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A intertextualidade em Carlos Drummond de Andrade

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 195-199)

6 Construção intertextual e interdiscursiva do mito

6.4 Propagação do mito de Cora Coralina pela mídia jornalística

6.4.2 A intertextualidade em Carlos Drummond de Andrade

O foco da representação de Drummond se constrói sobre a trajetóriaheroica autobiográfica de Cora Coralina. Ele centraliza a etapa da consagração ao representá-la como “um ser geral”, de “coração enumerável”. Essa caracterização está relacionada ao fato da autora se identificar as classes sociais menos favorecidas e abordadas em poemas como “Mulher da vida”, “Menor abandonado”, “Oração do presidiário” etc., mostrando uma face que, em momentos anteriores, fora ocultada pela crítica. A representação de Cora Coralina feita por Drummond autor se ancora no momento histórico de sua enunciação: no ano de 1980, a imprensa já gozava de certa liberdade, devido ao processo de abertura política que se iniciou dois anos antes. Assim, tornou-se possível abordar os problemas sociais efetivamente, antes ocultados pela ideologia dominante, que prezava pela imagem progressista do país.

O discurso de Drummond dialoga com o discurso de Oswaldino por meio da expressão “cultivadamente rude”, na medida em que os dois se apoiam no trajeto do herói: se o crítico do Jornal do Brasil se referia à “polpa de suas vivências”, Drummond se refere a “Estrada que é Cora Coralina”:

Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade várias.

O percurso da autora, de acordo com Drummond, inicia-se logo na infância, no mundo

habitual do herói, intertextualizada de forma direta e indireta no seu texto:

Remontando a infância, não a ornamenta com flores falsas. "Éramos quatro as filhas de minha mãe. /Entre elas, ocupei sempre o pior lugar," Lembra-se

6 De acordo com o Suplemento Cultural & Literário JP, Oswaldino Marques era um opositor da Academia Brasileira de

Letras em relação aos critérios “políticos” utilizados por essa instituição para o reconhecimento literário de obras publicada (JORNAL PEQUENO, ano 2, edição 57, nov. 2005)

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de ter sido "triste. nervosa e feia. / Amarela, de rosto empalamado. De pernas moles, caindo à toa.” Perde o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de peno. Não era compreendida.

A metáfora “flores falsas” atribui valor de verdade à autorrepresentação poética, acentuando o tom realístico da rememoração da infância. As dificuldades da infância narradas pela autora encontram ressonância na representação de Drummond, que é guiado por elas e leva o escritor a concluir que tais dificuldades foram a base para o desenvolvimento do “ser geral” que Cora Coralina se tornou:

Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente [...]

A infância difícil é o ponto inicial que evoca o arquétipo do herói, que a mitifica pela construção de si mesma como alguém que superou todos os obstáculos que lhes foram impostos no percurso de sua vida.

6.4.2.1 “Um admirável brasileiro”: um fio condutor do mito Cora Coralina

Drummond constrói a imagem de Cora Coralina ao mesmo tempo em que tece uma crítica social. Para ele, a autora é representante de, pelo menos, três classes desprestigiadas institucional e socialmente: o interiorano, o idoso e o pobre. Por isso, para Drummond, Cora Coralina, por meio não apenas de sua poesia, mas por conta das representações que faz da vida pela abstração de suas experiências, destaca-se como alguém superior às pessoas das classes privilegiadas do Estado de Goiás:

Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. (grifo nosso)

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A abordagem da autora pelo arquétipo do herói, sintetizada na proposição “a pessoa mais importante de Goiás”, aponta para a arte - e o artista, veículo de sua manifestação - como verdadeiros transformadores sociais daquela região. A ideologia de Drummond em relação à arte constrói, em seu texto, a representação de Cora baseada no arquétipo do herói: a virtude (caráter e poética) a serviço dos menos privilegiados (tipos humanos/Goiás).

Drummond critica aos valores sociais brasileiros sobre quem são as pessoas consideradas

mais importantes e quem, de fato, deveriam ser. O operador argumentativo entretanto tem a função de apontar para uma conclusão contrária a que se espera, indica que ser velho e pobre não possui relevância social. Para o crítico, Cora Coralina só consegue se tornar relevante por meio de sua “rica” poesia e aquilo que ela representa: as pessoas menos favorecidas socialmente, a natureza, Goiás.

6.4.2.2 Cora Coralina: modelo exemplar de civilidade

Os recortes de Drummond do conteúdo temático da obra de Cora Coralina são argumentos que constroem a imagem da autora como alguém que extrapola o comum e, por conta disso, é digno de ser admirado:

Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais.

Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: "mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude, inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos, um vago sentido de analfabetismo." Opõe à morte "aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui gosto de ter sido. Mulher operária".

O uso dos avaliativos axiológicos “extraordinário”, “diamante goiano”, “admirável” encapsulam as virtudes da autora representadas por Drummond e conduzem o leitor a algo semelhante a um culto à personalidade, que identifica a autora como um modelo exemplar de civilidade.

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6.4.2.3 Contexto social e contexto cognitivo de Drummond

Drummond constrói a imagem de Cora Coralina pelo constraste com os contextos sociais orientados ideologicamente vigentes na sua contemporaneidade e que se estendem, de certa forma, até os dias de hoje. Trata-se dos valores atribuídos à velhice, à pobreza e à notoriedade:

Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. [...] Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje [...]

Todas as vidas. E Cora Coralina celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza.

Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.

O contexto cognitivo de Drummond é guiado pelo percurso do herói (advindo da fonte primária, ou seja, os poemas autobiográficos) de Cora Coralina, que se manifesta no texto como um discurso de consagração do herói. Em um primeiro momento, o crítico tece seu texto, ressignificando os conhecimentos sociais negativos de base ideológica de velho em valores positivos. Assim, o velho em Cora Coralina é: valorizado (“pessoa mais importante de Goiás”), produtivo (“rica apenas de sua poesia, de sua invenção”), experiente (“Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual”).

Em um segundo momento, as representações de Drummond progridem no texto por meio das

imagens de si que a autora constrói em sua obra: humilde (“Todas as vidas. E Cora Coralina celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida”), sábia (“Sua consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza”) solidária (“Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os”), resiliente (“Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado [...]”).

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O trecho “Na estrada que é Cora Coralina” é construído com base em uma metáfora conceitual: trata da comparação da vida como estrada. Essa metáfora conceitural envolve a noção de ponto de saída e ponto de chegada e relaciona-se por analogia ao intervalo entre início e ao fim da vida. Por isso, ela dialoga com o termo “vivência”, empregado por Oswaldino Marques para fazer referência às experiências vividas pela autora. Dessa forma, Drummond também estabelece, por meio dessa metáfora conceitual, uma maneira de percepção da autora.

As diferenças sociais que tematizam alguns textos de Drummond também guiam o seu olhar sobre Cora Coralina, apresentando-se como objeto intencional do poeta, ou seja, o objeto para o qual a consciência é direcionada (Merleau-Ponty, 1999). Por isso, é possível identificar a manifestação de um complexo mágico na representação de Drummond. Da mesma forma que Oswaldino Marques, o poeta percebe e representa Cora Coralina de maneira fetichista: por meio da PIT, ele projeta na autora a sua preocupação com as diferenças sociais e se identifica com a infância sofrida de Cora Coralina. O grau de adesão de Drummond à sua representação da autora como “coração enumerável” ou “ser geral”, ou seja, a intensidade com que ele constrói a imagem de Cora Coralina no discurso é o tecido mítico de sua representação.

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 195-199)