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Ao planejar as oficinas, com intuito de compreender a história de vida e os processos escolares dos estudantes filhos de catadores, fazia-se necessário pensar em um espaço vivo, lúdico, de intervenção, que se abrisse ao conhecimento, à

compreensão e à sensibilidade e, concomitantemente, se constituísse em um espaço/tempo de escuta, de compromisso com a relação dialógica, caminhando na perspectiva do acolhimento e da amorosidade. Era preciso que esse espaço se estendesse ao criativo e ao diverso. Já se projetava que os estudantes trariam à memória fatos passados, articulados ao presente e refletiriam sobre suas realidades e suas relações estabelecidas. Era fundamental que eles atribuíssem sentidos a processos vividos e vislumbrassem o viver em uma perspectiva de futuro. O objetivo era falar e experienciar algo próprio das sua vida e dos saberes constituídos nesta existência.

A oficina autoecobiográfica nasce nesta perspectiva, de se consolidar como mais um espaço reflexivo e de intervenção, em um diálogo permanente com as diversas vozes que compõem o ambiente da vida cotidiana, da vida escolar, da vida individual e coletiva. Esse é um trabalho baseado nos procedimentos autobiográficos de Josso (2008; 2010); Lechner (2012); Delory-Momberger (2008) e Passeggi; Furlanetto; Conti; Chaves; Gomes; Gabriel; Rocha (2014).

Dois conceitos subsidiaram a construção do termo Oficina Autocobiográfica: AUTO ECO. Auto, a partir da concepção de Morin (2005), significa a constituição de relações interdependentes/dependentes, de uma auto-organização, organizando- se a si mesmo e si autoproduzindo. Relações de interdependência se constituem nas relações genéticas e nas interações com o meio ambiente, a onde o indivíduo se define pelas suas singularidades, mas também pelas suas qualidades de ser e de existência.

Trata-se de um ser constituído do gene e feno, em que a relação dialógica, entre o que é inato e o que é adquirido, é o que constitui a vida e a existência, em um processo complexo, que é inseparável, antagônico e complementar. Esse estabelecer é o que constitui o ser vivo, sua existência e as relações e inter-relações constituídas no decorrer do processo de vida. O conceito Eco, a partir da concepção de Mourão (1996), compreende o compreensão do oikos como espaço habitado (MOURÃO, 1996), com seus territórios simbólicos e complexos, com os mitos que o compõem, as matérias e as diversas formas de relações e interações que se constituem no decorrer da existência humana. O ser habita-se a si mesmo, aos outros (nos diversos grupos aos quais pertence) e ao planeta, como morada das diversas formas de vida.

Assim, o espaço da Oficina Autoecobiográfica se constitui em mais um território do cuidado com o espaço habitado, que é a vida e a possibilidade da formação de uma consciência atenta, cuidadosa e ecológica, sobre o ser individual, coletivo, e seu modo de habitar. Um espaço onde se buscou trabalhar as autobiografias, como um eixo central, e a ecologia humana e a educação ambiental, como inspiração e respiração.

Alguns pressupostos foram pilares para a construção da oficina autoecobiográfica, no decorrer do processo de pesquisa. A intenção de problematizar a realidade dos estudantes colaboradores, a partir de suas manifestações artísticas, que possibilitam a aproximação desse contexto, de forma lúdica, no sentido de estabelecer o diálogo de um olhar sensível à própria realidade, mas que se encaminha para o despertar da esperança, em uma perspectiva de transformação.

A relação dialógica e de amorosidade, baseada no conceito de Freire (1997), foi tomada como matriz de orientação e ação da relação entre colaboradores e pesquisadora, no decorrer das oficinas autoecobiográficas, em todo o processo da pesquisa. Busca-se um ouvir, a partir do outro e com o outro, pelo qual se estabelece um diálogo entre lógicas opostas, em uma postura de compreensão e reflexão, em que a atenção está voltada para as potencialidades de cada um.

As áreas da ecologia humana e da educação ambiental são inspiração e expiração deste espaço/tempo das oficinas, em uma perspectiva de constituir a vida desse processo, no qual a inspiração estaria no sentido de trazer elementos de fortalecimento, de encantamento e de cuidado ao ser, no sentido da subjetividade e do coletivo do grupo.

A expiração esteve na busca constante das possibilidades de produção de um olhar sensível, atento e ecológico, que levassem os colaboradores a reconhecer a realidade, a si mesmos e ao grupo, para que pudessem refletir sobre seus modos de habitação. Por último, veio a escolha do pilar dos diferentes modos de narrar as trajetórias de vida e os processos escolares. Optou pelo desenho, por estar conectado ao universo infantil, e pela fotografia, como uma imagem significativa no contexto atual, como maneiras de trazer elementos (auto)biográficos da parte dos estudantes.

As imagens serão consideradas em conjunto com os relatos orais, elementos fundantes da constituição das narrativas (auto)biográficas. O desenho é uma das

primeiras manifestações humanas, com o objetivo de se deixar um rastro, desde os primórdios da pré-história. Derdyk (1989, p. 23) informa que “[...] em seus primórdios, o desenho da palavra – os pictogramas, os hieróglifos, os ideogramas, escritas analógicas e visuais – explicita sensivelmente a natureza mental e inteligível do desenho como ato e extensão do pensamento”.

Aqui se observa a relação das narrativas construídas no processo de existência humana com a imagem dos desenhos, pois estes foram apresentando formas ao vivido e às relações estabelecidas, e identificando hierarquias, poderes, ritos e contextos da época. O desenho se constitui-se, ainda, em uma possibilidade de expressar os sentidos dessa existência, sejam aqueles considerados a partir das relações exteriores, sejam aqueles provenientes das relações interiores. Uma linguagem artística que já se inicia na mais tenra idade.

A maioria dos indivíduos na infância começa a comunicar-se graficamente por meio do desenho, independentemente de raça, sexo ou nacionalidade. Basta um pedaço de papel e um giz de cera que tudo se transforma em magia e brincadeira, nas mais belas formas do desenho, como um processo “natural” de desenvolvimento. (GOLDBERG; YUNES; FREITAS, 2005, p.03). Para a criança, o desenho é uma estratégia pela ela interage com mundo, como uma forma de se comunicar e se expressar, a partir do seu olhar. A partir dele, ela expressa diversos sentimentos, que não podem ser articulados pela via da oralidade. Segundo Derdik (1989), o desenho é considerado uma atividade global, no sentido de revelar a existência de forma ampla. Aqui, a imagem e a percepção estão comprometidas em uma polifonia de sentidos, em que a memória, a observação e a imaginação se entrelaçam, tendo em vista materializar de forma expressiva um processo que se encontra no presente.

Outra imagem como manifestação artística da existência na oficina autoecobiográfica é a fotografia. A palavra vem do grego, foto tendo o significado de luz e grafia sendo considerada como gravar, escrever, registrar. Pode se considerar que a fotografia é a constituição de uma imagem, algo que pode trazer a visualização de um fenômeno e que busca deixar um registro desse fenômeno. Para Kossoy (2000), a fotografia abarca uma história, a partir de si mesma, que pode se manter, visível e ou invisível, ao olhar humano. Por isso, se constitui como um processo complexo em que o ser e a fotografia podem se articular em uma

perspectiva de constituição de um determinado momento, no decorrer de uma realidade.

Guran (2002) compreende que a fotografia não pode ser considerada um recorte real da realidade, mas sim o recorte de um momento, que envolve o ponto de vista do autor do registro fotográfico. O ato de fotografar institui-se, então, como atribuição e reconhecimento de sentidos. O ser que produz a ação de fotografar é constituído de dimensões e de sentidos que envolvem valores, crenças, saberes, e que vai revelando a subjetividade do autor e identificando identidades individuais e coletivas, algumas pertencentes a grupos e a instituições.

Flusser (2002) compreende que são as intenções produzidas pelo autor da fotografia que podem ser consideradas estéticas, políticas e epistemológicas. Por isso, é complexo analisar a fotografia a partir de uma fonte somente. O autor recomenda que esse processo seja constituído por uma série de fotografias, para que não se perca a complexidade do processo. Batista (2003) considera que “a imagem diz mais do que se consegue ver nela, por isso é fundamental que ela esteja associada aos textos gerados de contextos que a produziu. Elas ilustram e complementam os textos, que por sua vez as complementam” (BATISTA, 2003, p.14). Aqui se apresenta a complementaridade da fotografia, onde texto e imagem se complementam na perspectiva de formação de um todo.

A fotografia, vai assim desvelando contextos, histórias e símbolos, nos quais é necessário um cuidado, por parte do pesquisador, no sentido de não se direcionar a “decodificar, não apenas o enquadramento visível da imagem, mas saber ler “a contra pelo”- aquilo que está escondido atrás da pose” (LIMA; TONON, 2013). Condição também posta à análise dos desenhos infantis, que não podem ser vistos separadamente. Segundo Salles (2007), ao separar isoladamente a expressão do desenho infantil, perde-se o seu valor heurístico e os momentos de descoberta do processo de criação. A autora considera os desenhos como narrativas visuais do cotidiano.

Nesse sentido, há um compromisso em compreender a fotografia e o desenho infantil como mais uma imersão nesse contexto de subjetividade, onde se considera a complementariedade com relatos autobiográficos como mais um processo formativo, na perspectiva de refinar o olhar para as trajetórias de vida e os processos escolares dos estudantes.

3.2 A interpretação hermenêutica como processo de compreensão das