• Nenhum resultado encontrado

Literatura e construção dos mundos possíveis

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 93-96)

3.2 Em busca da compreensão do mito

3.5.3 Literatura e construção dos mundos possíveis

A literatura, de um modo geral, é vista como um produto intelectual humano. Todavia esse produto tem sido compreendido quase que exclusivamente como uma prática voltada para a ficção e, como tal, sem compromisso com a realidade concreta. Alguns resultados de estudos,

80

entretanto, têm apontado seu estatuto para além desse caráter ficcional, reivindicando que ela seja entendida como parte do conjunto de discursos que representam as diferentes práticas sociais. Nesse sentido, pode-se considerar que a literatura, enquanto discurso que expressa uma entre as diferentes práticas sociais, tem por função representar não o que é ou foi, mas o que poderia ter sido; isto é, pelo caráter da verossimilhança, representa um mundo possível criado pela escritura do texto, focalizando um ponto de vista do acontecido no mundo real. Sánchez (1996) considera que a literatura pode ser definida como aquele discurso que se situa no interstíscio da história do vivido e do experienciado pela sociedade. Trata-se do acontecível: o que poderia ter acontecido e não aconteceu; o que pode estar; e o que poderá acontecer e não aconteceu ainda. É neste percurso que está tese trata da construção poética e literária do mito de Cora Coralina pela própria autora

.

Assim, ainda que faça referência a esse mundo, tal referência é apenas para fazer representar outro olhar possível sobre o mundo dos homens. Essa é uma perspectiva que compreende o texto como um espaço de materialidade de diferentes representações que os produtores/autores fazem, não apenas sobre os acontecimentos e coisas que povoam o mundo, mas sobre como esses acontecimentos ou coisas do mundo lhes parecem ser.

Como toda forma de produção humana, a literatura possui seus códigos, traça suas leis, desenha sua história composta de textos, obras e artistas, questões e soluções, questões sem solução, temas e estilos e tudo mais que se encontra envolvido nessa prática. Tomada como instituição a literatura, inclui-se no complexo mosaico da sociedade, ainda que a argamassa que a liga às demais instituições possa abrigar componentes críticos e, até mesmo corrosivos capazes de ameaçar ou até mesmo desestruturar realidades vigentes. Mas também pode concorrer para a manutenção das determinações socioideológicas.

O discurso literário é uma prática social que pode ser pensada e descrita sob o enfoque institucional. Nessa dimensão é resultante de um fenômeno sociocultural, produto de uma sociedade, objeto de consumo, num mercado que ocupa determinado estatuto, privilegiado ou não. Nessa dimensão institucional, criam-se academias de letras, organizam-se círculos literários, outorgam-se, por meio de concursos, prêmios e láureas, estabelecem-se critérios rígidos ou flexíveis, de avaliação da obra literária. Como objeto de consumo, a literatura insere-se, de corpo e alma, no mercado editorial, tornando-se uma verdadeira mercadoria, cujo valor vincula-se estreitamente às leis mercadológicas, leis ora cruéis ora pouco criteriosa, mas, sempre leis. No circuito que enlaça o autor, o editor, o livro e o editor, revela-se

81

abertamente o caráter institucional da literatura, que se produz que se promove que se vende e que se consome. Como qualquer ser social a instituição literária marca-se profundamente pelos valores vigentes e regentes da sociedade. Assim, embora podendo articular um discurso contraideológico, o discurso da literatura não escapa as determinações ideologicamente orientadas. Dirigindo-se a leitores, dentro de certa moldura cultural, o produto artístico, o livro, o texto e o discurso literário configuram um inegável sistema ideológico.

No campo das práticas discursivas, a literatura abriga diferentes gêneros textuais, entre os quais está a autobiografia. Como forma de representação em língua, o autobiográfico apresenta uma especificidade no movimento da narrativa da história. Trata-se de um retorno do

eu

sobre

si mesmo

, transportando a noção de autoconsciência para o espaço da representação, onde esse si mesmo não corresponde nem ao

eu

nem ao

outro

, mas à imagem que o autor faz, ou melhor, cria de si mesmo – é uma identificação imaginária, criada em virtude de certo olhar lançado sobreo outro de si mesmo

.

Tal atitude de se projetar como outro, liberando-se de si, apesar de aparentemente apontar para uma dispersão, acaba por agir no sentido contrário, centrando a atividade de conhecimento no próprio sujeito autobiográfico, sendo essa a origem de sua vontade, de seu desejo. É esse movimento que concorre para transformar o sujeito autobiográfico em herói: o deslocamento para fora do eu no qual o outro possível ganha vida, por meio do excedente de visão estética, que emerge junto à imagem arquetípica daquele que rememora seus próprios feitos, reforçando o caráter único do lugar ocupado pelo sujeito da narrativa autobiográfica, que o diferencia dos

outros

e de um

mundo

dos outros

(ZOPPI-FONTANA, 1997).A escritura de si mesmo é o lugar da palavra infinita que o autor faz significar e que ao voltar-se sobre si mesma apaga as pegadas da invenção, que projeta no mundo possível da escritura a representação de si mesmo.

Quando o autor decide narrar sua vida, o que se coloca primeiramente em tal campo formado pela heterogeneidade não é o passado constituído, ou aquele ser que vivenciou tais experiências, mas sim sua relação com o nome próprio. Nesse momento, o eu autor percebe que o nome pertence a um outro, um outro em si. É então que se inicia o ato narrativo, no momento em que se vai contar de si para o outro cujo lugar e existência só têm sentido em relação ao eu, a um conjunto de forças que dão status ao ser. É um campo marcado pela tensão entre o sujeito (eu) e o objeto (outro). Nele ocorre a negociação com um outro, ao mesmo tempo, formador e diferente do eu. Uma diferença que só aparece por meio da escrita, na folha de papel. No ato autobiográfico contam-se as memórias primeiramente a si mesmo.

82

Todavia o si é um outro, pois só podemos narrar para outrem, só podemos nos conhecer através dele, do outro em si. Na escrita autobiográfica, pelo princípio da exotopia, o autor- criador se desloca de si mesmo para enxergar uma realidade acabada, em oposição a sua própria realidade inconclusa (BAKHTIN, 2003) . Da mesma forma que um personagem, a consciência de si, que é sempre incompleta, cria uma consciência completa, acabada.

A escrita de si, segundo Foucault (1983), é, ao mesmo tempo, uma forma de resistência (autoafirmação) e um assujeitamento (submissão), pois vários são os casos estudados por ele em que a escrita acontece em decorrência de coersões sociais sentidas pelo sujeito autobiográfico. Seja como for, o fato é que a escrita autobiográfica termina possibilitando que sujeito construa para si e para os outros sua versão dos fatos e ao mesmo tempo uma identidade, ilusão ou sentimento de intereza, de uma existência que encontra o seu lugar no mundo. Por isso, toda escritura de si mesmo busca ser identificada pela expressão de sua singularidade, busca uma assinatura que lhe confira legitimidade e unifique, no mesmo movimento, enunciador e personagem/protagonista, mundo vivido e mundo narrado. O mesmo e o diferente apresentam-se para Lacan (1972) como a possibilidade de certo deslocamento por meio da transferência das qualidades do outro de si mesmo para o eu. Diz o autor que esse é um processo criativo e pode ser seguido de um trabalho com a letra (significante); letra que passa pelo corpo, modifica-o e se manifesta em obra de arte em produção na qual o sujeito se diz e não apenas diz, se inscreve e não apenas escreve. Nesse sentido, o que faz de um indivíduo um autor é o fato de, por meio de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que lhes são atribuídos (Foucault, 1992).

No documento DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA (páginas 93-96)