mercado e pioneiro na adoção de muitas tecnologias (Casanova &

Kassum, 2014); no entanto, o país ainda não adotou plenamente alguns usos importantes do espectro não licenciado. Um exemplo desse uso são as tecnologias de TV white spaces (TVWS), ou espaços brancos de televisão que utilizam as faixas do espectro localizadas entre os canais vagos do serviço de radiodifusão de TV. As tecnologias TVWS não “preenchem” as alocações existentes do espectro (TV aberta) e, portanto, seu uso aumenta a eficiência do espectro.

Enquanto que as tecnologias como o TVWS foram sendo implementadas nos Estados Unidos

8 Ver Decreto n. 8.234/14.

9 Mais informações no website Participa.br. Recuperado em 17 abril, 2018, de http://www.participa.br/cpiot

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há mais de meia década, elas ainda não são usadas em escala no Brasil, apesar de o tema ser discutido por formuladores de políticas públicas e reguladores há anos (Evangelista, Silva, Cavalcanti, & Silva, 2017).