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DESAFIOS PARA A REALIZAÇÃO DE PESQUISA SOBRE AS PRÁTICAS CULTURAIS NO UNIVERSO

DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO

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Isaura Botelho2

As novas tecnologias digitais abriram um universo quase infindável de possibilidades de conhecimento, de práticas e de sociabilidade, trazendo também desafios ainda pouco resolvidos para aqueles que trabalham com as políticas públicas de cultura. Nosso cenário hoje, do ponto de vista da identificação dos hábitos culturais da população, é bem mais complexo do que algum tempo atrás, contribuindo com mais perguntas que respostas.

Mesmo que as maneiras de acesso e de fruição tradicionais à cultura e à arte não tenham deixado de existir, o caráter multimídia da cultura digital redefine fronteiras e permite a emergência de novas práticas criativas e de apropriação de conteúdos. Potencialmente, por sua própria natureza, a Internet permite ao usuário informar-se, escutar música, ler livros ou jornais e revistas, ver filmes ou programas de televisão ou escutar rádio. A fotografia se torna uma febre dos possuidores de telefones celulares ou tablets. Em curso, temos uma mudança radical de ordem simbólica e a emergência de novas formas de conhecimento e de sociabilidade.

Tudo isso nos permite esperar que novas possibilidades de inflexão e de intervenção criativas ainda serão descobertas e apropriadas: trata-se não apenas de utilização de recursos técnicos, mas também simbólicos. Temos de reconhecer que grande parte das atividades humanas se deslocou para esse universo virtual, e o desenvolvimento dos computadores pessoais, da Internet e do telefone celular mudaram radicalmente nossa relação com o mundo.

Vínhamos, até agora, mais preocupados com o acesso da população ao repertório erudito da arte e da cultura – foco das políticas culturais a partir dos anos 1960, sob o signo da

1 O presente texto se originou de uma fala no seminário Práticas Culturais e as Novas Tecnologias: Desafios para Produção de Indicadores, realizado em parceria entre o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) e o Centro de Pesquisa e Formação do Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc SP), em 19 de abril de 2017. Mais informações sobre o evento em http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.

br/atividade/praticas-culturais-e-as-novas-tecnologias-desafios-para-producao-de-indicadores

2 Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), se dedica a pesquisas sobre hábitos e políticas culturais. Atua fortemente na qualificação de gestores culturais, coordenando cursos de especialização e de aperfeiçoamento nessa área. Entre suas publicações mais importantes estão os livros Romance de formação: Funarte e política cultural 1976 -1990 (Edições Casa de Rui Barbosa/MinC, 2000) e Dimensões da cultura:

políticas culturais e seus desafios (Edições Sesc São Paulo, 2016).

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democratização cultural –, seguido pelas políticas que reconheciam a existência de vários públicos e de uma pluralidade de formas culturais merecedoras de apreço e atenção, o que se convencionou chamar de democracia cultural (Botelho, 2016).

Do ponto de vista da democratização cultural ficam as perguntas: será que estamos diante de uma ferramenta que permitirá o tão desejado acesso do maior número de pessoas à fruição das

“grandes obras” da cultura e da arte? Será que ela altera positivamente as barreiras simbólicas identificadas, nos anos 1960, por Pierre Bourdieu?3 Contrapondo-se frontalmente ao dom natural do gosto por cultura (aqui sinônimo de arte), Bourdieu trabalha com uma sociologia da dominação, baseada na desigualdade da apreciação das obras, das competências culturais e das práticas. Seu trabalho aponta também que o desejo por cultura não é inato: ele necessita ser despertado, estimulado e alimentado (Bourdieu, 1979).

As variáveis determinantes da relação dos indivíduos com o universo da cultura são o nível de escolarização e renda (sendo a primeira mais importante que a segunda), faixa etária e localização domiciliar. A faixa etária aponta para o protagonismo dos jovens e o relativo retraimento daqueles que formam família e, mais ainda, dos idosos. A variável que pode equilibrar esses efeitos da idade é a do nível do diploma.

Por mais que essa difusão massiva da cultura digital impacte de maneira expressiva, e provavelmente de forma mais decisiva que quaisquer outras mudanças que tenhamos vivido desde a virada do século, ela aumenta a porosidade – já identificada em outras circunstâncias – entre a prática cultural e o simples divertimento ou distração. Mas isso poderia representar uma maneira eficiente de superar os determinantes que essa sociologia da desigualdade nos apontou.

De fato, potencialmente temos aqui uma grande ferramenta de democratização, propiciando, inclusive, grandes possibilidades de expressão pessoal, não apenas produzindo comentários ou recomendações pelas redes sociais, como também exercendo a criatividade. Isso reforça ainda as possibilidades em termos de acesso às produções culturais, maiores possibilidades de acessar novos conteúdos e a fruir novas experiências culturais. Insisto que falamos de potencialidades, pois o rol de virtudes atribuídas ao universo digital é quase ilimitado.

Um dos desafios é verificar em que medida essas opções disponíveis se traduzem em práticas concretas.4

Todas essas considerações levam à preocupação de conhecer as preferências e os comportamentos da população no mundo digital, tanto por parte dos organismos centrais de políticas culturais como dos responsáveis pelas instituições culturais interessados em conhecer seus públicos. Alguns estudiosos já apontavam a necessidade de que os formuladores de

3 O sociólogo francês Pierre Bourdieu foi quem inaugurou os estudos sobre práticas culturais da população, por encomenda do Ministério da Cultura francês, sobre os públicos dos museus de arte europeus, resultando na publicação, junto com o estatístico Alain Darbel, L’amour de l’art: les musées et leur public (Les éditions de Minuit, 1969). Seu maior trabalho sobre o tema das práticas culturais, que se tornou um clássico, é o livro La Distinction: critique sociale du jugement (Les éditions de Minuit, 1979).

4 Foi o que procurou observar um estudo sobre práticas culturais na Internet, promovido pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) em todas as regiões brasileiras, em 2016, mediante a realização de 24 grupos focais. O trabalho resultou na publicação Cultura e tecnologias no Brasil: Um estudo sobre as práticas culturais da população e o uso das tecnologias de informação e comunicação (Comitê Gestor da Internet no Brasil [CGI.br], 2017a).

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políticas começassem a pensar em formas de interferir de algum modo no espaço doméstico (Donnat, 2011). De fato, as tecnologias digitais abrem para os equipamentos culturais – e provavelmente abrirão mais ainda proximamente –, perspectivas até então impensadas de enriquecer suas possibilidades de oferta de serviços a distância.5

Resultados de pesquisas têm mostrado que aqueles que participam na produção de conteúdos on-line continuam minoritários6. A grande maioria se caracteriza por uma relação de um simples consumo ocasional ou mesmo superficial. Nesse sentido, as pesquisas não confirmam as virtudes largamente propagandeadas sobre a curiosidade com relação a novos conteúdos ou o gosto pela diversidade cultural. Mesmo considerando as possibilidades de trocas com pessoas desconhecidas ou muito distantes fisicamente, há uma tendência para a rejeição de conteúdos que não interessam, o que favorece certa homogeneidade, inclusive nas redes sociais. Além disso, deve-se levar em conta que a lógica dos algoritmos, que domina as redes e aplicativos, reforça essa homogeneidade, na medida em que ela nos orienta para pessoas que compartilham nossos gostos, ao mesmo tempo que nos apresenta produtos – seja música, filmes ou de outra natureza, como a diversidade do Pinterest, por exemplo – a partir de nossos comportamentos on-line. Citando o pesquisador Olivier Donnat (2017): “parece que o jogo combinado das redes sociais e dos algoritmos, longe de encorajar a curiosidade e o gosto da descoberta, se revela de uma indiscutível eficiência para produzir o ‘si-mesmo’ e favorecer um crescente conformismo aos gostos e às opiniões de seu grupo de pertença” (tradução da autora).

Mesmo considerando o que vem sendo apontado pelas pesquisas do CGI.br, o peso determinante de variáveis sociodemográficas (como o nível de escolaridade, renda e faixa etária) apontado pela literatura sociológica se confirma. Apenas a localização domiciliar parece ter seu peso relativizado, tornando-se menos relevante (CGI.br, 2017a, 2017c). No que se refere aos comportamentos culturais dos indivíduos no mundo digital, torna-se importante não nos rendermos aos fascínios tecnológicos, a fim de não perder de vista os objetivos das políticas culturais – sejam elas de organismos públicos ou de equipamentos privados – de contribuir para o enriquecimento da vida cultural da população.

Os desafios são bem mais evidentes do que as respostas para superá-los. Até agora, embora de relativa complexidade, as pesquisas sobre práticas culturais seguiram metodologias consagradas e utilizadas em diversos países, mas que representaram, em seu nascedouro, uma nova maneira de ver o mundo e fundamentar políticas para o setor. A própria delimitação do campo das “práticas culturais” e a definição das atividades que lhe correspondem se encontram sob incertezas, exigindo respostas, da mesma forma que as metodologias e as teorias utilizadas até agora.

5 Nesse sentido, já podemos contar com os resultados fornecidos pela TIC Cultura 2016 (CGI.br, 2017b). O estudo revela a precariedade de nossos equipamentos culturais em matéria de tecnologias digitais, ao mesmo tempo que nos indica uma lacuna importante que deveria se tornar alvo das políticas para o setor.

6 O indicador de atividades realizadas na Internet para criação e compartilhamento de conteúdo da pesquisa TIC Domicílios, por exemplo, aponta que, em 2016, 38% dos usuários de Internet postaram textos, imagens ou vídeos de criação própria (CGI.br, 2017c). Mesmo aqui, as características desses usuários são determinadas pelo grau de instrução, faixa etária, renda familiar e classe social, que são as principais variáveis apontadas para se verificar a intensidade de práticas culturais dos indivíduos. O estudo qualitativo sobre práticas culturais na Internet, já citado em nota anterior (CGI.br, 2017a), também aponta na mesma direção.

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A mesma criatividade que acabou por permitir o desenvolvimento de métodos que se revelaram bastante eficientes até algum tempo atrás será o ingrediente necessário para que sejam formuladas novas metodologias capazes de apreender as práticas desses usuários que têm um impressionante nível de dispersão. Novas nomenclaturas serão exigidas, a partir de definições adequadas a esse universo. Da mesma forma, será necessário considerar novos instrumentos de mensuração das práticas digitais, levando-se em conta, por exemplo, a representatividade das amostras de entrevistados, a metodologia adequada para a reunião dos dados recolhidos, e a análise e interpretação dos traços de uso on-line em articulação com os usos presenciais.

As pesquisas sobre as práticas culturais até agora se baseavam em recortes por mídia ou por suporte físico: livros, discos, DVD, salas de teatro, cinema ou de concerto, bibliotecas, museus, etc. Essa abordagem permitia, em princípio, uma visão global dos comportamentos e hábitos individuais. No entanto, a desmaterialização dos conteúdos, associada a sua difusão espetacular pelas novas tecnologias de informação e comunicação, cria um problema enorme para a realização de pesquisas, na medida em que a uma atividade específica não mais correspondem, necessariamente, um só conteúdo ou programa, um suporte, um lugar, um momento.

Da mesma forma, voltando à questão do embaralhamento cada vez maior entre os mundos do mero entretenimento e o da cultura, cabe se debruçar sobre as divisões entre cultura

“legítima” e cultura de massa e dos lazeres. Em tempos de democracia cultural, quando se impõe o reconhecimento dos diversos registros da arte e da cultura, sejam elas eruditas, de massa ou popular, bem como o reconhecimento da existência da pluralidade e diversidade de públicos, essa discussão não é nada banal. Trata-se de um debate que requer clareza nos posicionamentos e nos termos, principalmente quando consideramos as dissonâncias – termo cunhado pelo sociólogo Bernard Lahire – no comportamento cultural dos indivíduos: em todos os grupos sociais, a fronteira entre a legitimidade cultural (a “alta cultura”) e a ilegitimidade cultural (a “baixa cultura”, o “simples divertimento”) não separa apenas as classes, mas divide as diferentes práticas e preferências culturais dos próprios indivíduos (Lahire, 2004).

Finalmente, numa pesquisa sobre públicos seria necessário separar as fruições via Internet daquelas presenciais, introduzindo a noção de usuários e praticantes. Cabe discutir qualitativamente esses usos, o que dependerá indiscutivelmente da criatividade investida no desenho da pesquisa e na análise dos resultados. Enfim, os desafios não foram todos arrolados, havendo muitos aspectos não considerados aqui.

Tive acesso a uma série de relatos sobre pesquisas realizadas em museus, arquivos, bibliotecas, e outras feitas por equipamentos como teatros e espaços de exposição, que concernem à relação desses organismos com seus públicos, mas não propriamente sobre estes7. Do ponto de vista dos hábitos culturais dos indivíduos de maneira global, mas não relacionados com os equipamentos, a mais completa que conheço foi a desenvolvida em 2008 pelo já citado Olivier Donnat, responsável pela pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses no Departamento de Estudos Prospectivos e Estatística do Ministério da Cultura e da Comunicação da França

7 A revista Culture et Recherche, em seu número135, de 2017, traz alguns artigos sobre experiências institucionais.

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(Ministère de la Culture et de la Communication, 2009)8. Há uma distância entre aquele momento e hoje, principalmente se considerarmos a rapidez com que as tecnologias digitais evoluíram nesse período.

A novidade nessa quinta edição da pesquisa9 foi a ênfase dada às novas tecnologias digitais, ao lado das diferentes formas de participação na vida cultural (leitura de livros, frequência a equipamentos e manifestações culturais, práticas amadoras) e mídia tradicional (escuta de rádio e assistência à TV). O ganho dessas pesquisas são as possibilidades de cruzamentos entre as diversas práticas, o que alimenta as análises que permitem olhares mais abrangentes sobre os hábitos dos praticantes. Claro que isso, mais uma vez, está na dependência da criatividade metodológica do desenho das pesquisas, bem como dos recursos disponíveis para a sua efetivação.

Considerando a preocupação em se discutir a realização de estudos mais aprofundados sobre as práticas culturais com relação às tecnologias de informação e comunicação, além da mencionada necessidade de praticamente reinventar uma metodologia que seja adequada – o que pressupõe debruçar-se sobre os antigos métodos e teorias e, sem preconceitos, examinar outras metodologias advindas de outros campos de estudo –, é importante se preocupar em colocar em evidência a pluralidade e a variedade de fatores que caracterizam o caráter cada vez mais heterogêneo das condições de socialização, as quais ultrapassam o itinerário e a posição social que estão na origem do envolvimento (ou não) dos indivíduos na vida cultural.

REFERÊNCIAS

Bourdieu, P. (1979). La distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Les éditions de Minuit.

Bourdieu, P., & Darbel, A. (1969). L’amour de l’art: Les musées et leur public. Paris: Les éditions de Minuit.

Botelho, I. (2016) Dimensões da cultura: Políticas culturais seus desafios. São Paulo: Edições Sesc São Paulo.

Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br (2017a). Cultura e tecnologias no Brasil: Um estudo sobre as práticas culturais da população e o uso das tecnologias de informação e comunicação. São Paulo: CGI.br.

Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br (2017b). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros: TIC Cultura 2016. São Paulo: CGI.br.

Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br (2017c). Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2016. São Paulo: CGI.br.

Donnat, O. (2011). Democratização da cultura: Fim e continuação? Observatório Itaú Cultural, 12, 19-35.

8 A metodologia da pesquisa de 2008 foi exatamente a mesma das demais: sondagem junto a um universo representativo da população do país, com indivíduos acima de 15 anos, estratificado por regiões e categorias de aglomeração, método de cotas, entrevistas presenciais em domicílio da pessoa entrevistada. Os resultados apontaram que a tecnologia digital já então havia transformado profundamente o mundo das práticas amadoras, permitindo a emergência de novas formas de expressão, bem como de novos modos de difusão de conteúdos culturais produzidos no tempo livre. Fotos e vídeos eram as práticas preferidas. Também a escrita, a música e as artes gráficas se fizeram presentes.

9 As pesquisas anteriores sobre as práticas culturais dos franceses foram realizadas em 1973, 1981, 1988 e 1997 pelo Département des Études de la Prospective et des Statistiques do Ministério da Cultura francês.

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Donnat, O. (2017). La question du public: d’un siècle à l’autre. Culture et Recherche, 135. Paris: Ministère de la Culture et de la Communication.

Lahire, B. (2004). La culture des individus: Dissonences culturelles et distinction de soi. Paris: La Découverte.

Ministère de la Culture et de la Communication (2009). Les pratiques culturelles des français à l’ère nomérique – Enquête 2008. Paris: La Découverte.

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