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No sentido exposto anteriormente, as narrativas (auto)biográficas são compreendidas como um processo de narrar, contar a experiência humana abarcando todo o seu aspecto simbólico. O sujeito que se põe a contar a sua experiência diante do mundo e no mundo, reflete, reconta, projeta e constrói possibilidades novas, mesmo que ainda não as reconheça.

As narrativas autobiográficas constituem-se, pois, como um território capaz, de possibilitar a interpretação do ser humano, no seu caminhar no mundo: ações, significados, olhares, experimentações. O estudante colaborador passará a narrar as suas histórias, compressões, sentidos e significados, como ator e autor, protagonista de sua história, em uma situação de encontro que colaborador e pesquisadora participam da interpretação do fenômeno em análise.

Isso é o que Ricoeur (1994) aponta como tessitura da intriga, que se constitui no processo do ato de narrar e, assim, não obedece a uma contagem linear e/ou cronológica. Dessa forma, a apresentação dos acontecimentos vai depender da intencionalidade de quem narra e da relação estabelecida com quem ouve. Os seres humanos são os personagens, vão constituindo sentido, a partir dos lugares ocupados e estabelecendo relações e inter-relações instituídas, em que a apresentação da sucessão dos eventos vai depender da intencionalidade de quem narra e da relação estabelecida com quem ouve.

Para Brockmeier e Harré (2012), as narrativas autorreferenciais formaram-se como um caminho metodológico, na perspectiva interpretativa, no sentido de trazer a constituição das pessoas e a apropriação de sua identidade. A pessoa que narra sempre traz um onde, um quê, um para quem e um por quê. Isso faz com que se apresentam elementos culturais, no sentido de um recontar, que passa pela imitação e pela reinvenção de seu modo de conceber a sua experiência. Ricoeur (1994) aponta que a interpretação dessa metodologia se dará na espiral hermenêutica, no sentido de atribuir não uma explicação, mas diversas interpretações.

Ricoeur (1990) traz a condição interpretativa do acontecer no “mundo-texto” (RICOEUR, 1990, p.55), tendo em vista fazer da ficção um caminho para descrever a realidade. O texto se constituirá, assim, em um processo de distanciamento na

comunicação e mostrará o processo de historicidade da experiência humana, na perspectiva educacional de estudantes advindos de grupos considerados excluídos.

Nesse sentido, a hermenêutica se fez caminho da interpretação e compreensão e se constituiu como linguagem. Assim, adotou a polissemia das palavras, a sensibilidade do contexto e as singularidades que acompanham este complexo processo, em que a interpretação reconheceu a mensagem produzida pelo sujeito da história. Para Ricoeur “a hermenêutica nasce desse esforço de levar a exegene à filologia” (1990, p.20), como uma busca constante para levar a interpretação ao seu sentido mais amplo, na perspectiva das relações, significações, construções e reconstruções do sujeito que fala. O discurso foi produzido na história e Esta passa a ser o tempo/espaço, como campo da hermenêutica.

A teoria da hermenêutica trilha o caminho na vida, quando a vida passa a ser história, a vida como a sua própria exegese (GADAMER, 1999). A experiência humana ocorre na vida humana, considerada finita. A consciência de sua limitação é onde se encontra a verdadeira experiência hermenêutica, onde se obtém a clareza de que a experiência não retorna, e de que já não seremos os mesmos, nem nós, nem a experiência. A experiência leva ao conhecimento do real, ao nos deixar conscientes de que não se é dono do próprio tempo, e nem da experiência. Desse modo, a experiência não está determinada, o que possibilita as projeções futuras, que fazem parte da essência do ser humano, como ser histórico, imerso no contexto de limitação e finitude, mas que atua e se encontra na própria história.

A historicidade constitui-se nessa experiência, quando é compreendida como processo de consciência do vivido, processo aberto, com espaço para as desconstruções, construções e reconstruções. O ser se coloca na ação de experimentar o processo de relação de alteridade com o mundo, com o outro e com a tradição, em um constante processo de abertura, que se configura pelo pertencimento “poder-ouvir-se-uns-aos-outros” (GADAMER, 1999, p.532).

Trata-se da experiência do processo de abertura, no sentido de reconhecer o outro que fala, que é diferente, mas traz singularidades e significações próprias, estabelecidas por pertencer ao conjunto de histórias da humanidade. Nessa experiência, a hermenêutica se dá na consciência histórica, o compreender a alteridade do outro e o passado desta alteridade.

Assim, a linguagem é concebida como mediadora, elo, abertura das possibilidades e compreensões da nossa experiência no mundo, uma experiência

marcada pela linguagem que se constitui historicamente e articulada à tradição (CARVALHO, 2000). A primeira função da linguagem não se resume à comunicação com os outros, mas sim à relação com o real, com a existência do ser. Para Ricoeur (1990), “o dizer designa a constituição da existência [...] É por isso que a primeira determinação do dizer não é o falar, mas o par escutar-calar-se” (RICOEUR, 1990, p.35). O falar para o autor designa uma empiria. A escuta tem um papel primordial, como processo de abertura para o outro e para o mundo.

Para Ricoeur (1990), a interpretação da ação humana é orientada pela razão interpretativa que constitui os processos de significação do ser, instituída também a partir das experiências. As experiências vão se construindo como fonte e possiblidade para as narrativas, apresentando-se como condição que possibilita o diálogo com a experiência humana, no sentido de re-elaboração e de auto-invenção, em que se abre para a memória e a criação do vivido. Esse é o pressuposto que atribui à narrativa o caráter temporal que advém da própria experiência. O tempo torna-se humano, ao ser articulado ao modo da narrativa, o que é compreendido pelo autor como um mundo atemporal.

O autor considera a necessidade de um aprofundamento, no sentido e no significado do elemento tempo, entendido não só pela temporalidade. Para tal, considera o conceito de Santo Agostinho (1981) o motus, ou seja, o próprio movimento do tempo e sua duração, em que a tríplice do presente habita cada ser, no sentido de compreender os tempos que constituem o presente. O presente do passado, com a própria memória, as imagens, referências que o fazem acessar os momentos passados. O presente do presente, com a compreensão do que se apresenta como o agora, o que existe. O presente do futuro, em um sentido de espera, algo que pode ser antecipado e que vem do reconhecimento da visão do agora.

O conceito de mimese é considerado como o processo de reconhecer a presença do tempo, na perspectiva dos significados e sentidos. A mimese é compreendida como “processo ativo de imitar ou representar” (RICOEUR, 1994, p.59). Esse processo pertence à práxis. O seu objeto é o agenciamento dos fatos, a atuação na vida humana. O pertencimento que se dá no tempo real, imaginário e ético. A mimese tem a função de ruptura e ligação, e se torna fio condutor, quando produz a mediação entre o tempo e a narrativa, e quando constrói a relação dos três tempos miméticos, denominados pelo autor de Mimese I, Mimese II e Mimese III.

A Mimese I é definida, por ele, como uma prefiguração da ação encaminhada a um tempo vivido na experiência, no sentido de uma obra que será anunciada. A Mimese II é a configuração do simbólico na construção da narrativa, o processo da criação no encontro com o vivido. Por último, a Mimese III, o processo da narrativa a alguém, constituindo-se no tempo da alteridade, ou seja, na reconfiguração, releitura por outros, processo de circularidade, ato de comunicação e partilha.

Nessa perspectiva, as narrativas produzidas nas oficinas autoecobiográficas se constituem em um refletir e intervir da práxis humana, como maneira de objetivar o trabalho em grupo, no qual se encontram os tempos da mimese. As análises destas narrativas, produzidas a partir da dimensão da biografia educativa, constituem-se, no real, envolvendo os diversos símbolos e sentidos. Constituem-se no contexto também da subjetividade.

Para Josso (2008) esse trabalho permite a partilha e a confrontação dos elementos pertencentes às questões de herança pessoal e social, entre os participantes, e constitui uma atenção apurada para os pesquisadores da abordagem biográfica, tendo o cuidado com as dimensões que envolvem este trabalho, em especial com as que pertencem ao imaginário humano.

Nele há uma parte singular e uma parte completamente plural ao mesmo tempo. O emocional como sensível, as sensações, os sentimentos, o imaginário, a reflexividade também. Nessas dimensões, habitam partes culturais que forma fazendo de nós o que somos. (JOSSO, 2008, p.19).

Nesse cuidado, Souza (2004) considera que o trabalho com a análise interpretativa – compreensiva, a partir da hermenêutica, conceito formulado por Ricoeur (1996), seja o caminho mais coerente para abarcar as biografias educativas que constituem o processo de formação, no devir da vida, considerando que a fenomenologia do ser perpassa a identificação e o conhecimento do contexto que envolve os estudantes colaboradores.

Desse modo, foi instituído todo o processo teórico metodológico deste estudo.